Que Dia é Hoje? As imagens dos dias iguais e diferentes de todos os outros

O Centro Cultural da Malaposta inaugurou a exposição participativa Que Dia é Hoje, que junta centenas de fotografias enviadas por artistas e anónimos sobre os meses de confinamento. Entre a arte e o quotidiano, fica uma mostra para preservar a memória de um tempo tão peculiar e para alertar os responsáveis pelo setor – afinal,…

Uma parede forrada de caixas do correio, cada qual com um cravo vermelho lá dentro – um presente para os vizinhos festejarem Abril. Um bilhete do dia do pai, escrito a letra redondinha. O céu: com ou sem nuvens, de dia e de noite, visto de muitas janelas. Atores a ensaiar texto, gente com guitarras, desenhos que se amontoam. Gente a descascar ervilhas. O aniversário da matriarca de uma família, que soprou as velas do outro lado de um portão. E, depois, a das fotografia que viria a dar rosto à exposição de que aqui falamos – a de Eva Vilela, enfermeira no Hospital de Braga. Surge com a mão colada à janela do carro que a separa do filho, que, depois de tanto tempo sem ver a mãe, pediu um encontro que se fez com as condições possíveis.

Estas imagens tão dispersas são pedaços do confinamento obrigatório e, qual puzzle com muitas vidas, dão vida à exposição ‘Que Dia é Hoje’. A exposição de entrada livre abriu na passada terça-feira, no Centro Cultural da Malaposta, em Odivelas, depois de Manuela Jorge e Joana Ferreira, que assumiram no ano passado a gestão e programação do espaço cultural, terem desafiado um grupo alargado de amigos e artistas que por ali tinham passado – ou iam passar durante os próximos tempos – a enviarem imagens sobre a pandemia. A atriz São José Correia surge-nos então sentada rodeada de livros e plantas, Paula Lobo Antunes enviou a foto com o marido, Jorge Corrula, a segurar a filha mais nova de ambos, com um aspirador aos pés; Cucha Carvalheiro mostrou-se de viseira e de máscara assim como Fernanda Lapa. As duas atrizes contam-se entre o vasto grupo de artistas cuja agenda foi revirada pelo surto: viram a peça Gertrude Stein e Acompanhante, que levariam ao palco no final de março, adiada.

E uma multidão de artistas em reclusão resultou numa espécie de efeito de panela de pressão, com a criatividade a levar a melhor. «Com o tempo que estivemos em casa a viver um bocadinho das redes sociais, começámos a ver que havia uma série de gente a fazer coisas muito engraçadas, e coisas que mereciam passar para fora dessas», conta Manuela Jorge. «E depois percebemos que só o nosso grupo alargado de amigos veria essas partilhas nas redes sociais», nota. A dupla sentiu que havia ideias muito interessantes, diferentes estados de espírito e muitas formas de ocupar o tempo que mereciam ser trazidas para a realidade, e estava assim lançada a semente.

Houve ainda duas necessidades que deram força ao projeto: primeiro, uma vez que só tinham assumido o espaço há um ano, a dupla não tinha espetáculos em barda para ir alimentando a via digital, opção tomada por outras estruturas maiores. «Não gravámos os espetáculos na íntegra, e tecnicamente também não o conseguiríamos fazer», explica Joana Ferreira. «E de repente começou a ser tudo gratuito na internet, o que pode ser muito difícil para os profissionais neste setor», alerta.

Por último, sentiam a necessidade profunda de, assim que possível, recomeçarem a trabalhar como equipa, devolvendo o espaço à comunidade. Por isso, e por todos os motivos atrás elencados, quando a ideia surgiu, ficou logo assente que seria concretizada numa exposição física, e não virtual. A julgar pelo número de pessoas que foram entrando no espaço – o b,i. esteve na exposição imediatamente aquando da sua abertura – a aposta revelou-se vencedora.

E os visitantes que por ali circulavam, cumprindo as novas regras impostas para este tipo de espaços – como o uso obrigatório das máscaras e o distanciamento social – depararam-se com um acervo fotográfico simultaneamente díspar e familiar. «Deixámos mais de uma centena de imagens de fora», garantem as responsáveis. E as imagens não foram apenas enviadas pelos artistas ligados à casa uma vez que, em paralelo, o Centro Cultural da Malaposta tornou o público cúmplice da exposição, deixando um repto nas redes sociais convidando todos os que quisessem participar para enviar uma ou mais fotografias que refletissem a experiência de cada um durante o confinamento. Entre anónimos e fotógrafos profissionais, a resposta foi tão satisfatória que, na exposição, vemos as imagens agrupadas por temas.

As setas levam-nos logo para o primeiro núcleo de fotografias: a comida. Há morangos recortados em forma de coração e famílias na cozinha, ou ainda despensas cheias. Seguimos para as fotografias que têm como protagonistas os animais de estimação: há cães sorridentes, gatos majestosos. A cantora e atriz Paula Sá, por exemplo, enviou uma imagem da sua rola de estimação, que repousa serena em cima de uma cabeça, e a atriz Sara Carinhas apresenta as pernas do seu gato. Vem depois o 25 de Abril, celebrado numa cidade vazia, e as novas realidades do teletrabalho. A exposição segue para o que cada um vê da sua janela, quer de dentro para fora e vice-versa, e continua pelas paisagens urbanas e pelas novas formas de fazer desporto .

