Com cada vez mais estados europeus a colocar Portugal na sua lista de países de risco, aumentam as críticas de epidemiologistas aos critérios utilizados. Primeiro foi o Reino Unido, que manteve a obrigação de quarentena de 14 dias para viajantes vindos de Portugal continental, enquanto isentava outros 75 países e territórios, incluindo Madeira e os Açores – as regras entraram em vigor na sexta-feira e deverão ser revistas a 27 de julho. As restrições finlandesas são semelhantes às britânicas, enquanto que a Bélgica colocou Portugal na lista laranja, desaconselhando viagens – Lisboa ficou na lista vermelha, com quarentena obrigatória.
Talvez restrições regionais, como as belgas, possam fazer sentido, mas as regras generalistas do Governo britânico são desproporcionais, considera o investigador Vasco Ricoca Peixoto, coautor da análise da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) sobre o assunto, em conjunto com Alexandre Abrantes. É que, em Portugal, «uma grande parte dos casos estão em freguesias específicas, em áreas residenciais suburbanas de Lisboa», nota Peixoto, ao SOL
São áreas que muito dificilmente podem ser consideradas turísticas: há um ou outra atração nestas áreas, como o Palácio Nacional de Queluz, e pouco mais. «Isto deve ser considerado quando impedimos um grupo muito grande de pessoas de fazer turismo, por exemplo numa região como o Algarve, ou no resto do país», considera o investigador.
Manuel Carmo Gomes, professor de epidemiologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), concorda plenamente. «Não se justifica descriminar países como um todo, são muito heterogéneos», disse ao SOL (ver págs. 8 a 12)
«A maioria dos países da Europa Ocidental tem poucos casos, mas depois há locais onde há muitos casos. Esses locais vão variar no tempo – vão sendo controlados, mas reaparece um surto noutro local», salienta Carmo Gomes. «Neste momento, por exemplo, é muito mais seguro estar no Algarve do que no País de Gales ou Leicester».
Tratam-se de locais onde estão a decorrer surtos: em Leiscester registaram-se centenas de casos nas últimas semanas, levando ao primeiro confinamento localizado imposto pelo Governo britânico. As autoridades locais queixam-se de não terem sido adequadamente informadas quanto ao pico de novos casos, por não terem sido alocados fundos extra para a cidade. E afirmam que o Governo não apresentou metas concretas para levantamento das restrições. Sem isso, «o confinamento de Leiscester não será mais do que um gesto», lê-se no Leicester Mercury.
No que toca a excluir Portugal continental da lista de destinos sem quarentena obrigatória do Reino Unido, «há muita política, muitos interesses relacionados com o turismo, que têm muito pouco a ver com a epidemiologia», lamenta o professor da FCUL. «Mas enfim», desabafa.
Critérios dúbios
Importa salientar que, para os investigadores da ENSP, o grande problema dos critérios britânicos nem sequer é terem como crivo a situação a nível nacional. É que «em epidemiologia, e em relação a esta pandemia, a incidência nos últimos 14 dias é um indicador altamente falível», avisa Peixoto. Mas é nesse critério que o Governo de Boris Johnson se diz basear – apesar de ter incluído na lista de destinos seguros países como o Luxemburgo, que registou muitos mais novas infeções por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias do que Portugal.
O problema é que, no fim de contas, o número de novos casos registados pode ter mais a ver com os métodos de deteção do que com o número real de infeções por covid-19. «Isto é uma doença em que 30% a 50% das pessoas podem ser assintomáticas – neste momento, já temos evidências suficientes disso». lembra o investigador da ENSP. «Basta detetar assintomáticos, ou não, e posso ter o dobro dos casos».
Não sabemos exatamente quantas pessoas assintomáticas foram testadas em Portugal – «era importante termos acesso a esses dados, houve algumas experiências, mas não oficiais», nota Peixoto. Contudo, «este número provavelmente será bastante elevado, considerando os rastreios que estamos a fazer quando há um caso, a nível de contactos laborais, familiares, as pessoas à volta do caso».
De facto, as taxas de deteção portuguesas têm sido consideradas consistentemente superiores às dos britânicos: estudos recentes da própria Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres estimam que Portugal tem detetado quase 80% dos casos de coronavírus, enquanto o Reino Unido não chega sequer aos 20%.
Para o investigador da ENSP, este critério, juntamente com o número de testes realizado nas semanas anteriores, a percentagem de positivos e a taxa de assintomáticos testados, «vai ser chave para o futuro».
Já a taxa de letalidade pode indicar se estamos a proteger devidamente, ou não, os grupos de risco, que têm maior probabilidade de desenvolver sintomas graves. Além disso, nos países onde há muitas mortes relativamente aos casos registados, «provavelmente estão a detetar menos casos ligeiros e assintomáticos», avisa Peixoto.
Pode ser esse o caso do Reino Unido ou da Bélgica: na sexta-feira, tinham um total de 658 e 844 mortes por milhão de habitantes, respetivamente, as duas mais altas taxas do planeta, à exceção de pequenos países como Andorra. Já Portugal tinha apenas 161 mortes por milhão.
