Não devemos perder a cabeça por uma generalização, esgotar a sua breve orientação e fazer dela um juízo final, e, no entanto, algumas persistem por aí, acumulando provas a seu favor. George Orwell notou certa vez que à distância, no Oriente, uma história parece ser suficientemente clara, mas quanto mais nos aproximamos do local dos acontecimentos, mais vaga ela se torna. É difícil segurar entre contornos precisos a figura de Lee Jae-yong, o herdeiro e vice-presidente do gigante sul-coreano Samsung, que estando acusado de fraude, esta semana evitou a prisão preventiva, pedida pelo Ministério Público, tendo o magistrado, após uma audiência que se arrastou por nove horas, recusado a medida cautelar, afirmando que não havia razões suficientes que a justificassem. Em causa está a investigação a uma controversa fusão de duas subsidiárias do conglomerado – a Cheil Industries e a C&T -, em 2015, com os procuradores a suspeitarem de que houve manipulação dos preços durante operação.
Especializada em moda, alimentação e lazer, a Cheil Industries assumiu o controlo da Samsung C&T, após o valor desta ter, alegadamente, sido propositadamente subvalorizada. A manobra foi vista como uma forma de garantir que um dos maiores impérios corporativos permanecerá como um legado familiar. Aos 51 anos, Lee é já a terceira geração da sua família a liderar o grupo, tendo assumido o leme depois de o seu pai, Lee Kun-hee, que se mantém na presidência do grupo, ter sofrido um ataque cardíaco em 2014 que o deixou em coma. Entretanto, e depois de ter sido condenado em 2017 a cinco anos de prisão no âmbito do escândalo de corrupção que levaria à demissão e prisão da ex-presidente da Coreia do Sul Park Geun-hye, o empresário deu um sinal de que estava disposto a cortar o mal pela raiz, garantindo que seria o último na linha de sucessão familiar.
Quanto à pena de cinco anos, passado apenas um Lee estava cá fora, e depois desse aviso, com a corda ao pescoço que é este novo processo, um mês antes dos procuradores terem pedido a prisão preventiva, o herdeiro fez então o tal pedido de desculpas pelo plano que delineara para segurar o império familiar. Vale a pena notar que até à primavera de 2017, quando as notícias do escândalo começaram a surgir, era difícil encontrar uma fotografia de Lee Jae-yong – ou Jay Y. Lee, como ele é conhecido no Ocidente. O seu avô, Lee Byung-chul foi quem fundou a empresa que viria a tornar-se o maior conglomerado do país e um dos maiores do mundo. Depois de se ter formado na principal universidade do país, Lee doutorou-se na Harvard Business School, e desde tenra idade que foi sendo preparado no sentido de um dia vir a tomar conta do império familiar.
Em 2017, pouco depois de ter chegado à administração da Samsung Electronics, a única imagem que dele havia mostrava-o bastante mais novo, sorrindo, com um desses rostos cujos traços a memória tem dificuldade em reter. O que mais chamava a atenção era a camisola de malha lilás que vestia, com gola de bico. De lá para cá, como referia a BBC, o que não falta são imagens de Lee, mas são raras aquelas em que tem um sorriso na cara ou veste malhas. Em boa parte delas, surge algemado, com um polícia de cada lado, entre o tribunal e a prisão e de volta.
Lee chegou à presidência da Samsung em 2009 e, quatro anos depois, assumiu a vice-presidência da Samsung Electronics, a divisão responsável pela tecnologia e os gadgets, numa gama que vai dos telemóveis e televisões, às máquinas de filmar e aos computadores portáteis. Divorciado e pai de duas crianças, o empresário chegou a ocupar a 40.ª posição na lista da Forbes das pessoas mais poderosas do mundo, com uma fortuna avaliada em 6 mil milhões de dólares (cerca de 5,3 mil milhões de euros). E se a Samsung é conhecida mundialmente pelos aparelhos tecnológicos, o conglomerado controla uma série de empresas noutros setores, desde farmacêuticas, a empresas de crédito, da construção naval a grupos hoteleiros, entre uma série de outros investimentos. E o que acontece é que, como tantas outras grandes dinastias sul-coreanas, a família Lee tem conseguido segurar as rédeas do seu império através de uma complexa rede de sociedades com participações cruzadas nas diferentes empresas em vez de terem simplesmente uma maioria das ações do grupo. Isto permite que os herdeiros se escudem dos elevados impostos que são assacados a título sucessório.
Na primavera de 2017, o primeiro dos processos viu o país inteiro sentar-se no banco do júri, e muito para lá da questão dinástica, a investigação do Ministério Público funcionou como uma purga e um desmantelamento das ligações entre as corporações e o poder político, com os procuradores a sentirem que a opinião pública lhes respirava no pescoço, esperando que o processo terminasse com uma condenação severa. Se a Samsung representa, por si só, um quinto do produto interno bruto daquela que é a 12.ª economia mundial, desde há uns anos, estes grandes conglomerados deixaram de ser encarados pela opinião pública como os motores deste milagroso caso de sucesso económico, e é cada vez maior o número de pessoas que acreditam que o país está a ser sabotado pela corrupção política.
Muitos dos principais executivos destas companhias – incluindo o pai de Lee – foram julgados e condenados por uma série de crimes, acabando depois por serem perdoados ou por verem as penas comutadas. De acordo com a investigação que levou à destituição da ex-presidente Park Geun-hye, e da qual Lee se safou depois de cumprir apenas um ano de prisão, a Samsung terá pago cerca de 33,6 milhões de euros em subornos para garantir que o império permanecia sob o controlo da família sem ser sujeito aos impostos sucessórios. Quanto à estratégia da defesa de Lee durante aquele processo, esta parece ter sido copiada do diabo, pois se os procuradores o pintavam como um titereiro que dispôs as peças numa audaciosa jogada de xadrez para confundir a lei, meter os principais responsáveis políticos no bolso e proteger a imensa fortuna e poder da sua família, os seus advogados tentaram convencer o juiz de que Lee nunca foi mais do que uma figura decorativa, alguém que promovia alianças no plano global, mas que era mantido à margem das operações do dia-a-dia, e que, por isso, não estava a par nem dos subornos nem da complicada teia urdida com vista a escapar aos impostos sobre a sua herança. No fundo, o inferno é um baile de máscaras. Quando alguém é apanhado em falso, ou alega ingenuidade ou estava só a cumprir ordens. O truque passa por atrair-nos até à teia, enredar-nos, e, assim, o que à distância parecia uma história simples, preto no branco, à medida que nos aproximamos vai ficando mais e mais cinzenta, até já não termos certeza sobre nada. J