Não convivi muito com ele mas penso que o conheci relativamente bem. Encontrámo-nos várias vezes quando ele era chefe da Casa Civil de Jorge Sampaio. Eu tinha um livro publicado sobre o Palácio de Belém, que era suposto ser atualizado quando entrava um novo Presidente. A primeira versão do livro acabava com um capítulo sobre o general Eanes e a família, a segunda com um capítulo sobre a família Soares, a terceira deveria encerrar com a família Sampaio.
Para obter dados, desloquei-me várias vezes ao Palácio (cujos cantos já sabia de cor), e tive várias conversas com António Franco, como é normal. Dado conhecer relativamente bem Jorge Sampaio, julgo não ter falado com ele para este efeito.
Depois destas diligências, e de uma investigação biográfica, lá escrevi o capítulo em questão. Entreguei-o a António Franco, esperei que a resposta fosse rápida – pois o livro estava esgotado no mercado e havia urgência numa nova edição –, mas a resposta não veio. Passou-se um mês, dois, um ano. Silêncio total de Belém. Até que um dia António Franco me telefonou, convidando-me para almoçar no T-Club, em Belém, no Espelho d’Água.
Aí, já à mesa, o chefe da Casa Civil, um tanto ou quanto embaraçado, lá me foi dizendo que Sampaio não gostara do que eu escrevera sobre ele, e perante isso havia duas hipóteses: ou eu refazia o texto ou o livro não seria reeditado. Mas disse-me isto com grande cordialidade e sempre adiantando que eu era livre de fazer o que entendesse. Ele compreenderia muito bem se eu não quisesse refazer o escrito.
Ficámos assim.
Devo confessar que o meu texto não era grande coisa. Sampaio não tinha uma grande biografia: fora líder estudantil, fizera uma longa carreira de advogado, pelo caminho liderara a Esquerda Socialista que depois se integrara no PS. Fora secretário de Estado num Governo fugaz, nunca fora primeiro-ministro, fora um apagado líder do PS e presidente da CML.
Era um daqueles políticos que nunca me inspiraram: estruturalmente sério mas pouco concretizador, redondo, incapaz de gestos marcantes. E o texto refletia essa falta de inspiração.
Ainda tentei refazê-lo, mas desisti. E o livro acabaria por nunca ser atualizado.
Depois desse período, encontrei António Franco sempre acidentalmente. Era um homem alto, magro, um tanto hirto, que se movia devagar. Uma daquelas pessoas que pensam antes de falar – e nunca são vulgares. O que ele dizia encerrava sempre uma nota de humor ou uma observação inesperada. Politicamente, mais do que socialista, era um republicano típico: democrata convicto, com sentido da honra, respeitador dos princípios e das instituições.
Por isso, aquele papel de ‘mensageiro’ da ‘censura presidencial’ ter-lhe-á custado horrores. E daí, talvez, ter levado um ano para mo comunicar.
Uma vez, ao tratá-lo por embaixador, respondeu-me: "Embaixadora é a minha mulher. Eu sou o marido da embaixadora". Não insisti, mas interpretei a afirmação como mostrando um certo distanciamento em relação à carreira. Note-se que, nessa altura, a mulher – Ana Gomes – era chefe da missão diplomática na Indonésia e o processo da independência de Timor-Leste estava ao rubro – pelo que ela desenvolvia uma atividade frenética que o marido reconheceria.
Tinham uma relação engraçada. Vi–os mais de uma vez num viveiro de plantas perto da Praia das Maçãs, ele à espera, muito direito, ela depositando vasos de plantas num enorme caixote de cartão que um empregado, caminhando ao seu lado, carregava. As plantas destinavam-se ao jardim da casa que ambos tinham na Azoia, na zona do Guincho, frente ao mar.
O comedimento de António Franco nas palavras tinha na mulher o seu exato oposto. Ana Gomes não fala muito só na televisão: fala muito em toda a parte.
Certa vez, pouco depois do massacre no cemitério de Santa Cruz, o Expresso atribuiu-lhe o prémio de figura do ano, que foi entregue numa cerimónia que decorreu no Café In, junto ao Tejo. A premiada chegou com o marido, eu e Balsemão aproximámo-nos para os receber, e ela começou a falar. Falou, falou, falou. A dada altura alguém de fora veio interromper a conversa, ela parou de falar por uns instantes, Balsemão fez menção de dizer qualquer coisa, mas ela retomou a palavra e começou outra vez a falar, falar, falar. Parecia uma metralhadora. Até que o marido, num tom terminante, disparou: "Ana, cala-te!". E Ana Gomes calou-se instantaneamente. Percebi que ele tinha muita paciência para os excessos da mulher – mas ela retribuía-lhe em respeito.
A notícia da morte de António Franco sensibilizou-me. Na primeira vez que o vi, simpatizei imediatamente com a pessoa. E não fiquei de todo melindrado por ter sido ele o mensageiro do veto de Sampaio sobre o meu texto. A verdade é que o texto não era bom.