De Timor a um Interrail, como Zé Pedro se fez rock’n’roll

Depois da estreia no Doclisboa, Zé Pedro Rock’n’Roll chegou esta semana às salas. Um documentário de Diogo Varela Silva, o realizador que o conheceu tinha ainda sete anos, quando o guitarrista de Xutos e Pontapés, uma banda que começava, se mudou para a casa onde vivia com a avó, Celeste Rodrigues.

Para Diogo Varela Silva, não é este o espírito certo para se partir para um filme. Ainda assim, foi inevitável: mergulhar nos arquivos, nas memórias daqueles que eram mais próximos de Zé Pedro, o eterno guitarrista de Xutos e Pontapés, para nessa viagem em que encontrou um documentário fazer o luto pelo amigo que em criança, na casa da sua avó, Celeste Rodrigues, começou por tratar por tio. Era o início dos Xutos, os anos em que davam os primeiros concertos, a que foi assistindo. O que estava para trás, e que foi conhecendo, ao longo dos anos de convivência, foi resgatar depois da morte do músico, em novembro de 2017, para um filme a percorrer toda a sua vida. Da infância em Timor aos últimos anos de vida. Pelo meio, o Interrail que mudou a sua vida — e a dos que, como o realizador, mudaram com ela. Depois da estreia no Doclisboa, Zé Pedro Rock’n’Roll chegou esta semana às salas.

A relação próxima que manteve com o Zé Pedro, com os amigos dele, permitiu um acesso para este filme a material que dificilmente seria acessível noutras circunstâncias. Às tantas o Diogo aparece mesmo em conversa com a Cristina Avides Moreira [viúva de Zé Pedro], a consultar o acervo dele.

Óbvio que tive uma facilidade maior, para já pelo contacto direto com todas essas famílias do Zé Pedro — à Cristina, às irmãs, aos irmãos, aos Xutos — que me facultaram acesso a tudo o que tinham. 

Fora tudo o que já vinha de antes.

E fora aquilo que já tinha feito de pesquisa antes: as coisas da televisão, as coisas da rádio, coisas nossas mesmo, que tinha também coisas antigas da altura que ele viveu connosco. Ele viveu em minha casa, viveu com a minha tia Mizé no princípio dos Xutos mesmo, é daí que conheço o Zé. E houve esse acesso aos arquivos. Já tinha falado com o Zé sobre esta coisa de fazermos um filme. Ele achou boa ideia mas era um projeto a fazermos um dia. Tinha 50 mil coisas que queria fazer antes, e fiz, e ele tinha também 50 mil projetos ao mesmo tempo. Ele estava sempre cheio de coisas, entre a rádio, as cenas dele de DJ, as bandas todas com que se metia… os Xutos, os Ladrões do Tempo…

Porque ele está muito associado aos Xutos e Pontapés mas a vida dele foram muitas outras coisas, e não apenas bandas.

Ele tinha a rádio, houve uma altura em que fez televisão também. 

Esse filme que queriam fazer juntos não era exatamente este em que acabou por se tornar Zé Pedro Rock’n’Roll.
Era com ele vivo. Este filme nasce de uma premissa normalmente errada para se fazer um filme, eu sei, que é uma vontade de homenagear um amigo. Geralmente nunca é bom ou não devia ser esse o ponto de arranque para se fazer um filme…

Ou pode ser.

Não sei… Acho que condiciona muitas coisas. Tive o cuidado de tentar que não ficasse uma coisa muito lamechas porque ao fim e ao cabo estou a fazer um filme sobre alguém que me é muito querido e que deixa saudade. E estou a lidar no filme com pessoas em que a falta do Zé está marcada. 

Até porque o filme foi feito muito em cima do desaparecimento do Zé Pedro.

Sim, o filme foi feito há dois anos. Mesmo agora, ainda é muito recente. 

Em relação a essa questão da saudade, a forma como o Tim fala sobre isso…

… «Ainda não sinto saudade», meio bruto quase. Como se se recusasse a despedir-se.… a assumir.

A despedir-se ou a assumir, sim, o que aconteceu.

Mas sente imensa falta, claro que sente. Aliás, nota-se nessas palavras. Especialmente eles…

É um «não quero ir para esse lugar, ainda não».

E não queremos. O lixado nestas coisas é isso mesmo, é aprender a gerir as saudades nestas faltas. Já todos passámos por isto e vamos voltar a passar seguramente, ficarmos fisicamente privados de alguém de alguém de quem gostamos. Pronto. O chato é isso. O filme também foi um bocado feito quase como uma forma de lidar com o luto, tentar arrumar o que na prática não arrumas. Mas lidas melhor com o processo. Mexer nas coisas, nas roupas dele, nos papéis, nos bilhetes, nas fotografias…

Foi um pretexto para poder ir a esse lugar este filme de certa forma?

