Devem ser testadas, por regra, todas as pessoas que têm um contacto próximo e considerado de alto risco com alguém infetado com covid-19 ou em alguns casos é suficiente o isolamento? O novo subdiretor-geral da Saúde, Rui Portugal, defendeu esta semana que a recente norma sobre rastreios de contactos, que deixa a decisão a cargo da avaliação da autoridade de saúde, ou seja, dos médicos que avaliam cada caso, é “clara e os médicos percebem claramente uma norma neste sentido”. António Diniz, pneumologista e um dos consultores da Direção-Geral da Saúde que contestaram formalmente o articulado da norma junto da DGS, mantém a posição e considera que é um erro a atual estratégia porque, mesmo que as pessoas fiquem em isolamento, se estiverem infetadas podem ter tido contacto com terceiros que, desta forma, poderão escapar ao sistema de vigilância.
O tema não é consensual entre os médicos e, depois da contestação da ordem, a Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública defendeu já a norma, que dá autonomia aos médicos na decisão, considerando que não há uma alteração no que tem sido feito até aqui e que o facto de a norma não impor a obrigatoriedade de testar não implica que poderão vir a fazer-se menos testes, como argumenta a ordem. António Diniz e Filipe Froes, também consultor da DGS e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, já solicitaram, no entanto, mais uma vez à DGS que o articulado seja revisto, defendendo que a regra não ser testar todos os contactos próximos não está devidamente fundamentada.
Ao i, António Diniz insiste que, com o atual articulado, existe o risco de deixar escapar da vigilância outras pessoas que poderão ter sido infetadas e que, mesmo assintomáticas, podem continuar a propagar o vírus, e considera, por isso, um erro a estratégia. “A nossa posição é que, ao contrário do que está escrito na norma, nos contactos de alto risco deve ser realizado o teste laboratorial molecular, ressalvando-se depois que pode haver situações excecionais, avaliadas pelas autoridades de saúde, que excluam a realização do teste. Mas a regra deve ser fazer, e a exceção não fazer.”
O médico, antigo coordenador do Programa Nacional para a Infeção VIH/Sida, ilustra a preocupação com um exemplo: no caso de um coabitante de alguém diagnosticado com covid-19, se se tratar de uma pessoa que, por algum motivo, já estava mais em casa e não saía, por exemplo, para trabalhar – portanto não tinha uma rede de contactos próximos –, pode não se justificar fazer o teste. No entanto, se se tratar de alguém que ia trabalhar e tinha uma rede de contactos, ficar apenas em isolamento sem fazer o teste significará que, caso esteja também infetada, ainda que sem sintomas, não seja determinado o isolamento e eventual rastreio à sua rede de contactos próximos. “Neste momento, a regra é tudo menos clara, porque está sujeita a diferentes interpretações. Tomámos posição porque, para nós, isto é relativamente simples. É verdade que alguns países não o fazem, por exemplo, o Reino Unido, mas a Austrália e a Irlanda recomendam o teste a todos os contactos de alto risco”.
“Teste é um ato médico”
Na conferência de imprensa desta segunda-feira, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, e Rui Portugal recusaram que a nova norma leve a uma redução dos testes ou altere a política de testagem do país. O subdiretor-geral da Saúde defendeu que o teste é um ato médico que deve ser avaliado caso a caso pelos médicos, de resto, como em qualquer patologia, explicando alguns critérios que podem pesar na hora de decidir ou não prescrever um teste a um contacto de alto risco, como a profissão (um profissional de saúde comporta maior risco) ou o meio socioeconómico, exemplificando que em meios menos privilegiados, em que há maior dificuldade de garantir o afastamento, pode justificar-se o teste, sendo depois necessário avaliar qual o momento mais indicado para o fazer. “Não pensamos que seja boa prática que uma pessoa que esteja a coabitar com alguém que seja positivo tenha de ir a correr fazer o teste imediatamente a seguir. O que é preciso é estar confinada. Até porque é preciso garantir que o transporte para o teste é feito em segurança, porque não sabemos se a pessoa pode ou não contagiar”, explicou. “Tudo neste momento conta, sobretudo quando começamos a ter, felizmente, números mais baixos e todas estas variações vão ser mais notadas”, concluiu.
Numa entrevista ao SOL, o médico, que desde junho liderou o gabinete de crise de resposta à covid-19 em Lisboa, já tinha defendido, no entanto, a visão de que estão a ser feitos alguns testes sem critério no país, como se se fosse beber um sumo, sem utilidade para quebrar cadeias de transmissão, que prejudicam a imagem externa do país. “Se eu testar todos os coabitantes, se todos forem positivos, todos os dias tenho 100 novos casos. Em termos de corte de transmissão, é inútil. E, com isso, não tenho voos dos ingleses a vir”.
Também ao Expresso afirmou que a norma poderia levar a uma imagem menos catastrofista da situação no país. António Diniz defende que o timing para a realização do teste pode ser discutido, mas contesta que não exista a definição de que a regra deve ser testar e que se associe ao debate o argumento da imagem externa do país. O médico admite também que se pode debater a questão de haver testes a ser realizados sem prescrição médica, mas defende que são temas distintos. “O facto de haver pessoas a fazer testes sem ser por indicação médica é outra situação que se pode discutir, mas não invalida o que dizemos. É juntar tudo no mesmo bolo. Também se pode discutir quando deve ser feito o teste, se é só um ou vários, mas, na nossa perspetiva, todos os contactos de alto risco. Pode haver exceções e quem deve tomar a posição é a autoridade de saúde, através de uma avaliação fundamentada. Não querem pôr isso na norma por causa da imagem do país, como se a imagem do país não saísse debilitada por, daqui a uns tempos, podermos ter uma situação pior ou se se começar a ver que se fazem menos testes”, diz.
Segundo o último relatório semanal do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC), publicado no domingo, Portugal manteve-se, na última semana, o sexto país europeu com mais testes por 100 mil habitantes, atrás de Luxemburgo, Dinamarca, Chipre, Áustria e Irlanda. O gráfico no site do ECDC mostra uma ligeira redução (ver gráfico) depois de semanas em que houve uma tendência crescente de testes, mas o país continua no patamar dos 900 testes semanais por cada 100 mil habitantes. A DGS indicou ao i que no mês de julho foram 431 178 testes à covid-19, 215 437 no SNS (2,6% positivos), 184 145 em laboratórios privados com convenção com o Estado (6,0% positivos) e 31 596 na academia (2,1% positivos). Foram, assim, quase meio milhão de testes num mês, quando só a meio de junho o país passou a barreira do milhão de análises feitas desde o início da pandemia. Em junho tinham sido feitos 352 mil testes.