A 31 de dezembro, a OMS foi alertada pela China para uma pneumonia de origem desconhecida. Quais foram os seus pensamentos naquela altura?
Responder rápida e decididamente para entender o novo alerta; estabelecer fortes canais de comunicação com as autoridades chinesas para receber todas as informações disponíveis e oferecer apoio técnico e qualquer outro apoio necessário por parte da OMS; mobilizar a organização para a ação e promover a importância de trabalhar em solidariedade com todos os envolvidos. Sabia que o mundo estava mais bem preparado para surtos de grande dimensão do que em emergências anteriores. Mas também sabia que ainda havia grandes lacunas em todo o mundo em termos de preparação. Estavam os países equipados para fazer a vigilância, testagem, isolamento e comunicação adequada? Sabia que a resposta variava consoante os casos. A OMS trabalha há muitos anos com países em todo o mundo para aumentar as capacidades de resposta a emergências.
Passam mais de quatro meses e meio de pandemia. A primeira onda parece estar a passar na Europa, mas há sinais de uma segunda onda em Shulan, na China. Quais são as suas maiores preocupações?
O nosso foco principal agora é garantir que os países estão preparados e equipados para impedir que as pessoas sejam infetadas e para cuidar dos que são infetados. A mensagem que a OMS tem transmitido a todos os países é que precisamos de uma estratégia abrangente para responder a esta doença. Precisamos, além de medidas de confinamento, de implementar uma estratégia abrangente baseada em vigilância, intervenção em saúde pública, deteção de casos, testes, rastreamento, isolamento e quarentena. E precisamos de fortalecer os nossos sistemas de saúde para absorver o golpe, o golpe que muitos sistemas de saúde em todo o mundo tiveram de suportar nas últimas semanas.
Os países adotaram estratégias com algumas diferenças, mas o momento da decisão de ‘ficar em casa’ parece ser crucial para o que aconteceu nos últimos meses. Como vê a resposta de Portugal à epidemia?
Portugal reagiu prontamente à pandemia de covid-19. Em termos de dados epidemiológicos, temos visto um número decrescente de casos nas últimas semanas, o que reflete as medidas que as autoridades e a população implementaram. Mas é necessária vigilância contínua para garantir que não haja uma segunda onda e ressurgimento de casos.
Há alguns anos, quando esteve cá, disse-nos numa entrevista que Portugal tinha um dos poucos bons sistemas de saúde do mundo, apesar de tudo o que podemos sempre melhorar. Uma coisa que impressionou no início foi ver como os profissionais de saúde infetados na China precisavam de pagar pela hospitalização. Às vezes, tendemos a pensar que a cobertura de saúde é universal. Tem recebido relatos dramáticos de desigualdades no acesso à saúde durante esta pandemia?
Estamos a ver a importância de investir em sistemas de saúde. Os governos devem investir de forma adequada e inteligente nos seus sistemas de saúde, para que as sociedades estejam mais preparadas para prevenir surtos e outras emergências de saúde e para promover a saúde dos seus cidadãos antes que adoeçam. A pandemia do covid-19 mostrou a importância de sistemas de saúde nacionais e subnacionais fortes, como a base da segurança da saúde a nível global. Sistemas de saúde fortes e resilientes são a melhor defesa, não apenas contra surtos e pandemias, mas também contra as múltiplas ameaças que as pessoas de todo o mundo enfrentam todos os dias. E, ainda assim, tendo por base o que tem sido a realidade até agora, prevê-se que mais de 5 mil milhões de pessoas não vão ter acesso a serviços essenciais de saúde até 2030 – seja a possibilidade para consultar um profissional de saúde, o acesso a medicamentos essenciais, ou a água corrente em hospitais. Lacunas como estas não prejudicam apenas a saúde dos indivíduos, famílias e comunidades; colocam em risco a segurança global e o desenvolvimento económico.
Sabemos que o nível de pobreza está sempre relacionado com uma maior ou menor saúde e, por isso, os próximos meses vão ser exigentes não só por causa da pandemia. No que devem pensar os países quando prepararem as suas respostas?
