O Algarve em tempo de cólera

Agora tudo funcionou ao contrário: fecharam-se em casa os sãos (que só haveria vantagem em que apanhassem a doença, para a sociedade ganhar imunidade), e permitiu-se que a peçonha entrasse nos lares de idosos.

A praia do Barril, que frequento há muitos anos, situa-se numa linha de costa com mais de 10Km de areal. Assim, há espaço para toda a gente – embora os mais preguiçosos se aglomerem à saída do pitoresco comboio que atravessa a ilha onde se localiza a praia. Aí, em tempos normais, não cabe um alfinete. Parece uma praia da linha do Estoril em domingo de agosto.

Mas agora tudo é diferente. Na semana passada, saímos do comboio, avançámos em frente pela passerelle de madeira e, sem precisarmos de nos desviar, estendemos as toalhas à beira-mar a uma boa distância dos vizinhos mais próximos. Pela primeira vez desde que frequentamos o Barril, tivemos a sensação de ter a praia quase por nossa conta.

E o mesmo se passou nas ruas de Tavira ou noutras terras a que fomos, como Vila Real. Aqui, a rua principal, normalmente apinhada, estava positivamente às moscas, com muitas lojas fechadas. E os restaurantes estavam vazios ou tinham muito pouca gente. Embora a lei já permita que utilizem 100% da capacidade, nenhum o faz – pois exigiria um investimento considerável que não se justifica face ao reduzido número de clientes. 

O ambiente nas ruas também é deprimente, pois veem-se muitas pessoas de máscara, mesmo em situações que não o justificam, mostrando o medo que lhes vai na alma. 

Praias vazias, restaurantes vazios, lojas vazias, ruas vazias habitadas por gente de rosto escondido atrás de uma tira de pano – é esta a imagem do Algarve ainda em tempos de pandemia. E mesmo que as coisas animem – e aqui e ali já se veem sinais disso – vai levar muito tempo até que a vida no Algarve retome o seu curso normal. Vai levar anos – até porque os turistas estrangeiros, aqueles que trazem dinheiro de fora e contribuem para o aumento do dinheiro em circulação, não porão cá os pés tão cedo. Nem cá nem noutros lugares turísticos, pois as viagens internacionais caíram a pique.

Acresce que a mensagem transmitida pelas autoridades é contraditória. Enquanto o Presidente e o primeiro-ministro vão aos restaurantes tentando incentivar as pessoas a sair de casa, continuam pelo país fora as mensagens em sentido oposto. Por exemplo, em Santa Luzia, uma vila perto de Tavira que vive do turismo, um enorme cartaz à entrada aconselha em letras garrafais: FIQUE EM CASA! E as pessoas inquietam-se: será que fiz bem em vir aqui? A vontade é dar meia volta e regressar a penates. 

Começa a ser claro – para quem não o percebeu logo de início – que a crise económica e social provocada pela pandemia vai ter efeitos muito mais devastadores do que as consequências sanitárias da doença. 

Recordo que em Portugal, desde o início da crise – ou seja, em mais de três meses -, morreram até agora 1400 pessoas. Ora, em Janeiro do ano passado, no pico da gripe, em menos de um mês morreram mais de 3000 pessoas. E não houve pânico, nem notícias, nem lojas e escolas e fábricas fechadas.

Toda esta turbulência que se vive no mundo, a agitação nos EUA, a agitação no Brasil, as manifestações contra o racismo que se transformam elas próprias em manifestações racistas, espancando brancos ou obrigando-os a pedir desculpa por serem brancos, são também já o resultado assustador de emoções reprimidas, de receios não assumidos, de tensão acumulada neste tempo de confinamento.

Tendo isto em conta, futuras pandemias não poderão ser tratadas assim, sob o risco de afundarmos esta nossa civilização. Não se pode criar este ambiente de medo. A vida tem de continuar normalmente. A sociedade tem de permanecer a funcionar, com as escolas e as lojas abertas, embora com uma proteção especial aos grupos de risco.

Agora tudo funcionou um pouco ao contrário: fecharam-se em casa os sãos e as crianças (que só haveria vantagem em que apanhassem a doença, para a sociedade ganhar imunidade), e permitiu-se que a peçonha entrasse nos lares de idosos. Note-se que quase metade das mortes pela covid-19 ocorreu em lares. E a esmagadora maioria dos contágios deu-se dentro de casa e não no espaço público. 

As autoridades de saúde, os políticos, os jornalistas terão de aprender a lidar doutro modo com as pandemias. Sobretudo com as pandemias relativamente benignas, como esta. Se houver uma 2.ª vaga, e se for tratada política e socialmente desta maneira, as consequências económicas e sociais serão terríveis. Dar-se-á uma catástrofe. Não sanitária, entenda-se, mas para o nosso modelo de sociedade. Iremos ao fundo.