Na literatura francesa há uma expressão que encaixa como uma luva de pelica na história da Volta à França: «roman-fleuve». À maneira, por exemplo, do extraordinário Les Thibault, de Roger Martin du Gard, iniciado em 1922 e terminado em 1940, oito tomos que percorrem gerações e nos dão a conhecer personagens extraordinários ou banais, figuras fascinante e meros intérpretes daquilo a que o nosso Eça chamava o lombo da estupidez. Glória e drama. Como sucedeu em 1910 com Octave Lapize, vencedor dessa edição do Tour, a oitava, e que abandonara a anterior por não suportar a intempérie com que algum Deus de segunda apanha resolveu assolar a França, inesperadamente, no mês de Julho. Lapize tornou-se um revoltado, apesar da vitória em Paris. No Col d’Aubisque, nos Pirenéus, região da Aquitânia, no sexto dia de sete etapas seguidas de montanha, arrastando a bicicleta pela berma da estrada enquanto se esforçava para cruzar a meta a pé, a 2.115 quilómetros de altitude, completamente exausto ia gritando para quem o queria ouvir: «Vous êtes des assassins! Oui, des assassins!» Seria o único Tour que concluiu. A I Grande Guerra pô-lo frente a frente com outro género de assassinos: como piloto da aviação francesa foi abatido pelos alemães em Flirey, Meurthe-et-Moselle no dia 14 de julho de 1917. Era um mês maldito para ele. A morte encontrou-o nas alturas…
Dificilmente a Volta a França deixa alguém absolutamente indiferente. Eu aprendi a lê-la através das crónicas mágicas do Carlos Miranda, um daqueles mestres com quem tive o prazer absoluto de aprender uma ou duas coisas. Outros viveram-na junto aos caminhos, lutando por um espaço que lhes permitisse ver as gotas de suor escorrendo pela testa dos ciclistas e berrando incentivos ou insultos conforme a lei das suas simpatias. Este ano, a pandemia já obrigou ao adiamento da competição, chutando-a para o final do mês de Agosto, com início marcado para Nice, no dia 29, e meta nos Campos Elísios, como é da praxe, no dia 20 de Setembro. As autoridades referem que a excitação popular vai ser contida para evitar contágios, mas tal parece tarefa ciclópica. Ninguém imagina etapas sem povo nas estradas e poucos terão imaginação suficiente para tirar o povo das estradas. O facto a reter das discussões que começaram a ter lugar durante o passado mês de Abril é que o Tour realizar-se-á, mais Covid menos Covid, quando havia a hipótese concreta de ser excluído do calendário. Algo que só sucedeu em 1915, 1916, 1917 e 1918 e, depois, em 1940, 1941, 1942, 1943, 1944, 1945 e 1946 por via dos conflitos que deixaram a Europa a ferro e fogo e transformaram a França num gigantesco campo de batalha. Mas, ainda assim, houve quem lutasse para que a Volta a França continuasse na sua rota, mesmo quando Paris já estava a arder…
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