Joana Santos colou-se às grades. Está presa. E está escuro, apesar das duas velas que segura com a mão esquerda. Os olhos, brilhantes, não se desviam nem um momento do clarão que vem lá de dentro. Tudo o que não vê, consegue ouvir. São 23h21 de 12 de maio numa das laterais do Santuário de Fátima.
«É estranho, é estarmos presos dentro da liberdade. Estamos do lado de fora do recinto, podemos sair daqui para qualquer parte, mas só o facto de não podermos ir ali para dentro prende-nos». Lojista, com 28 anos e natural de Fátima, Joana não esconde que ver a sua cidade vazia nesta noite a deixa «com o coração apertado».
Mas há exemplos que aliviam a dor da ausência de multidão na procissão das velas. Exemplos que suavizam os muros físicos que se ergueram nesta noite. «Tento levar isto com outra visão. Quando os pastorinhos foram presos, Nossa Senhora também adiou a sua vinda, a sua presença. Não vejo isto como um ‘não haver’, é um adiar, será um 13 de outro mês», sorri, ainda com os olhos cheios de água.
A noite do lado escuro está fria. Minutos antes, mesmo ali ao lado, Bruno F., que passeava os cães com a namorada, contava que na sua cabeça ainda faltam muitos meses para se chegar a maio. Meio ano, pelo menos. «Parece inverno. Tudo vazio. E ainda por cima as lojas tem estado fechadas durante o dia. Parece que estamos em novembro ou em dezembro, não é?», questionava com expressão de incredulidade o jovem de 23 anos, funcionário de um supermercado local.
Do outro lado dos muros e das grades, parecia menos inverno. A noite das mil velas pousadas no chão a fazer vez de gente, de um mar de gente, tinha já sido aquecida por essa altura com as palavras do Bispo de Leiria-Fátima. «‘Fica connosco, Senhor, porque se faz noite’. É talvez a primeira invocação espontânea de quem aqui sente a noite escura que pesa sobre o mundo abatido por uma pandemia global. A invocação de quem vive uma noite escura da fé perante o aparente silêncio e ausência de Deus. A invocação de quem estremece e estranha esta noite», sublinhou D. António Marto na sua homilia durante a celebração da palavra, descrevendo que o cenário que tinha à sua frente mais parecia «um deserto semi-escuro».
«Quando no dia 5 de abril anunciei, com o coração em lágrimas, a realização desta peregrinação sem a presença física da multidão de peregrinos, acrescentei: […] ‘O recinto do Santuário estará vazio, mas não deserto’». Nesse momento, levantando os olhos do papel e fixando-os no vazio, o presidente das celebrações tentou quebrar o gelo, o que se sentia ali e que era ainda maior do lado de fora: «Estão aqui os vossos corações».
Por entre os caminhos vazios que ladeiam o recinto, há quem se tivesse encaixado nas pequenas reentrâncias e portas laterais que têm uma vista limitada para o que se passa no interior do santuário. Joana não era a única. Alguns (poucos) vinham de longe.
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