O Rei D. Pedro V realizou, em meados do século XIX, uma viagem de instrução em que testemunhou os benefícios do progresso. Porém, a sua morte precoce não lhe permitiu implementar todas as boas ideias que trouxera da Europa. D. Carlos era um apaixonado pelas viagens e não perdia uma oportunidade para ir ao estrangeiro. D. Manuel II, o último Rei de Portugal, também começou a viajar cedo. Com 13 anos navegou pelo Mediterrâneo e visitou Pompeia e o Egito na companhia da mãe e do irmão. «No dia seguinte, a 21 de Março [de 1903], festejou-se, no iate, o aniversário do príncipe D. Luís Filipe que alcançava a sua 16.ª primavera», descreve Miguel Ribeiro Pedras em Viajar com os Reis de Portugal (ed. esfera dos livros). «Ainda nesse dia, e depois de nova caminhada pela cidade de Alexandria, a comitiva foi de comboio até à cidade do Cairo, instalando-se a rainha e os príncipes no hotel Savoy. Segundo o príncipe D. Manuel, os odores não seriam os mais convidativos: ‘está tudo impregnado dum horroroso cheiro a animais mortos’».
Mas já muito antes, na Idade Média, os membros da realeza viajavam para o estrangeiro. De tudo isso nos dá conta o livro de Miguel Pedras, professor de História e investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, que ao longo de 11 capítulos e vinte viagens nos mostra uma faceta menos conhecida e menos oficial dos soberanos portugueses.
Quando falamos em viagens, pensamos sobretudo nos séculos XVIII e XIX. Foi para mim uma surpresa perceber que já na Idade Média havia reis a viajar para o estrangeiro, a começar por D. Dinis, que foi a Aragão.
É normal que seja uma surpresa, porque é precisamente no século XVIII, século XIX, que aparece o turismo e se começa a viajar mais. Além dos reis, a aristocracia e os filhos da aristocracia faziam aquilo a que se chamava o grand tour, para se cultivarem.
Era uma viagem de formação.
Exatamente. As viagens como as conhecemos hoje apareceram mais tarde, a classe média só começa a viajar depois da II Guerra Mundial. Temos tendência a esquecê-lo, mas já se viajava na Idade Média. A Europa nunca foi um continente de fronteiras fechadas. Viajavam os comerciantes, viajava-se por devoção religiosa. E os reis também iam viajando, mas muito menos. Claro que eram viagens completamente diferentes. O D. Dinis e o D. Afonso V iam acompanhados por milhares de pessoas, a corte inteira viajava com eles.
Podemos dizer que, no caso de D. Dinis, foi uma espécie de embaixada?
É uma viagem diplomática. Quando o Rei viajava nesta época não era à procura de lazer, como hoje fazemos – lá está, isso é um conceito que surge mais tarde. Neste caso, o D. Dinis vai precisamente resolver uma contenda entre o Rei de Castela e o Rei de Aragão. O Rei de Portugal ia como árbitro e, sendo um momento-chave para ele, não poupou em gastos. Há um momento muito giro: antes de viajar, o Rei de Castela envia ao D. Dinis um emissário que traz as chaves dos castelos por onde o Rei de Portugal iria passar, ou seja, oferece-lhe estadia. E o D. Dinis recusa. Basicamente diz: ‘O Rei de Portugal não precisa, consegue-se abastecer a si mesmo e às mil pessoas que o acompanham’.
E acaba por optar por viajar em tendas, não é?
Sim, acampou por Castela e Aragão. Seria uma autêntica cidade de tendas, com uma certa organização. Há pouca informação sobre isso nas crónicas da época, dizem simplesmente que o Rei acampou, e eu fiz essa pesquisa para perceber como era um acampamento na Idade Média. As tendas seriam alinhadas, o Rei ocuparia uma posição central, quer por uma questão de proteção, quer pelo destaque. Ao longo do seu trajeto foi sempre mantendo alguma distância das cidades e vilas castelhanas, para não haver confrontos ou problemas entre portugueses e castelhanos e, lá está, para não consumir o que essas cidades tinham para oferecer.
Queria mostrar uma certa autossuficiência, não é?
Era exatamente isso que queria mostrar: que tinha riqueza suficiente para se sustentar, sem ter necessidade de apoio, da hospitalidade castelhana.
Mais tarde, D. Afonso V vai a França. No final fazem-se contas aos gastos e é uma soma avultada. Viajar era caro?
