Cláudia Santos, deputada independente eleita pelo PS, ganhou destaque esta semana por causa de um cargo: o de candidata a presidente do conselho de disciplina da Federação Portuguesa de Futebol. Tem parecer positivo da Comissão de Transparência e do Estatuto dos Deputados, mas o caso não termina isento de críticas. Bem pelo contrário. Mais, já estão em marcha duas propostas, uma do PAN e outra do BE, para evitar novo debate (ou polémicas) sobre os cargos que um parlamentar pode acumular (ou não) com o de deputado.
A verdade é que o cruzamento entre o futebol e a política quase sempre resultou em polémica. Há um histórico também de discussões entre juízes (com quase 25 anos) sobre a ocupação de cargos de magistrados em órgãos federativos. Mas o processo foi ultrapassado com o novo estatuto dos magistrados judiciais, datado de janeiro de 2020. A regra, agora, é a de que, para o futuro, os juízes têm de pedir autorização ao Conselho Superior de Magistratura. «E bem», segundo Manuel Soares, presidente da direção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.
E no Parlamento? O que pensa Manuel Soares sobre o caso de Cláudia Santos? O juiz não comenta a situação concreta, mas ao SOL deixa uma reflexão que a ‘Casa da Democracia’ deve fazer: «Acho que era importante que o Parlamento refletisse sobre isso. E, se considerar que não há nenhum problema ético, pois então que o diga de uma maneira aberta. Se considerar que é um problema ético, deve também vincá-lo», declarou.
De facto, o caso da deputada não é de legalidade, porque a acumulação é legal, mas de avaliação ética. E essa análise foi feita também na Comissão de Transparência, com vários partidos a considerarem que não seria recomendável à deputada em causa, professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, acumular funções. Ainda que esta atividade não seja remunerada e cumpra os requisitos legais do estatuto dos deputados e do regime de incompatibilidades dos parlamentares.
Esta semana, a Comissão de Transparência deu luz verde à deputada para concorrer ao cargo. Mas, na véspera, o Conselho Superior de Magistratura não autorizou, por exemplo, o juiz jubilado Manuel Santos Serra a renovar o mandato à frente do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol. Em causa estava o «ambiente conturbado de suspeição permanente no futebol». A este propósito, Manuel Soares recorda que, «até 1 de janeiro deste ano, o Estatuto dos Magistrados Judiciais não proibia. Houve vários pareceres do Conselho de Magistratura desaconselhando, mas não podia proibir». Porém, com a revisão do estatuto, «passou a haver uma norma que diz que os juízes, para integrarem esses cargos, têm de pedir autorização». A questão só não se coloca para quem já está a cumprir mandatos no futebol, porque a lei não é retroativa. Só se aplica para o futuro. Assim, até ao final de 2019, o problema entre juízes era ético e não legal.
No caso de juízes, a questão não se coloca tanto ao nível da sua independência, mas sobretudo «porque quem anda no futebol sai normalmente com a imagem afetada», considera Manuel Soares. E era a imagem dos juízes que preocupava os magistrados judiciais. Agora, «o Parlamento é que tem saber – e ser claro nisso como os juízes foram ao exigiram uma mudança de estatuto – se a pertença de um deputado a um órgão dessa natureza, que envolve as paixões que todos nós já conhecemos e, que sujeita amanhã o Parlamento ou o deputado a andar nas bocas dos comentadores». É esta a avaliação que tem de ser feita, segundo Manuel Soares, porque a lei não proíbe o deputado de acumular funções.
Cabe ao deputado avaliar «se vale a pena estar nessas coisas, mesmo que vá para lá com boas intenções», acrescenta o magistrado, recusando a ideia de que pode estar em causa também a separação de poderes, por se tratarem de cargos que envolvem legislação e aplicação de castigos no futebol.«A questão não tem a ver com separação de poderes. A questão é a de saber se uma pessoas que exerce um cargo num órgão de soberania, (…) se deve estar metida num mundo onde não é regra as pessoas tratarem-se com cortesia (…) e a imagem das pessoas acaba por ser manchada por este tipo de ambiente», conclui o juiz.
