Como a Visão e a Sábado noticiaram, e o SOL confirmou, a última reunião no Infarmed para balanço da evolução da pandemia de covid-19 em Portugal, na quarta-feira, terminou de forma inusitada, com António Costa a interromper abruptamente a ministra Marta Temido quando esta falava sobre os efeitos do confinamento no norte de Portugal.
«É mentira, é mentira», disse António Costa, quando a ministra da Saúde referiu que o norte do país registou mais casos durante o confinamento do estado de emergência, lembrando que houve setores, como a construção, que nunca pararam. António Costa acrescentou mesmo que «esse tipo de discurso não é útil», perante uma Marta Temido que, de máscara posta, ficou com um olhar de espanto e incredulidade. Sendo que, praticamente de imediato, Costa voltou-se para o Presidente Marcelo e anunciou nova reunião das mais altas figuras do Estado com os especialistas do Infarmed e os representantes de todos os partidos para daí a 15 dias, terminando a sessão.
Ao SOL, participantes na reunião relataram que a irritação do primeiro-ministro com a ministra foi o culminar de uma série de intervenções incómodas para António Costa, que não deixou de revelar a sua insatisfação com respostas que chegaram à indelicadeza.
Marcelo Rebelo de Sousa foi logo o primeiro a questionar a situação na Grande Lisboa e a fazer perguntas sobre os índices de contágio (o famoso R), deixando o primeiro-ministro logo inquieto. Mas foi quando Ferro Rodrigues quis saber se já estaríamos numa segunda onda do surto de covid-19 e Baltasar Nunes respondeu afirmativamente que o António Costa reagiu com impaciência e tomou a palavra para, durante cerca de 15 minutos, explanar a sua tese de que os números da covid-19 em Portugal são inflacionados pelo facto de o país ser um dos que tem mais testagens. Chegou mesmo a gracejar com a posição de Trump (que ameaçou reduzir os testes para melhorar os números dos EUA).
Especialistas contrariam tese de Costa… e de Trump
Porém, o que fez Costa começar a perder as estribeiras foi a resposta de Baltasar Nunes e de Rita Sá Machado, que, logo a seguir, desconstruíram essa ‘explicação’, considerando que, na realidade, a evolução preocupante do covid-19 em Lisboa e Vale do Tejo e no resto do país nada tem a ver com o número de testes realizados.
E, segundo os relatos recolhidos pelo SOL, foi já claramente contrafeito que Costa ouviu o representante do turismo reclamar mais medidas de apoio e incentivo ao turismo, não conseguindo evitar responder-lhe que o Governo já tinha conseguido trazer a fase final da Champions para Lisboa e era bom que o setor da hotelaria e da restauração se adaptassem.
Marta Temido, que falou a seguir, acabou por ser o bode expiatório de todas as contrariedades que se foram acumulando ao longo da reunião. E o seu discurso sobre as consequências do confinamento no Norte do país foi apenas a gota de água que fez transbordar o copo da paciência de António Costa.
Apesar deste episódio, e do olhar incrédulo de Marta Temido ( que disfarçou com um sorriso nervoso) com a reação de Costa, a continuidade da ministra no Executivo é dada como inquestionável. Sobretudo porque estamos em plena pandemia e seria impensável uma remodelação da principal responsável pela coordenação do respetivo combate.
Ainda que não falte quem lembre que o secretário de Estado António Lacerda Sales se tem revelado em matéria de comunicação e de gestão da crise.
«Já bem basta ter saído Mário Centeno. Não pode haver agora mais baixas no Governo», enfatiza um destacado socialista ouvido pelo SOL, lembrando que António Costa aguentou sempre Constança Urbano de Sousa durante os trágicos incêndios de 2017, só tendo substituído a ministra da Administração Interna depois de feito o rescaldo.
Ao SOL, um deputado do PS admite que Costa está «irritado» com a situação em Lisboa, porque os especialistas não estão «a dar respostas concretas ao que se está a passar». Outro socialista apontou que Costa insistiu muito na ideia do aumento da testagem para explicar os números em Lisboa e percebeu que não poderia usar mais essa narrativa. Nesse ponto pareceu haver consenso generalizado e claro dos especialistas naquela que foi a reunião mais tensa com especialistas.
‘Estamos todos cansados’, diz Marta Temido
Ontem, na conferência de imprensa sobre os números da covid-19, Marta Temido foi confrontada com a irritação de Costa na reunião, à porta fechada, com especialistas. E a pergunta foi se recebeu um puxão de orelhas. A ministra da Saúde respondeu: «Se o primeiro-ministro puxou as orelhas à Ministra da Saúde teria certamente razão». Sem confirmar se o primeiro-ministro se irritou, depois de horas de reunião em que não obteve todas as respostas que precisava, Marta Temido preferiu destacar o momento do combate à pandemia da covid-19 .«Neste momento em que estamos todos cansados é natural que se perca alguma da tranquilidade e que possamos perguntar-nos se as coisas estão todas a evoluir no melhor sentido». E preferiu descrever a atual situação: «O que é um facto é que estamos a ter dificuldade em quebrar cadeias de transmissão, são persistentes, pusemos no terreno recursos adicionais, isso aconteceu na ultima semana e ontem com [ a aprovação] novas medidas sobre estas áreas».
O cansaço, o desgaste e o facto de não se conseguir obter um cabal explicação para os números em Lisboa acabaram por ditar o desfecho da última reunião com epidemiologias, terminando de forma abrupta e com o primeiro-ministro a levantar-se rapidamente da sala. Neste cenário, o Presidente da República, Marcelo Rebelo e Sousa, procurou, depois, manter o discurso que tinha alinhado aos jornalistas (com o qual Costa concordou inteiramente) e dentro de quinze dias haverá nova reunião.
Contudo, há quem tema que estes encontros possam voltar a ter mais momentos de tensão, sobretudo se os números não abrandarem nas próximas semanas (com os resultados das medidas ontem aprovadas). Acresce-se que no setor da Saúde, a nomeação do gabinete de supressão para a covid-19 em Lisboa já tinha sido encarada como um cartão amarelo à ministra da Saúde e à administração regional de saúde de Lisboa e Vale do Tejo. Para liderar a comissão foi escolhido Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, um governante sem experiencia na Saúde.
Do ponto de vista político, há quem lembre ao SOL que, em estado de emergência, o primeiro-ministro falou sempre com os partidos sobre as medidas a tomar no combate à crise sanitária. E desde maio que não o faz, a não ser para o plano de estabilização económica e para o orçamento suplementar.