Mesmo hoje quando fazemos uma viagem sabemos que vamos gastar dinheiro e temos de ter as contas em ordem. Na altura era exatamente a mesma coisa. E claro que viajar com toda aquela pompa, com toda aquela gente a acompanhar, era caríssimo. O Rei D. Afonso V teve aliás de enviar emissários aos bancos da Flandres para pedirem dinheiro emprestado, e a quantia é avultada. Seriam 4,5 milhões de reais. Era um valor que a Casa Real não podia gastar todos os anos.
Nestes dois casos falamos de grandes séquitos. Foi sempre assim ou ao longo dos tempos os reis tenderam a viajar mais leves, por assim dizer?
A viagem vai-se modernizando por diferentes razões. Torna-se mais rápida, com o evoluir da tecnologia, dos transportes, e também das comunicações. Ao viajar para Castela e Aragão, o Rei D. Dinis precisava de ter gente à sua volta para fazer o contacto com Portugal se fosse necessário, para o aconselhar, cozinheiros, gente para montar as tendas, gente para tratar dos cavalos, etc. Se avançarmos, no século XIX começa a haver os telegramas, mais tarde até o telefone, portanto os reis conseguem estar em contacto com o país com facilidade. Além disso, há a própria morosidade da viagem, que antes estava condicionada pelo que um homem, um carro de bois ou um cavalo demoram. De repente temos o comboio, que com alguma rapidez se alastra pela Europa. Há uma viagem do Rei D. Carlos a Inglaterra em que vai de comboio de Lisboa até à costa norte francesa e aí, claro, apanha um barco. A viagem torna-se muito mais veloz. Na Idade Média havia ainda as questões de segurança. No século XIX é o próprio Estado que recebe o Rei visitante que se encarrega da sua proteção, garante a sua segurança. Por outro lado, há a hotelaria com capacidade para receber o Rei, e por tudo isso deixa de haver necessidade de tanta gente à volta.
As viagens costumam ser pródigas em surpresas e peripécias. Há alguma que lhe salte à memória?
Sim. O Rei D. Afonso V viaja para França como Rei de Portugal à procura de auxílio, pois era pretendente ao trono de Castela. E vai pedir ajuda. Mas o Rei de França não tinha assim tanto interesse em ajudar, estava preocupado com outras questões, e o D. Afonso V demora-se cerca de um ano por lá. Chegando ao final dessa viagem, já quando o séquito português estava prestes a regressar, o Rei D. Afonso V, que começa a mostrar sinais de uma depressão, deixa uma carta, foge do apartamento real e esconde-se. A carta dizia que desistia do reino de Portugal, queria ir para Jerusalém para lutar nas cruzadas, e deixava o trono ao filho, D. João II. O Rei de França não achou piada nenhuma que andasse um Rei à solta em França e mandaram homens franceses e portugueses à procura dele. Acabaram por encontrá-lo numa estalagem. E portanto D. Afonso V, que tinha partido como Rei de Portugal e de Castela, chega a Portugal e já não era Rei de nada, porque entretanto o D. João II tinha recebido a carta e tinha sido aclamado. Claro que depois o filho lhe devolve a coroa. Essa depressão foi outra coisa que me impressionou. É uma doença que associamos muito aos dias de hoje, e afinal já havia na Idade Média. O D. Afonso V acaba os seus últimos anos de vida, que são poucos, depois do retorno de França, a viver isolado, envolto nessa melancolia. Outra peripécia é quando o D. Fernando II finalmente se liberta da regência, sente-se aliviadíssimo – porque não achava muita graça a essa parte da governação – e decide viajar para Marrocos. Só que chega lá na altura do Ramadão. Além de os muçulmanos não poderem comer nem beber durante o dia, também não podem fumar. Mas o Rei estava constantemente a fumar os seus charutos, pelo que as autoridades de Marrocos estavam sempre a tapar o nariz e a boca com um lenço para não inalarem o fumo do Rei.
Entretanto demos um grande salto. Há também um grande hiato no livro, do final do século XV, com D. Afonso V, para meados do século XIX, com a viagem de D. Pedro V à Europa. Há alguma explicação para este lapso de quase 400 anos?