O mundo gasta cerca de 7,5 biliões de dólares em saúde a cada ano – quase 10% do PIB global. Mas os melhores investimentos estão na promoção da saúde e na prevenção de doenças ao nível dos cuidados primários, o que salvará vidas e poupará dinheiro. Prevenir não é apenas melhor do que remediar, é mais barato e a coisa mais inteligente a fazer. A pandemia da covid-19 acabará por recuar, mas não há como voltar às coisas como eram antes. Não podemos continuar a correr para financiar o pânico e a deixar a preparação para segundo plano. Alguns países têm um sistema social forte e outros não. Sou de África e sei que muitas pessoas precisam de trabalhar todos os dias para ganhar diariamente o seu pão. Os governos devem levar em consideração esta parte da população; se fechamos ou limitamos os movimentos, o que acontecerá com as pessoas que precisam trabalhar e que ganham o seu pão diariamente? Não estamos a ver isto apenas na perspetiva do impacto económico no país, perda de PIB ou repercussões económicas. Temos de ver o que isto significa para a pessoa na rua. Venho de uma família pobre e sei o que significa ter de preocupar com o pão diário. Até o país mais rico da Terra pode ter pessoas que precisam trabalhar diariamente para ter o que comer. Nenhum país está imune.
Portugal, como outros países, está agora a levantar as restrições. Quais são as expectativas e recomendações da OMS?
Para os países que introduziram medidas de distanciamento físico generalizadas e restrições de movimento, é urgente planear uma transição gradual de maneira a permitir a supressão sustentável da transmissão, enquanto se permite a retoma de algumas partes da vida económica e social, num equilíbrio cuidadoso entre benefício socioeconómico e risco epidemiológico. Sem um planeamento cuidadoso, e na ausência de capacidades ampliadas de saúde pública e atendimento clínico, o levantamento prematuro das medidas de distanciamento físico levará provavelmente a um ressurgimento descontrolado da transmissão por covid-19 e a uma segunda onda casos maior. As pessoas também estão a voltar ao trabalho. Os empregadores, consultando funcionários e os seus representantes, devem desenvolver medidas preventivas e de proteção, sem custos para os trabalhadores.
Todos os dias se sabe mais alguma coisa sobre o vírus e sobre a doença. Vemos que dos casos fechados, 16% dos doentes morreram (os últimos dados no Worldometer apontam agora para uma taxa de 14%). A letalidade na SARS foi de 10%. A covid-19 parece ser uma doença mais grave do que pensávamos há algumas semanas?
Acredito que este vírus é o inimigo público número um. A informação de que dispomos sugere que é um vírus que pode causar sintomas ligeiros como a gripe, mas também uma doença mais severa. Cerca de 40% dos casos têm doença ligeira, 40% doença moderada (definida como uma pneumonia confirmada por exame radiológico) e 15% parecem progredir para doença grave, 5% críticos, com um taxa de fatalidade bruta atualmente nos 7% (total de mortes a dividir pelo total de casos). É uma doença nova e o nosso conhecimento muda rapidamente. Vamos continuar a analisar a informação tanto nos casos atuais como nos novos, é crucial para percebermos a severidade.
Houve críticas à demora da OMS na declaração de pandemia, como podendo ter de certa forma atrasado esforços dos países para se prepararem. Com o H1N1, houve uma declaração mais precoce de pandemia e depois houve críticas a despesas com medicamentos que se revelaram desnecessários. O facto de a pandemia de gripe A ter sido menos grave do que inicialmente se pensou influenciou a análise desta nova ameaça?
Não. A OMS respondeu rapidamente a partir do momento em que recebemos, a 31 de dezembro de 2019, os primeiros relatos de um novo cluster de supostos casos de pneumonia em Wuhan, na China. Reunimos a nossa equipa de gestão de emergências, emitimos orientações técnicas sobre prevenção e controlo de infeções, mobilizámos muitos setores, de cientistas a fornecedores, para responder e, a 30 de janeiro, declarámos o nosso mais alto nível de alerta global quando tínhamos apenas 82 casos e nenhuma morte fora da China. Desde o primeiro dia trabalhámos 24 horas, sete dias por semana, para proteger a saúde e salvar vidas, em solidariedade com o resto do mundo.
A OMS reconheceu a colaboração da China. Na epidemia de SARS, houve críticas à falta de transparência. Vimos relatos de médicos que foram repreendidos por falar. Como avalia a postura da China perante esta epidemia?
A China respondeu de uma maneira sem precedentes a uma emergência sem precedentes. Mostrámos apreço pelo trabalho da China, porque cooperaram naquilo em que procurámos apoio, incluindo no isolamento do vírus e na divulgação imediata da sequência do genoma, o que permitiu que países de todo o mundo desenvolvessem kits de teste. Também permitiram que especialistas de outros países participassem na missão conjunta OMS-China – 25 especialistas nacionais e internacionais da China, Alemanha, Japão, Coreia, Nigéria, Rússia, Singapura, Estados Unidos e da Organização Mundial da Saúde. A OMS apoia todos os países e reconhece os seus esforços de forma imparcial. Durante a reunião do conselho executivo da OMS, que teve lugar entre 3 e 6 de fevereiro de 2020, a maioria dos países elogiou a China pela sua respostas a este surto sem precedentes.