Não são só epidemiologistas portugueses que estranham a exclusão de Portugal de corredores turísticos. «Se olharmos em retrospetiva, temos alguns países na Europa que tiveram picos maiores, e não penso que Portugal seja o caso, que esteja fora de controlo», considerou Gianluca Pescaroli, professor no Instituto de Redução de Riscos e Desastres da University College London (UCL). «Mas percebo que fechar as fronteiras a países com EUA ou Brasil, onde a pandemia está descontrolada, é compreensível», fez questão de salientar, à Lusa.
À semelhança dos investigadores do ENSP, também Oksana Pyzik, especialista em Doenças Infecciosas da UCL, disse à agência noticiosa que os critérios em que se baseou a decisão britânica de excluir Portugal da lista de países seguros «estão um pouco distorcidos». Lamentando: as «altas taxas de deteção neste caso têm claras consequências económicas».
De facto, é esse um dos grandes receios de Peixoto. Ao se tomar decisões apenas com base no número de novos casos nos últimos dias, corremos o risco de «incentivar países a detetar menos casos ligeiros e assintomáticos, quando podem ser relevantes na transmissão».
Turismo com baixo risco?
No relatório do ENSP sobre as restrições britânicas, podemos ler que o «turismo implica um risco relativamente baixo de contrair a covid-19». Mas o certo é que a grande velocidade com que a pandemia se alastrou está relacionada com a mobilidade da sociedade moderna, que nos permite viajar rapidamente de uma ponta à outra do Globo.
«Se calhar não tocámos aí numa questão extra que é: neste momento, com as medidas que estão recomendadas e implementadas, o turismo tem um risco baixo», admite o coautor do relatório. «Lembre-se que, em fevereiro, quando houve a grande disseminação do vírus pelo mundo, praticamente não havia qualquer restrição ou preocupação das pessoas. E até sabemos que, nessa altura, apenas detetávamos uma porção irrisória dos casos importados».
«É totalmente diferente do que se passa agora. Todos os locais públicos têm cuidados, nos aviões tem de se usar máscara durante toda a viagem, tudo isto tem de ser considerado», salienta o investigador do ENSP. «O risco de entrarem casos importados é relativamente baixo. E, entrando, se tudo for cumprido, a transmissão que ocorrerá será pouca».
Contudo, se são fulcrais as medidas de higiene e segurança exigidas às companhias aéreas ou à indústria turística, muito depende dos cuidados dos próprios turistas. «Claro que, recebendo famílias, amigos, que vão para casas, vão à praia, vão a um restaurante, com as devidas medidas de segurança, o risco é muito baixo», exemplifica Peixoto. «Se houver outro tipo de comportamento, como há pouco tempo se viu no Algarve, com jovens com aparentemente muito pouco distanciamento social, aí de facto tem de haver intervenção».
Entretanto, enquanto o Governo português e associações do setor turístico se queixam do impacto económico causado pelas restrições impostas pelo Governo de Boris Johnson, quem foi apanhado pelo meio foram os muitos britânicos que vivem em Portugal. Vários já pensam em planos para contornar a obrigação da quarentena.
Aliás, na internet até já há quem se ofereça para levar cidadãos britânicos de Portugal através da fronteira, para apanhar um voo em Espanha. «É fácil!», lia-se numa mensagem vista pela Olive Press, um jornal de expatriados britânicos em Espanha. «Passo 1: Voa do Reino Unido até Sevilha. Passo 2: Apanha um autocarro de Sevilha até ao Algarve. Está feito!».
Mal se usam máscaras
Apesar de mostrar tanta preocupação com o risco da covid-19 em Portugal, o Governo britânico já se prepara para abrir todas as espécies de serviços não-essenciais em Inglaterra, como piscinas interiores, espetáculos ao ar livre, recintos desportivos, ginásios, estúdios de tatuagens, spas, salões de bronzeamento e manicuras – Boris Johnson tem sido criticado por estar mais preocupado com os estragos económicos da pandemia do que com a saúde pública.
Tudo isto surge numa altura em que o número de novos casos no em Inglaterra está relativamente estável, mas ainda não se sabe qual o resultado da reabertura dos restaurantes e bares no sábado passado. Na altura, houve enormes enchentes em estabelecimentos por todo o país: aliás, as ruas de Soho, um dos mais populares bairros noturnos de Londres, estavam cheias de gente a beber, com poucas máscaras à vista e praticamente ninguém a cumprir os dois metros de distância recomendados pelo Governo – ou um metro de distância, para quem utiliza medidas de mitigação.
Talvez isso seja o mais estranho, visto a partir de Portugal, onde o uso de máscara se tornou cada vez mais frequente. No Reino Unido nem sequer é obrigatório o uso de máscara no interior de espaços públicos.
«Nós viemos a 14 de junho e notámos uma diferença gigantesca. Em Portugal víamos a maior parte das pessoas com máscara, aqui eram raras», contou ao SOL Filipa Pinto, uma portuguesa que regressou a Londres com o namorado, para continuar o seu MBA. «O maior choque foi que, dentro dos cafés, bancos e supermercados as pessoas que estão a atender não precisam de usar máscara. Só não deixam entrar tantas pessoas ao mesmo tempo».
«Agora já se nota mais pessoas na rua com máscara», mas nada comparado com Portugal, continua Filipa. «É muito estranho. Aliás, quando estamos a andar na rua com a máscara as pessoas veem-nos, ficam a olhar fixamente e afastam-se».