Acho que foi. Na altura estava cheio de medo de que ainda fosse cedo para estar a chatear as pessoas com isto, especialmente a Cristina e as irmãs e o irmão, o Nuno. Mas acho que de alguma maneira isto acabou por funcionar para nós todos. 

A sensação com que se fica é essa. Que todos queriam naquele momento estar a fazer aquilo, a revisitar de uma forma física até todas aquelas memórias.

Acho que nos ajudou a todos. A Cristina ainda não viu o filme, não consegue. Não sei se o vai ver tão cedo. Mas foi uma peça importantíssima.

Porque é ela que guarda os arquivos dele. No momento em que se parte para este filme nestes moldes, após a morte do Zé Pedro, a ideia foi sempre percorrer toda a vida dele, desde a infância, através destes momentos-chave? Uma infância, já agora, algo inesperada.

Mas acabas por perceber porque é que ele foi quem foi. Queria que as pessoas conhecessem. 

Aquela chegada a Hong Kong, por exemplo, na primeira vez em que viu eletricidade na vida, porque viviam em Timor.

Ficou a noite toda, a noite toda a olhar. O filme vai agora a Timor, o Zé Pedro volta agora a Timor. Acho que dos sítios todos por onde o filme já passou este era o que ele mais gostava.

Qual era a relação dele com Timor?

Adoravam. O irmão já nasceu lá, portanto a presença em Timor era muito forte. E as recordações que têm de viverem ali, de estarem ali na praia. Ele contava-me as histórias, adorava Timor — e foi aliás bastante ativo na luta por um Timor livre. Portanto tenho a certeza que adoraria voltar a Timor, desta vez em forma de filme. A família ficou muito feliz.

Ele alguma vez voltou lá?

Não, nunca voltou. Havia dois sítios aonde ele queria muito voltar: Timor e São Tomé e Príncipe, que ele achava que era o sítio mais lindo da terra. 

Qual era a ligação dele a São Tomé?

Passou por lá numa das viagens em que ia ter com o pai, não sei se [dessa vez] à Guiné, porque o pai dele era militar. Foi por isso que andou por vários sítios quando era miúdo. 

Tanto através dessa infância como essas viagens às então colónias para se encontrar com o pai — não é o caso de São Tomé mas há uma passagem por Cabo Verde documentada aqui — como também depois a viragem que representou para os portugueses, e muito para os jovens, o 25 de Abril, este filme acaba por contar também, porque elas não estão desligadas, um pouco da História de Portugal nesses anos. E fizeram questão de ir buscar imagens de arquivo que em muitos casos não têm nada a ver com o Zé Pedro: os soldados em Cabo Verde, o 25 de Abril, aquele concerto do Miles Davis…

Claro. Como as músicas também não se limitam aos Xutos. Há um cuidado também de de alguma maneira pintar também o filme com o rock português desde aquela altura até agora. Do Quarteto 1111 aos Censurados. Porque são também as músicas que eram ouvidas naquela altura, e as imagens… acho que era importante situar a história. 

Há no filme uma série de entrevistas, conversas com um conjunto de pessoas que lhe eram muito próximas e há uma série de entrevistas ao próprio Zé Pedro, entrevistas de arquivo, mais imagens de arquivo da RTP, e ainda registos de vídeo que são pessoais, da família. 

Há duas coisas que resgatámos, que digitalizei para o filme, coisas que estavam perdidas e que a maior parte da família não conhecia, coisas que estavam em Super 8…

… de onde saem aquelas imagens deles com a mãe em Timor, por exemplo…

… e as imagens no casamento de uma tia com ele ainda muito miúdo. Essas imagens estavam perdidas porque já ninguém vê Super 8. Alguns tinham visto e eu sabia que existiam e fomos à procura, tipo «está em casa de quem?». Umas estavam com o Nuno, outras… eles felizmente são todos muito organizadinhos, o Zé Pedro tinha a quem sair. Não foi difícil encontrar as cosias. Em casa dele, então, com a Cristina, estava tudo catalogado.

Percebe-se no filme que sim.

Ele tinha muito isso, mas ela fez também esse trabalho de juntar as coisas, catalogar, que acho que é importante, porque o Zé faz parte da história musical do nosso país, é impossível fugir a isso. Acho muito bem que o acervo fique feito, e bem feito, e isso está.

O trabalho de pesquisa de todo o material desde os arquivos da RTP às entrevistas com o Zé Pedro foi feito ao longo de quanto tempo? Ou tinham quanto tempo de imagens ao fim de uma primeira pesquisa?

Há uma entrevista cedida pela Blitz, a RTP tem aquele arquivo mas não é fácil, é preciso procurar. São muitas horas. 

Como é que o filme se foi cosendo a partir daí, de todo esse material?