Sim. Um professor meu dizia que a História se faz das coisas que aconteceram, não podemos inventar. Na dinastia filipina há viagens dos reis por Espanha mas não faria sentido incluí-las no livro porque não eram viagens ao estrangeiro. De facto há bem menos viagens neste período, e as poucas que encontrei não tinham fontes suficientes para dedicar-lhes um capítulo. Seria um exercício de imaginação e, sendo este um livro de História e não um romance, senti que não me poderia aventurar por aí.
No início mencionou as viagens de formação. Foi o caso do périplo de D. Pedro V pela Europa. Ele acabaria por morrer muito cedo. Ainda assim, o investimento feito nessa formação e aquilo que ele viu lá fora daria alguns frutos?
Acho que foi inteligentíssimo por parte do pai de D. Pedro V enviá-lo à Europa, até porque era uma Europa em mudança, a industrializar-se. D. Pedro era um acérrimo defensor do comboio e na sua viagem consegue testemunhar a utilidade do comboio para esses países desenvolvidos. Ele leva esta questão da viagem como educação muito a sério: acaba por tomar nota de tudo o que vê, desde formas engenhosas de distribuição de água até às próprias faculdades, que disciplinas lecionavam, quais eram as suas regras. Toma nota de tudo isso, guarda esses documentos, para depois trazer para Portugal e implementar essas ideias. Era um apaixonado do seu tempo, não era um Rei virado para o passado, era um jovem com os olhos postos no presente e no futuro. Ainda consegue implementar algumas ideias, sendo o comboio o exemplo mais eminente, mas a morte acaba por não permitir desenvolver tudo o que pretendia.
Outro Rei que viajou imenso foi o D. Carlos. Isso influenciou o estilo do seu reinado?
D. Carlos foi um amante de viagens. Ele viaja logo muito cedo com os pais e mantém essa paixão toda a vida. Até acaba por receber o cognome de O Diplomata, e recebe-o precisamente por causa das viagens – não só pelas que fez, como pelas dos reis que vieram a Portugal. Esta é uma época em que a diplomacia estava mais acesa. Por exemplo, o Reino Unido começa a perceber que não pode continuar fechado no seu império, tem de começar a criar alianças. E o Rei D. Carlos entra também nessa dinâmica e nesses jogos diplomáticos. Sendo o regime uma monarquia constitucional, o poder do Rei estava obviamente restrito, mas os reis tomavam geralmente para si as questões dos negócios estrangeiros, da diplomacia. Faziam-no também com o privilégio de terem familiares como representantes dos outros estados. Trocavam cartas em que, além das questões do foro privado, iam também discutindo entre reis – entre primos – a evolução das alianças e acabavam por delinear as estratégias com os seus governos. Quando morre a Rainha Vitória, até se dá um episódio engraçado. Ele quer viajar para lhe prestar uma última homenagem. Mas, numa carta ao embaixador português em Londres, desabafa: ‘Vê lá se posso ficar aí mais uns dias porque já não meto o nariz de fora há tanto tempo, tenho medo de embrutecer de vez’. É genial ler uma coisa destas escrita por um Rei.
Isso coloca outra questão. Falámos de três tipos de viagens – de foro diplomático, de formação e de recreio. Entre as obrigações e os compromissos era possível reservar algum tempo para o lazer – fosse para um passeio, para uma visita ou para fazer compras?
Sim. Vê-se muito isso nas viagens do Rei D. Carlos. Há uma viagem em que, como não é oficial, ele fica cerca de um mês em França. As caçadas eram um dos seus vícios, e ele entretém-se imenso passando da casa de um marquês para o palácio de um duque, nos arredores de Paris. Vemo-lo também a fazer compras. Acho que é em Londres que o Rei D. Carlos entra numa loja para comprar qualquer coisa e quando sai, passado pouco tempo, colocam na vitrina dessa loja um papel a dizer: ‘Fornecedores do Rei de Portugal’. Era o marketing a funcionar [risos]. Depois de passar um mês em Paris, viaja de para a Alemanha, e aí a viagem já era oficial e por isso só podia durar cerca de três a quatro dias. Ainda assim, os reis aproveitavam sempre para o seu momento de lazer, até porque os atos oficiais podiam ser uma ida ao teatro ou à ópera. E claro, sempre que podiam alargavam as suas férias para descansarem, para pensarem noutras coisas e saírem da corte, afastados de Lisboa e da política. Isso incluía também viagens a termas, viagens pura e simplesmente para lazer.
Houve algum Rei que fosse mais avesso a essas cerimónias oficiais, a esses compromissos?
