Como na fábula da cigarra e da formiga, quem vive no Algarve sabe que tem de amealhar durante o verão, antes de enfrentar os rigores do inverno. Entre março e outubro, é tempo de os algarvios ‘arregaçarem as mangas’, aproveitando a preferência de quem os visita. Desta vez, no entanto, a covid-19 veio virar o mundo do avesso.
Numa região fortemente dependente do turismo – talvez o setor mais afetado pela pandemia –, a crise económica e social começa a fazer-se sentir, instalando-se, imparável, e não antecipando nada de bom para os meses da época baixa que se aproximam irremediavelmente. Sem turistas estrangeiros, fatia generosa agora eliminada da equação, muitas portas ficaram por abrir. Enquanto outras tiveram mesmo de encerrar.
A suspensão dos negócios por tempo indeterminado teve, como efeito imediato, ‘empurrar’ milhares de pessoas para o desemprego: de acordo com os dados divulgados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), o desemprego na região subiu 232% em junho, em comparação com o mesmo período do ano passado. Os registos do IEFP dão conta de que, nesse mês, havia 26 140 pessoas desempregadas no Algarve, mas as autoridades locais acreditam num número claramente superior (depois de contabilizados aqueles que não estão inscritos nos serviços do Estado).
A situação ganha contornos dramáticos em alguns concelhos, como em Albufeira, onde no ponto mais baixo das estatísticas, verificado em maio, foi identificado um aumento de quase seis vezes nos desempregados face a maio de 2019: eram menos de mil, no ano passado, e agora são 5642. Em Silves, Portimão, Loulé e Vila do Bispo foi também registado um enorme aumento do desemprego, que triplicou nestes concelhos.
E nem a retoma envergonhada de julho e agosto permitirá recuperar, ou muito menos mitigar o atual contexto. O SOL não se ficou pelas folhas de Excel e desceu às ruas do Algarve para conhecer histórias de vida reais, de pessoas de ‘carne e osso’ que viram os seus empregos dependentes da sazonalidade suspensos, sem nada poderem fazer para inverter a situação – personagens forçadas a representar um papel que as coloca agora do outro lado da história de La Fontaine.
Helena Carmo, 47 anos
Sócia-gerente da Cordial Tours, uma agência de viagens que se dedica a organizar viagens de grupo aos principais pontos turísticos do país, Helena Carmo soube cedo que 2020 seria de mau agoiro. "Trabalhamos, sobretudo, com os mercados de Alemanha, Áustria, Bélgica, França e Austrália. Em março, a partir do momento em que os voos foram suspensos, soubemos imediatamente que as coisas não iam ser iguais aos anos anteriores".
Em 2019, a empresa faturou cerca de um milhão de euros. Este ano, "as receitas são praticamente zero", admite. Em causa ,está o seu salário e o dos seus dois parceiros de negócio.
As obrigações, por outro lado, mantêm-se – como o pagamento das despesas decorrentes da própria atividade. E passados quase cinco meses do início do confinamento, a empresa já se viu na necessidade de se libertar de alguns ‘anéis’. "Vamos ter de vender o escritório, com 200 metros quadrados, localizado Praia da Rocha [Portimão]. Fazemo-lo apenas para pagar as dívidas aos fornecedores, que se foram acumulando neste período, e para restituirmos o dinheiro aos clientes que tiveram de cancelar as suas viagens", explica. A solução passa, para já, "por trabalhar a partir de casa", uma vez que a crise ainda não tem prazo para terminar.
"A nossa época alta começava em março e prolongava-se até junho. Depois, tínhamos muito trabalho em setembro e outubro", diz Helena, acrescentando (ou arriscando) num tom inseguro: "Ainda estamos à espera de um milagre para tentar retomar a atividade este ano, mas sabemos que será muito difícil".
Quanto a apoios, a resposta aos pedidos feitos ao Turismo de Portugal chegou na forma de seis mil euros, para fazer face a despesas imediatas. "Seis mil euros, para uma empresa que faturou um milhão no ano anterior. É um penso rápido para tratar uma perna partida", afirma.
Sem receitas, resta a Helena tentar vislumbrar o futuro para lá da pandemia. Chegue quando chegar: "Estamos numa situação muito complicada, que não controlamos. É inglório e, por vezes, desesperante, pois por muito dinamismo ou boas ideias que tenha, a verdade é que, neste momento, estou de mãos atadas, dependente de forças externas. Resta tentar suportar as despesas, reduzir os custos, para que possa retomar a atividade em pleno quando tudo passar", conclui.
Nicole Soares, 25 anos
Maquilhadora profissional freelancer, Nicole Soares não tinha mais páginas na sua agenda para apontar as marcações de mulheres – mais estrangeiras do que portuguesas – que chegadas ao Algarve recorriam aos seus serviços, em busca da sua melhor versão, fosse para um casamento, uma festa ou uma sessão fotográfica ou de vídeo.