Há depois os convívios adaptados aos dias que correm: há aniversários à distância, ou um grupo de trabalhadores retidos em França que, em volta de uma mesa, brinda aos dias que faltam pela reabertura. ‘Que dia é hoje’ espraia-se ainda em composições de imagens feitas propositadamente para estas paredes, ou pelas fotografias da realidade dentro dos hospitais, enviadas por Eva e por Roland Souza.

Há ainda muitos pés, muitas salas e alguns terraços, varandas com gente a apanhar sol, jardins que se começam a compor, atores a decorar texto, solitários de volta da guitarra, famílias a descobrir novos talentos.

Algumas imagens trazem leveza, outras todo o peso imposto por uma situação inédita para todos. «As imagens trazem também o caos e as dificuldades que foram vividas por determinadas pessoas», considera Manuela. «E mostram as diferentes reações de como foi vivido este período. Há fotografias que são muito mais pesadas, nota-se que cada um lida com este isolamento e também com as condições que tinham para o viver, obviamente. Mas também houve pessoas que aproveitaram para se divertir», diz Joana. «Houve gente que se dedicou a atividades que nunca tinha feito nem num tempo de férias, porque este foi um tempo diferente», acrescenta Manuela Jorge.

São ligadas pelo fio transversal de uma espécie de igualdade de circunstâncias – mas Manuela e Joana sabem que o confinamento não foi para todos e que as imagens destas paredes são um testemunho de um grupo similar de gente, marcado pelo cosmopolitismo. «Há uma camada da população a que não chegámos. A Cultura tem esse problema que muita gente tenta vencer com os projetos, que é aproximar e chegar a camadas de população mais deprimidas. Nesta exposição não conseguimos aí chegar, acaba por ser um lado mais urbano».

 

Para a Cultura, todos os dias são de recomeço

Nem só de fotografias se faz ‘Que Dia é Hoje?’. O futuro desenha-se incerto para a Cultura, e por isso as diretoras artísticas da Malaposta quiseram aproveitar a exposição para refletir sobre os dias que correm e os que hão de correr para os artistas em Portugal. Por isso, ao lado das fotografias, está a passar um vídeo no qual 150 artistas – nos quais se contam músicos, atores, encenadores, entre outros – responderam às três perguntas endereçadas pela Malaposta. A primeira questiona os artistas sobre os novos modelos de apresentação dos espetáculos que poderão ter que ser criados. A segunda pede à classe para elencar uma medida a curto prazo que possa ser criada para manter a sustentabilidade da atividade profissional de cada um. A última questão colocada pelo centro cultural é, muito simplesmente, a que dá nome à mostra: ‘Que Dia é Hoje?’ As cadência da resposta vai-nos chegando de nomes como Sérgio Godinho, Cucha Carvalheiro, Fernanda Lapa ou João Gil. E as mensagens dos cerca de 150 nomes que responderam à provocação são feitas de resiliência. «Hoje é dia de não desistir». «É dia de ser menos acomodado». «É dia de inventar, como todos os outros dias de quem trabalha neste setor». «É dia de sair», diz-nos Vitorino, a 3 de maio.

Para a Malaposta, será também necessária uma força férrea para dar os próximos passos, cumprindo as normas necessárias. «Vai ser muito difícil porque nós não somos um hospital, somos um espaço de cultura. Nem nos restaurantes estão a pedir este tipo de exigências», critica Manuela Jorge. «Se implementamos a máscara, isso não faz com que se reduza a distância social? A distância social é quando não há máscara, a própria ministra da Saúde disse isto numa entrevista», lembra. Para Joana Ferreira, «o grande problema é a incoerência que existe em cada setor». «Por que é que na praia é um metro e meio de distância, porque é que nas filas são dois metros de distância e porque é que depois, num auditório ou num teatro, é preciso uma fila de intervalo e duas ou três cadeiras de intervalo em cada fila?», questiona.

Além do público coloca-se a questão de quem está em cima do palco, quais são as regras a implementar e quais são os cuidados a ter, nota a dupla, que espera que nas próximas semanas haja mais clarificação neste sentido. Mas há especificidades do espaço em si que não darão para contornar. «A nossa sala maior já tem uma lotação bastante reduzida. Com a redução nem que seja para metade – e supostamente até será menos do que metade, não compensa. Nem para nós, que temos despesa com os técnicos, nem compensa para os artistas, especialmente aqueles que estão em regime de partilha de bilheteira. Por isso é que muitos acabaram por cancelar o que já tinham agendado para agora», explica.

E levantar os preços está fora de questão. «Os teatros institucionais podem fazê-lo porque têm outro tipo de condições que nós não temos. Temos que olhar para a realidade em que estamos inseridos, para a nossa população, e ver até onde pode ir o preço do bilhete. Se vamos exceder, as pessoas não vêm», diz Manuela. E lembram que ali estão ao serviço de uma missão maior – a de levar Cultura ao núcleo em que se inserem. Por agora, as dúvidas são mais do que as certezas. Uma paira, qual chapéu preto, por cima de todas as outras. «Como vamos fazer isto?».