Negou pressões da China para ocultar informações sobre o surto. Gostava de saber se recebeu alguma pressão nos últimos meses?
Não.
A OMS tem combatido as notícias falsas. O que o surpreende mais?
O surto e a resposta à covid-19 foram acompanhados por uma «infodemia» maciça – uma abundância excessiva de informações, algumas precisas e outras não –, o que dificulta que as pessoas encontrem fontes confiáveis e orientações confiáveis quando precisam. As notícias falsas espalham-se com mais rapidez e facilidade do que este vírus e são igualmente perigosas. Recebemos um forte apoio de muitas empresas de média digital e social e empresas de média para ajudar a fornecer às pessoas conselhos precisos e que salvam vidas.
Donald Trump anunciou um corte do financiamento dos Estados Unidos à OMS. Qual pode ser o impacto desta decisão e como vê a resposta da administração Trump à pandemia? Falou pessoalmente com o presidente americano?
Ainda estamos a avaliar o impacto da decisão de financiamento. Os Estados Unidos têm sido um parceiro forte na promoção e proteção da saúde pública global. Esperamos que continuem a ser. Eu e o Presidente Trump falámos no final de março. Foi uma discussão boa e cordial sobre a resposta à covid-19.
E quanto ao Brasil, tentou falar com o Presidente Bolsonaro? Como vê as suas declarações?
A PAHO (Organização Pan-Americana da Saúde), a nossa delegação de apoio às Américas, apoiou o Brasil na preparação e resposta à covid-19 desde janeiro e está a ajudar o Brasil a comprar milhões de testes PCR, mas queremos focar-nos em garantir apoio técnico, operacional e científico ao Brasil através da PAO e fazê-lo de forma consistente e sem falhar no apoio ao Brasil e a todos os países da América Central e América do Sul e das Américas como um todo.
A 8 de maio de 1980, o mundo erradicou a varíola, um acontecimento único na história. Vamos erradicar este vírus? Está confiante numa vacina no próximo ano?
Enquanto o mundo enfrenta a pandemia de covid-19, a vitória da humanidade sobre a varíola é uma lembrança do que é possível quando as nações se juntam para combater uma ameaça comum à saúde. Ainda estamos a aprender sobre este vírus, mas já sabemos muito. Como todos os novos patógenos, o covid-19 colocou-nos novas perguntas – mas vemos o potencial de uma vacina contra o covid-19 à nossa frente. Nesse sentido, garantir a distribuição suficiente e chegar às pessoas em locais de mais difícil acesso é uma grande prioridade. Lidar com a hesitação da vacina será um desafio significativo para travar o vírus. O acesso a informações e educação precisas sobre saúde pública é fundamental para garantir que o público tenha os dados para se manter a si e aos outros seguro.
Maio é um mês de peregrinação a Fátima. Recordamos o santuário cheio de pessoas e perguntamos quando será possível juntar multidões, seja em eventos religiosos, desportivos, festivais. Tem alguma resposta?
A OMS colabora ativamente com os organizadores de eventos de massa. A melhor evidência sugere que o distanciamento físico é muito efetivo na redução do risco de transmissão. Se se reduzir essa distância teríamos de aceitar que o risco aumenta. Ao mesmo tempo, as pessoas querem voltar às suas vidas normais por isso, isto precisa de ser um processo discutido de forma cuidadosa. É um processo orientado pela ciência, mas tem um elemento prático. São considerações que têm de ser feitas a nível da sociedade, baseadas na evidência, mas que têm de ter em conta o aspeto prático de como adaptar a ciência e a evidência à realidade da forma como vivemos.
Nos últimos meses vimos doença e dor, também dos doentes não covid que tiveram os seus cuidados suspensos, solidariedade e resiliência dos profissionais de saúde, em maior risco. Muitos adoeceram e perderam a vida no combate à pandemia. Como celebrar as suas vidas e não esquecer o que aprendemos nesta crise?
Os profissionais de saúde são a força motriz da resposta a esta pandemia. Enfermeiros, médicos e muitos outros estão a arriscar as vidas pelo bem dos outros, a cada minuto de cada dia em todos os países do mundo. É por esse motivo que a Organização Mundial da Saúde advogou desde o início a importância de proteger e equipar todos os nossos bravos profissionais de saúde, para que possam desempenhar os seus deveres heroicos. Fiquei impressionado com as demonstrações diárias de apoio público em todo o mundo aos profissionais de saúde. Organizámos eventos em sua homenagem, incluindo o concerto virtual One World: Together At Home, a 18 de abril. Angariámos recursos para os equipar. Estão na linha de frente e devem ser protegidos.