Nasci em Belém, na Calçada do Galvão, numa casa com quintal e duas imponentes palmeiras à frente. A Calçada do Galvão é uma ladeira que sobe da rua de Belém, onde fica a casa dos célebres pasteis, para a Igreja da Memória, construída em homenagem ao Senhor por ter salvo o rei D. José do atentado de que ali foi alvo. E que originaria o tenebroso processo contra os Távoras.
Quando nasci, aquela zona já estava integrada na cidade de Lisboa, mas era relativamente periférica. Assim, quer em Belém quer na Ajuda e no Restelo havia vários descampados, terrenos livres sem dono, que eram o paraíso dos ciganos. Aí montavam por longos períodos as suas tendas.
Os ciganos constituíam um mundo à parte – como ainda hoje sucede, de resto. Vestiam de outra maneira, falavam com um sotaque e um ritmo próprios, não mandavam os filhos à escola, não tinham emprego certo – dedicando-se a vender nas feiras ou ao domicílio. Lembro-me de ciganos que iam regularmente a nossa casa vender tecidos.
Viviam em grupo, fechados sobre si próprios, não se integravam.
Constituindo uma comunidade fechada, eram muito solidários entre si. Quando um cigano era hospitalizado ou levado a julgamento, uma multidão juntava-se à porta do hospital ou do tribunal, e não arredava pé durante dias inteiros. Faziam uma algazarra enorme na rua, e, se a vítima’ falecia ou era condenada, eles gritavam e choravam, culpando o médico ou o juiz pelo sucedido e cobrindo-o de impropérios.
Mas também sabiam ser gratos.
Quando o meu avô materno, médico, que lhes dava consultas de graça, faleceu, eles juntaram-se no jardim da sua casa chorando a sua morte.
Como não tinham poiso certo, vivendo em tendas, acampando hoje aqui e amanhã ali, não podiam empregar-se, ter um local fixo de trabalho.
O primeiro cigano que conheci ‘empregado’ foi Artur Quaresma, defesa-central do Belenenses, que tinha exatamente por alcunha ‘O Cigano’. Era um bom jogador e casou com uma rapariga da classe média formada do INEF (atual Instituto de Motricidade Humana, que nome arrevesado!). Era tio-avô do atual futebolista Ricardo Quaresma.
Embora em criança tivesse medo dos ciganos, depois ganhei-lhes alguma simpatia – pela sua rebeldia, pela coragem de manterem os seus hábitos e costumes. São o último povo nómada da Terra, e só por isso merecem respeito. E também por isso não devemos querer que eles sejam como nós.
Se não concordo com André Ventura quando diz que devia haver um plano de confinamento especial para os ciganos, igualmente discordo dos que hipocritamente dizem que eles são como nós, que devemos integrá-los, obrigá-los a obedecer às mesmas leis, que devemos impedi-los de casar as filhas na menoridade ou obrigá-los a mandar as crianças à escola. Ninguém aprende se não quiser aprender – e, ainda menos, se a família estiver contra o ensino.
Não podemos pretender que os povos sejam todos iguais. Isso mataria uma riqueza importante que se chama diversidade. Devemos admitir – e até apoiar – que os ciganos não se integrem, que constituam uma comunidade à parte, que mantenham as suas regras, os seus costumes, a sua maneira de ser, falar e vestir.
É a isso que se chama o ‘respeito pelas minorias’.
Mas, se devemos dar-lhes essa liberdade, isso tem um reverso. Se eles reivindicam a possibilidade de viver à parte, à margem da sociedade, não podem depois querer usufruir dos seus benefícios.
A liberdade serve para um lado e para outro. É legítimo que os deixemos andar em carroças; mas, se quiserem apanhar um transporte público, devem pagar bilhete como toda a gente. É legítimo que não queiram mandar os filhos à escola, até porque isso lhes tolheria a liberdade de movimentos e circulação, a possibilidade de andarem de terra em terra; mas então não podem reivindicar o direito ao rendimento mínimo garantido ou a outros benefícios de que gozam as pessoas que vivem integradas no sistema.
Repito: os ciganos devem ter liberdade para preservar o seu modo de vida; mas isso supõe que não usufruam das mesmas regalias dos que vivem integrados.
O Estado não deve obrigá-los a ser como os outros; mas isso tem uma contrapartida: eles não podem obrigar o Estado a dar-lhes a eles o que dá aos outros.
A integração social supõe direitos e deveres; se eles não aceitam os deveres, não podem reivindicar os direitos.
Julgo que isto é claro.