João Paulo Batalha, presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade, considera, por seu turno, que a decisão da Comissão de Transparência sobre o caso de Cláudia Santos é a «consagração daquela visão burocrática, formalista e legalista das questões de integridade pública e de conflito de interesses e não uma avaliação concreta e dos problemas que ela levanta. [É] Um parecer de desculpabilização de uma acumulação de funções e de desresponsabilização do Parlamento».
De facto, na reunião da Comissão de Transparência, onde o parecer foi votado, só o PAN votou contra. O BE frisou que só avaliou o parecer do ponto de vista legal (tal como o PCP), que defende o regime de exclusividade dos deputados, tal como os comunistas e acrescentou: « Esta situação expõe uma clara promiscuidade entre política e futebol, algo que também entra em questões éticas. Nesse âmbito, consideramos que a deputada não devia aceitar as funções em acumulação com o cargo de deputada. No futuro, iremos reapresentar a nossa proposta de exclusividade para que esta situação deixe de ser possível». O PAN apontou a avaliação ética deste caso e vai «proceder a uma clarificação do enquadramento das federações desportivas e das associações privadas sem fins lucrativos no âmbito do Estatuto dos Deputados. Para que casos semelhantes não venham a ter lugar».
Já o PSD votou a favor do parecer da autoria do deputado Paulo Rios de Oliveira (da bancada social-democrata), mas também apontou a dimensão ética, considerando não ser aconselhável tal acumulação.
No fim da linha, o parecer passou com esmagadora votação, como evidenciou o PS.
Para Laurentino Dias, socialista e antigo secretário de Estado do Desporto, não há contraindicações da deputada para o cargo. E explica porquê: «Em matéria de idoneidade e de ética, eu não faço distinção entre o peso e não o peso do desporto em causa». Para o também ex-deputado, «tudo depende da ética e do sentido de responsabilidade das pessoas que tomam parte desse exercício [ de funções]. É evidente que é a pessoa que faz cargo».
Acumulações às dezenas
Além de Cláudia Santos, se for eleita para o conselho de disciplina da FPF, são vários os deputados que também acumulam funções em associações cívicas de várias ordens, além de desportivas ou federativas. Serão seguramente mais de vinte.
António Topa é do PSD e presidente da assembleia geral do Clube Académico da Feira, um clube de hóquei em patins da terceira divisão. Ao SOL, lembra que não há qualquer ilegalidade, mas reconhece: «Claro que me considero impedido de votar alguma matéria que envolva o clube académico da Feira».
Na mesma linha, Hugo Costa, deputado do PS e presidente da assembleia-geral do Sporting Clube de Tomar, recorda que a atividade não é remunerada e é pública. E que só haveria conflito de interesses quando estivesse em debate, no Parlamento, o ténis de mesa, o hóquei em patins ou judo, atividades amadoras do clube.
Para João Paulo Batalha, da Associação Transparência e Integridade, os cargos de deputado e governativos devem ser exercidos em exclusividade. Questionado sobre outros casos no Parlamento, como o de deputados que estão em conselhos de disciplina ou justiça, da canoagem (Fernando Paulo Ferreira, do PS) ou ginástica (Cancela Moura, do PSD), o responsável sustenta que «há organizações desportivas mais poderosas do que outras e políticas de Estado mais, digamos, próximas ou generosas com algumas modalidades do que outras. Os riscos, em termos de conflito de interesses têm de ser sempre avaliados no concreto». Por exemplo, no caso do PAN, que tem duas deputadas ligadas a associações cívicas de defesa dos animais não remuneradas (Inês Sousa Real e Cristina Rodrigues), João Paulo Batalha sublinha que «à partida não coloca dúvidas. No caso específico [do PAN] há um grande alinhamento político». Ou seja, só colocaria dúvidas se envolvesse decisões sobre atribuições de fundos do Estado.
O debate sobre as incompatibilidades dos deputados ocupou quase uma legislatura inteira, entre 2016 e 2019, mas parece não estar arrumado. E a discussão segue já na próxima semana. O PS, para já, só se dispõe «a discutir», sem avaliar, por agora, qualquer proposta, conforme adiantou ao SOL fonte oficial.