Especular sobre a realidade pós-covid-19 nesta altura, enquanto ainda vivemos de forma intensa o choque provocado pela doença, é comparável a analisar uma peça de teatro antes de terminar sequer o primeiro ato. O coronavírus apresenta-se como o maior desafio global desde a Segunda Guerra Mundial e crises desta dimensão tendem a deixar marcas profundas, rompendo equilíbrios há muito estabelecidos e lançando as bases para novas eras.
Os custos enormes do confinamento e das restrições à atividade económica forçaram governos e outras autoridades a intervir de modo decisivo, através de políticas de ação social, subsídios e injeções de capital. No Ocidente, e não só, as últimas décadas tinham sido de uma postura neoliberal caracterizada por um setor público discreto, cabendo ao mercado o papel de principal dinamizador. A pandemia veio alterar este status quo em apenas algumas semanas e não se antevê que as circunstâncias voltem a ser como antes.
Assim, creio que uma das principais diferenças entre o mundo pré e pós coronavírus, residirá no renascer da importância do Estado, o que tem implicações ao nível da fiscalidade e do investimento público, entre outras. Também o conceito ocidental de liberdade individual poderá vir a ser testado. Neste sentido, é interessante constatar que sociedades inteiras se resignaram ao isolamento social, disponibilizando-se a aceitar que todos os seus passos sejam controlados através de apps desenvolvidas para rastrear o dia-a-dia. Ora, este ‘génio’, uma vez libertado, não será fácil de voltar a meter dentro da lâmpada. O verdadeiro impacto político e cultural destas dinâmicas permanece uma incógnita, mas prevejo alterações nas expectativas e hábitos de vida de milhões de pessoas, dentro de um contexto de recessão económica prolongada.
Como dizia, ainda estamos no primeiro ato deste drama, porém, só em pouco mais de um mês, já vemos sinais de mudança. Se, por um lado, a economia global entrou em depressão, o consumo de petróleo diminuiu de forma abrupta e o turismo está em coma profundo; por outro, as compras online com entrega ao domicílio dispararam, tal como o número de assinantes de serviços de streaming, e o teletrabalho tornou-se rotina.
A título exemplificativo, empresas com uma situação financeira sólida, vistas como porta estandartes das respetivas indústrias, registam enormes perdas em bolsa, devido ao pessimismo dos mercados quanto à sua futura viabilidade – a Carnival, maior operadora de cruzeiros do mundo, viu a sua cotação bolsista cair mais de 75% e a Exxon Mobil, líder no setor do petróleo, vale hoje praticamente o mesmo que a Netflix, que, inversamente, já valorizou mais de 30%, assim como a Amazon, gigante do comércio online e a maior cotada à escala global, que cresceu mais de 25%. Tudo desde janeiro.
Neste novo paradigma, os vencedores não serão necessariamente os mais fortes, mas os que melhor se adaptarem. É provável que os próximos anos sejam de crescimento para os setores da tecnologia, energias renováveis, entregas ao domicílio e entretenimento. Já para as viagens e turismo, petrolíferas e banca avizinha-se uma fase complicada. No entanto, a trama ainda tem muito para deslindar até ao cair do pano.
Ricardo Evangelista, Analista Sénior da ActivTrades