Depois de experiências em Lisboa e Londres, Nicole havia regressado à sua terra natal para exercer a sua paixão. A pandemia, porém, alterou-lhe os planos, deixando-a praticamente sem trabalho. "A minha época alta é entre março e outubro, e este ano já tinha agendado perto de 60 casamentos, principalmente de estrangeiros. Agora, mantêm-se uns quatro em setembro. Tenho esperança que se realizem mas nem mesmo esses estão 100% garantidos", explica. Feitas as contas, Nicole contava somar mais de três mil euros de lucro nos três meses de verão, mas viu-se agora obrigada a rever os cálculos. "Se conseguir chegar perto dos 800 euros já é bom", confessa.
Perante a adversidade, sem rendimentos de monta, Nicole, todavia, não desistiu, procurando (e construindo) novas oportunidades e soluções. Enquanto aguarda pela retoma, voltou a trabalhar na mesma loja de praia, no Alvor (Portimão), onde passou muitas horas na sua juventude. E começa, este mês, a dar formação numa escola profissional de estética e cabeleireiro em Portimão. "Procurei alternativas. O meu objetivo era dedicar-me a tempo inteiro à minha atividade a partir deste ano, mas esta situação toda forçou-me a adiar os meus planos, e se calhar a atrasá-los por mais um ou dois anos", lamenta.
Ainda assim, Nicole continua "a manter o contacto com os clientes", tanto com os portugueses, como com os estrangeiros. "As pessoas têm-me dito que não cancelaram as suas viagens ao Algarve, mas apenas as adiaram por uns meses ou um ano. Há muitos estrangeiros que continuam a querer casar aqui", diz.
Em tempos de pandemia (e sendo aconselhável o distanciamento social), a proximidade entre Nicole e as clientes poderia, eventualmente, não facilitar a retoma As pessoas têm motivos para recear? "Não", assegura. "Os cuidados de higiene na maquilhagem profissional já existiam antes da pandemia. Já fazíamos uma separação cuidadosa de materiais, e também já os desinfetávamos. A única alteração foi mesmo o uso da máscara", explica.
Joel Silva, 39 anos
Rececionista de hotel, Joel Silva vive e trabalha entre Leiria e Vila Real de Santo António, onde, há nove anos, trabalha num hotel durante a época alta. Desde que vive o verão no Algarve, esta é a primeira vez que não teve direito a um contrato de trabalho. "Venho trabalhar para o Algarve há nove anos, sempre de forma sazonal, mas desta vez não contaram comigo", afirma.
Joel vive livre, sem família. E costuma aproveitar o dinheiro que ganha no Algarve para, depois, poder viajar, normalmente entre outubro e dezembro. O também engenheiro informático não depende somente deste salário – muitas vezes exercendo a sua outra profissão em qualquer canto do mundo –, mas a ausência do mesmo antecipa dificuldades no inverno. E uma alteração profunda nos planos mais imediatos. "Estava, obviamente, a contar com este dinheiro, que, para mim, é sempre certo, importante para reorganizar a minha vida e para fazer o que gosto. Mas o que posso dizer? O hotel onde trabalho tem atualmente uma taxa de ocupação de 10%, quando, no ano passado era de 80% ou 90%. Os meus patrões não precisam de mim, e nem sequer me conseguem pagar. Tenho de compreender que os donos do hotel têm de dar prioridade aos trabalhadores da casa, aqueles que passam aqui todo o ano", descreve.
E o que vai fazer? "Bom, o Algarve, este ano, está perdido", afirma, acrescentando que não vale a pena andar à procura de soluções milagrosas. "Tendo em conta a situação, só me resta regressar a casa, poupar, e aguardar pacientemente que tudo volte à normalidade. E, é claro, espero poder regressar já no próximo ano, com tudo a funcionar normalmente", diz.
Ainda no Algarve por estes dias, Joel regressa a Leiria esta semana. "Vou tentar regressar àquilo que chamo o meu trabalho de inverno e, nesta fase, ir sobrevivendo. E vou ter de abdicar dos meus planos, umas férias no estrangeiro que vão ter de ser adiadas. Parece que 2020 foi feito para ficar em casa, não é?", pergunta, com um sorriso meio triste, meio conformado.
"Pessoas não podem aguentar sem ajuda"
Elidérico Viegas, presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA), tem dado voz às preocupações do Turismo e da região. Contactado pelo SOL, o responsável confirma que "há milhares de pessoas em dificuldades no Algarve", histórias que não cabem nas páginas de um jornal, e admite que, se não forem tomadas medidas rápidas e concretas, as coisas vão piorar, e muito, em setembro, outubro e novembro. "Só acredito que as coisas possam normalizar a partir da Páscoa de 2021, mas as pessoas não podem aguentar esta situação durante todos estes meses, sem ajuda", diz.
Elidérico Viegas considera que vão ser necessárias medidas específicas a curto prazo para fazer face à crise. "Tem de ser criado um plano, com orçamento e gestão próprias, para recuperar o turismo, e suportar as dificuldades pelas quais estão a passar empresários e trabalhadores. É um compromisso que já foi assumido pelo ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, e corroborado pelo primeiro-ministro, António Costa. Conto que o Governo dê seguimento ao prometido, e rapidamente", conclui.