Foi um processo complexo, porque eu estava na América e o Gonçalo [Castelo Soares, montador do filme] estava cá. Era uma coisa que se tornou a realidade mas que nunca tínhamos feito, nem eu nem ele. Não foi um processo fácil, mas foi um processo trabalhoso. Já nos conhecíamos antes, fomos colegas na Escola de Cinema, havia uma ligação, e acho que ele percebeu muito bem o que eu queria. Neste género de trabalhos em que não há um guião fechado como num trabalho de ficção muitas das coisas também nascem na montagem. 

Mas havia alguma espécie de argumento, uma timeline com momentos-chave?

Havia alguns momentos-chave que queria usar para contar a história, havia vários blocos por assim dizer. A infância, o porquê da música, as outras coisa relacionadas com a música além do facto de ele ser músico, as viagens, a descoberta, a leitura, o amor, que é uma coisa que nele é sempre muito presente. 

Uma coisa que se vê em toda a gente que o conheceu é isso. Fica-se com a ideia de que as pessoas gostavam mesmo todas muito dele. 

Essa é a parte difícil. Não ter o contraditório.

Há qualquer coisa sobre um ligeiro mau feitio, sobre uma teimosia…

Ele era teimoso, mas nele até isso era giro. E se não fossem a determinação e a teimosia dele se calhar os Xutos nunca tinham sido os Xutos e a vida dele não tinha sido o que foi.

Houve novas descobertas nesse processo de remexer, desenterrar, de atravessar arquivos?

O mais difícil aqui nem eram as coisas do Zé Pedro, porque dessas sabia mais ou menos o que havia e o que queria. A dificuldade estava mais no resto, no pintar depois a história, situar a época, todas aquelas imagens que pintam o filme — de Timor, da Guiné, da Lisboa daquela altura, do 25 de Abril, todas aquelas partes…

… o Mick Jagger, o Miles Davis na primeira vinda a Lisboa. 

No Cascais Jazz, que é o primeiro concerto que ele vê, com o pai. 

Essas histórias, o Diogo já conhecia todas? O Miles Davis, a história do Interrail…

Isso quem é mais próximo dele sabe que realmente o ponto de viragem foi aquele. 

Isso percebe-se pelas histórias que eles contam de quem ele era quando voltou. Como aquela história dos avós, que de repente o apresentavam como…

… como «um amigo dos netos» [risos]. Temos de ver isso à época, não é? Lembro-me de que quando era miúdo e usava moicano as pessoas mudavam de passeio, portanto…

E vocês têm uma diferença de idades grande.

Tenho 48, o Zé Pedro teria 62.

Quando ele foi morar para vossa casa…

… eu era miúdo, foi no princípio dos Xutos, teria 7, 8 anos. Ele vivia com a minha tia, a Mizé, e vivíamos todos em casa da minha avó, a Celeste Rodrigues, que aliás foi a primeira morada nos contratos dos Xutos: era a casa da Celeste Rodrigues.

Eles moravam nos Olivais, a família dele. 

Sim, e ele saiu de casa e foi viver para lá, passou a ser o tio Zepas.

Como é que naquela altura um miúdo via uma figura daquelas?

Os Xutos estavam no princípio, devo ter visto o segundo ou o terceiro concerto deles — não vi o primeiro porque foi nos Alunos de Apolo à noite e eu não podia entrar. Mas houve um que foram fazer ao Liceu Maria Amália e eu fui ver esse concerto. Lembro-me perfeitamente. Ele era mesmo boa onda e sempre teve um jeito do caraças com crianças. 

Isso está no filme também.

Tinha um jeitão enorme. Levava-nos sempre ao cinema. As primeiras vezes que fui ao cinema devem ter sido com ele. Era um programa que fazíamos várias vezes: ir ao cinema e, quando comecei a ter idade, aos concertos. Montes de vezes, mas ia sempre um grupo enorme. Lembro-me de vir aqui ao Coliseu a imensos concertos com ele, concertos de bandas que conhecia por intermédio dele, como os Morphine, os Smashing Pumpkins… A primeira vez que os ouvi foi porque ele me pediu para comprar um CD para ele na América numa viagem que tinha feito. «Smashing quê, isso é uma banda?». Os Nirvana: a primeira vez que ouvi Nirvana foi por causa dele. E o Johnny Guitar também era uma escola nesse sentido. Tudo o que era novo passava lá primeiro. 

Em relação à banda sonora, de que quase falámos no início, o filme começa com uma entrevista em que eles eram mesmo muito novos…

… mesmo no início, isso ainda é da altura em que ele vivia lá em casa. 

E depois corta para a Quando Eu Morrer.

Uma música que durante anos eles não tocaram, porque a mãe do Zé também morreu de cancro e eles tiraram aquela música do alinhamento durante muito tempo.

Era a escolha óbvia. Mas aquilo de que queria falar é sobre a música dos Xutos estar presente, mas não omnipresente.

Ainda há umas oito ou nove músicas dos Xutos, assim de cabeça. Ainda são bastantes só que estão partidas — e há imensa música no filme. Mas o filme não é sobre os Xutos, é sobre o Zé Pedro.