«Eu quero uns camarões, um cozido à portuguesa e uns caracóis, pode ser?» – A semana ia a meio e a hora de jantar há muito que tinha acabado. Francisca, que tentava relativizar o seu mau momento com um sorriso, estava na fila de Alcântara acompanhada pelo filho Rafael, de 11 anos. O menu da vida real estava longe de bater com o da brincadeira, ainda assim, desta vez, ainda podia ser. Mas nem sempre pode.
Há cerca de duas semanas, a equipa de voluntários da Comunidade Vida e Paz terminou a volta de distribuição de comida mais cedo e em silêncio. Ficou sem alimentos para dar a meio da volta e os voluntários foram obrigados a escolher a quem dar comida, tal era a quantidade de pessoas que estavam à espera para comer. «Foi o dia mais difícil até agora, não há explicação. Costumamos estar na brincadeira, mas naquele dia não dissemos nada. Não há palavras para descrever o que é ter de escolher entre quem recebe ou não comida», explicou José Melato. Há cada vez mais pessoas na rua, cada vez mais pessoas sem dinheiro para comprar comida e a recorrer a associações para matar a fome. Esperam horas, se for preciso, por uma refeição quente e por um saco com duas sandes e um iogurte. Há histórias de quem tem casa, de quem a perdeu recentemente, de quem vive há anos na rua, histórias de droga e de álcool.
A volta atrasou e as 24 pessoas que estavam na fila com Francisca e com o pequeno Rafael pensavam até que já não iriam ter nada para forrar o estômago naquela madrugada. Quase todos fizeram esse reparo. Desta vez o problema foi mesmo uma avaria na carrinha dos voluntários, que avariou assim que começou a volta. Chegaram mais tarde, mas chegaram. Apesar da hora de espera, Francisca conseguia brincar com a situação e, enquanto o voluntário José Melato pedia os nomes às pessoas que estavam na fila, para registar, esta mulher continuava o seu pedido como se estivesse num restaurante. Não estava, e não sabe quando voltará a entrar em algum. Francisca vive a realidade de muitos portugueses: a pandemia fechou serviços e os rendimentos deixaram de aparecer. «Mas felizmente temos um teto», disse Francisca. A mãe do Rafael fazia limpezas em vários apartamentos e recebia ao mês. «Agora só temos as limpezas das escadas e vou-me orientando. Isto do vírus mudou tudo. O dinheiro para comer, para vestir e tudo, não dá», explicou. Francisca, o filho, o marido e a irmã, que também trabalha em limpezas, recorrem às refeições da Comunidade Vida e Paz há cerca de um mês, quando deixou de ser possível ter dinheiro para tudo. Além disso, Rafael não vai à escola e precisa de continuar a ter acesso ao computador e à telescola para assistir às aulas. Neste ponto, os voluntários contam que, antes da pandemia, costumavam distribuir sete refeições. Na noite de quarta-feira, quando o SOL acompanhou a equipa, os registos apontavam para 24 pessoas e, já a carrinha se preparava para arrancar, apareceram ainda duas pessoas. «Mas não é dos dias piores, chegam a dar-se aqui 30 e tal refeições», disse Melato.
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