Muitas vezes os reis procuravam viajar incógnitos. Usavam títulos como Marquês de Vila Viçosa, Conde de Guimarães, mas a coisa nunca resultava. O Rei D. Pedro V esteve no Sul de Itália e às tantas decide visitar a Sicília e não avisa o Rei das Duas Sicílias. Quando veem o navio do Rei a afastar-se, os italianos percebem que o paquete estava a direcionar-se para a Sicília, então avisam o governador da Sicília que o Rei de Portugal está a caminho. O D. Pedro, que queria visitar a ilha incógnito, é logo recebido com pompa e circunstância, o que o irritou bastante [risos]. Por norma é assim. Mesmo quando se trata de viagens privadas, têm sempre uma banda, um governador ou um presidente de Câmara à espera deles no comboio ou no porto para os receber.
E nunca conseguiam escapar a essas obrigações e ter alguma folga?
Acabavam por tê-la quando iam às grandes casas da nobreza, fosse inglesa, fosse francesa, fosse o que fosse. Só nesses momentos estavam ‘sossegados’. Mesmo assim há uma história da D. Amélia, que está na casa dos duques do Devonshire, onde a etiqueta obrigava a que houvesse a roupa do dia, a roupa da noite… A Rainha aborrece-se com isso e escreve no seu diário que está cansada de mudar de toilette.
Nesta investigação, qual foi o relato mais rico, mais estimulante que encontrou?
Foi decisão minha e da editora não incluir no livro qualquer viagem que tivesse a ver com guerras. Se o Rei partia para a guerra, já não entrava no livro. Mas achei que a viagem do infante D. Afonso Henrique [conhecido como o Arreda] à Índia devia ser incluída, apesar de se destinar a resolver uma revolta que lá havia. Acabei por encontrar o relato de um português de que gostei muito, que me permitiu perceber que Goa antiga aos poucos tinha sido abandonada, estava em ruínas e entregue à natureza, ocupada por palmeiras e outra vegetação. E depois, claro, há a viagem da Rainha D. Amélia e dos príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel ao Mediterrâneo e ao Norte de África. Vão ao Egito, vão também a Nápoles, vão a Pompeia. Neste caso temos até o diário do D. Manuel, que era novíssimo, e que com alguma candura nos vai descrevendo as roupas que vestiam, os costumes, o que visitaram.
Além dos registos por escrito há outro tipo de testemunhos que nos tenham chegado dessas viagens, sejam fotografias, sejam souvenirs, sejam outras coisas que tenham sido adquiridas nessas viagens e trazidas para Portugal?
Sim. Temos nota de coisas que os reis compraram e trouxeram para o país, muitas vezes para as suas coleções. Hoje em dia estarão ou no palácio da Ajuda, ou talvez nas Necessidades ou em Vila Viçosa. Houve também fotografias, inclusive retratos dos reis que hoje temos como oficiais, que foram tiradas nessas viagens. E também alguns retratos feitos por pintores. Muitas vezes os reis visitavam ateliês de pintores que se estavam a destacar na época.
Para terminar: quando pensamos em viajar como um rei, pensamos em luxo, muita bagagem, bons hotéis. Essa ideia corresponde à realidade ou a forma como os reis viajaram depende da época em que essas viagens se realizaram?
Foi-se alterando ao longo dos séculos. Mas é verdade: viajar como um rei é viajar com um certo luxo, com muitas bagagens – tudo isso acaba por corresponder à realidade. Os reis instalavam-se frequentemente em grandes hotéis, muitas vezes com um andar por sua conta, ou ficavam nos palácios reais, portanto só isso acaba por ser sinónimo de luxo. Levavam sempre criados para os ajudarem a vestir, secretários e tudo o mais. Mesmo na Idade Média e no Renascimento havia sempre algum fausto. Portanto viajar como um rei era… viajar como rei,viajar ao melhor nível. O que não implica que o Rei viajasse quando quisesse. D. Luís fica retido em Portugal porque o pai acha uma pouca-vergonha ele ir viajar naquele momento, o reino não pode suportar a despesa e vai parecer mal se o Rei gastar tanto dinheiro com aquela viagem. E coitado do Rei D. Luís, que estava ansioso por visitar a exposição universal de Paris, esteve ali uns meses a achar que não ia. Mas lá conseguiu. A Rainha D. Maria Pia viajou primeiro e depois encontraram-se, foram até Paris e visitaram a exposição.