Tenho em casa, na estante dos livros de bolso, um pequeno volume antigo e amarelado intitulado Historia de la Conquista de Mejico. Um dia decidi pegar-lhe para ver se valia a pena lê-lo mas para minha surpresa encontrei cerca de 70 páginas do miolo arrepanhadas e atravessadas por um estranho rasgão.
Essa descoberta deixou-me ambivalente: não ia deitá-lo fora, mas ao mesmo tempo causava-me irritação ter um livro que não poderia ler na totalidade. Recentemente voltei a consultá-lo, na esperança de que essas páginas pudessem ser reconstituídas. Não podiam, estavam irremediavelmente danificadas.
Foi aí, porém, que percebi até que ponto o livro era interessante. Publicada pela primeira vez em 1684 – dois anos antes da morte do seu autor, Antonio Solis (1610-1686), «secretário de Sua Majestade e seu Cronista mayor das Índias» –, esta História da Conquista do México narra a chegada do conquistador Hernán Cortés àquele território e os seus esforços para se encontrar com o imperador asteca, Moctezuma II.
Mas Moctezuma não estava nada interessado nesse encontro. Mandou os seus emissários com presentes para os espanhóis, a quem pediram «que tratassem logo de prosseguir a sua viagem, levando entendido que chegar à fala com o príncipe era um negócio muito árduo».
Só que os espanhóis, com o seu proverbial orgulho, não admitiam um não como resposta. Cortés mandou que os soldados fizessem uma demonstração do seu poderio militar e insistiu para ser recebido. Da segunda vez, foi brindado com ofertas ainda mais valiosas, que ocupavam «os ombros de cem índios de carga». Entre estas avultavam «duas lâminas muito grandes de feitio circular, uma de ouro, que mostrava entre os seus relevos a imagem do sol, e outra de prata, em que vinha figurada a lua, e por último uma quantidade de joias e peças de ouro com alguma pedraria, colares, anéis e pendentes, e outros adornos de maior peso em figuras de aves e animais primorosamente lavrados», refere Solis.
Ver o imperador, porém, continuava a ser impossível, diziam os diplomatas mexicanos.
Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé – e Cortés reuniu informações e partiu com os seus homens ao encontro do imperador. Quando este já não tinha outra hipótese, lá se conformou com a ideia de receber os espanhóis. Que remédio!
A audiência entre dois homens é um dos momentos mais extraordinários da História e só podemos tentar adivinhar o que terá passado pela cabeça de um, ao penetrar nos pátios do sumptuoso palácio do soberano asteca, e do outro, ao ver chegar aqueles ‘extraterrestres’ que seriam os carrascos da sua civilização.
Sabemos hoje quão devastadora foi a presença dos europeus para os povos indígenas da América, mas Antonio Solis justifica a conquista espanhola com a tirania que era exercida por Moctezuma. Diz o cronista: «Deixava-se ver poucas vezes a seus vassalos, e só o muito necessário a seus ministros e criados, tomando o retiro e a melancolia como parte da sua majestade. Para os que conseguiam chegar à sua presença inventou novas reverências e cerimónias, estendendo o respeito aos confins da adoração. Persuadiu-se que podia mandar na liberdade e na vida dos seus vassalos, e executou grandes crueldades para persuadir os demais». E continua: «Impôs novos tributos sem necessidade pública […]; e com tanto rigor que até os pobres e os mendigos reconheciam miseravelmente a sua vassalagem, trazendo aos seus erários algumas coisas vis, que se recebiam e se arrastavam na sua presença.»
Que «coisas vis» seriam estas? Uma nota de rodapé dá-nos conta de que se tratava de sacas de pulgões e de formigas, «com que se obrigava a contribuir semanalmente as pessoas pobres do México». Pulgões e formigas?! Não parecem tributos dignos de um imperador como Moctezuma.
A nota de rodapé esclarece porém que isto tinha a sua razão de ser. «Semelhante exigência tinha um objetivo louvável, que era a extinção daqueles insetos que ali se reproduziam prodigiosamente e aniquilavam as sementeiras». O que Solis viu como prova da tirania era afinal apenas um sinal de boa governação e bom senso.