Bernard Stiegler (1952-2020). O filósofo que se fez na prisão

Das barricadas do Maio de 68 à paixão pelo jazz que o levou a assaltar bancos e depois à prisão, onde descobriria a filosofia. Morreu ontem, aos 68 anos, um dos pensadores mais instigantes de França, alguém que depois de chegar à filosofia no confinamento de uma cela denunciou a farsa das nossas democracias submetidas ao capitalismo…

Nunca foi outra coisa do que uma consciência indagante e metediça. Tudo lhe interessava, e a filosofia era um modo de afocinhar, investigar as entranhas da vida. Estava nos antípodas dessas figuras reclusas e que preferem não se misturar. Não andava ao acaso, ao sabor de inclinações particulares; era movido por uma impaciência do conhecimento, indo ao encontro desses desafios que tomava como urgentes. Para Bernard Stiegler o filósofo é um batedor, um servo humilde, o cão do seu tempo. E entendeu que o grande confronto dos nossos dias é com a tecnologia, os novos meios que alargaram o campo de acção industrial aos aspectos mais comezinhos da vida quotidiana. Analisou, em particular, os riscos e as transformações que esses avanços estavam a produzir no mundo do trabalho, e previu o fim do modelo laboral que conhecemos.

Em 1968, levantou-se da secretária na segunda classe e juntou-se aos estudantes do ensino superior nas barricadas da rua Gay-Lussac, mas depressa se deu conta de que os polícias não pareciam muito incomodados com as movimentações, e suspeitou que havia ali uma espécie qualquer de arranjo, o que acabou por o empurrar para o Partido Comunista, que abandonaria em 1976, desgostado com “o estalinismo imposto por Georges Marchais”. Durante esses anos, virou-se como podia, nos meios proletários de que era oriundo, sendo o pai engenheiro na televisão francesa e a mãe funcionária num banco, e entre biscates, foi operário, trabalhou num escritório e foi moço de recados de um atelier de arquitectura, trabalhou na agricultura, durante dois anos esteve à frente de uma exploração em Lot-et-Garonne, isto até à grande seca de 1976. Nesses tempos, como ele referiu numa entrevista anos mais tarde, era possível ser-se pobre sem deixar de ter acesso à cultura. Nascido em 1952, em Villebon-sur-Yvette (Essone), das tantas vidas que foi deixando para trás, o que trouxe com ele e serviu de esteio ao seu carácter foram as leituras, a música, o gosto pela história de arte. “A televisão do General de Gaulle foi a minha ama, foi quem meu deu as primeiras noções. Foi ela que me apresentou a Ésquilo e à tragédia grega quando tinha 12 anos.” Nesse tempo havia, de resto, “uma admiração do proletariado pelas coisas da cultura”. 

Depois da seca que pôs fim ao seu idílio como agricultor, Stiegler abriu um bistrô com música ao vivo em Toulouse, convidando músicos de jazz para tocarem lá. “As coisas estavam a correr bastante bem”, afiança Gérard Granel, professor de filosofia na universidade daquela cidade, que estava entre os aficionados que se reuniam naquele espaço, e que tornando-se amigos de Stiegler se orgulhavam de que ele tivesse posto de pé uma coisa daquelas. Quando se monta uma banca para vender limonadas, as coisas muitas vezes falham por questões financeiras, como sabe toda a gente que tenha entretido alguma aventura sem especiais habilitações ao nível do empreendedorismo, e mais orientado para dar largas às paixões e fantasias com que se realizam os homens de espírito. “Do dia para a noite, deixei de ter crédito e a minha agência bancária não quis mais suportar o valor das rendas…” Mas Stiegler não ia deixar que lhe tirassem o chão e o céu ao mesmo tempo, e já que o caixa do banco se pôs com forretices, tratou ele mesmo de ir fazer o levantamento. “Resolvi roubar um banco para pagar os meus credores.” O que talvez não contasse é que lhe tivesse pesado tão pouco na consciência. “A coisa correu tão bem… que lhe tomei o gosto, e roubei outras três agências.” Sempre sozinho porque, como explica, “é mais eficiente, pois não há barafundas depois, na hora de fazer as partilhas.”

Foi esse quarto assalto que acabou por lhe ser fatal. Foi apanhado no acto por uma patrulha policial e sentenciado a oito anos, dos quais acabaria por cumprir cinco. Nem nessa altura Stiegler foi visto a beber de um copo meio vazio, reconhecendo que podia bem ter apanhado 15 anos, isto se não tivesse tido tanta sorte com o advogado que arranjou. E além disso, segundo recordava, na altura a pinga estava a tomar conta dele, e, se não fosse a cadeia, o vício acabaria por levar a alguma enxurrada que teria deixado a sua vida sem perspectivas. Ora, o que lhe aconteceu foi precisamente o contrário. Graças à intervenção do amigo Gérard Granel, que conseguiu a autorização do juiz para lhe fazer chegar uma série de livros, os primeiros três anos passam sem arrastar demasiado os pés, o que não impediu Stiegler de começar a ficar impaciente. Estava farto de ter de dividir a cela com outro tipo, e depois de se queixar e de ninguém lhe dar ouvidos, deu provas da sua determinação e fez uma greve de fome que durou três semanas. Contaria ao “Le Monde” que, por esses dias, estava capaz de se deixar morrer. Acabou por sair da zona de isolamento na prisão de máxima segurança, e voltou a ficar a sós numa cela, e foi então que se perdeu inteiramente nos livros, acabando por decidir aproveitar o tempo que ainda lhe restava da sentença para se matricular na Universidade de Toulouse e fazer o curso de filosofia por correspondência. Como não tinha o bacharelato, teve de passar num exame de admissão, e fê-lo sem dificuldades. Entusiasmou-se e começou a escrever e a publicar, mas também se tornou um mentor para outros como ele, entre grades, ajudando-os a prepararem-se para o exame de admissão.

Mal deixou a prisão, dirigiu-se ao aeroporto de Blagnac, apanhou um voo para Orly e foi directamente para a rua d’Ulm, para a Ecole normale supérieure, onde tinha uma reunião marcada com Jacques Derrida, a quem escrevera encorajado por Granel. Nesse mesmo ano, 1983, foi criado o Colégio Internacional de Filosofia, por Jean-Pierre Chevènement, sendo dirigido por Derrida. Stiegler deu um seminário duas vezes por mês no ano seguinte e, em breve, seria contratado pelo governo para ajudar na criação da exposição “Mémoire du futur”, que teve lugar no Centre Pompidou, em 1988. Foi nesse ano que a Universidade Tecnológica de Compiègne lhe ofereceu um cargo de professor, e Stiegler diz que foi só então que teve a sensação de se ter libertado do seu passado, ter conseguido safar-se, o que não implica que tenha alguma vez renegado as coisas fez, pois sempre valorizou as suas experiências, e via a linha de umas coisas levando às outras.

A OBRA
Caminhamos de forma enérgica, em transe, numa marcha em que mesmo o rumor dos passos, a sua sincronia, enfebrece e alimenta o vigor das passadas seguintes, e, num processo de incúria de todas as coisas, no qual encontramos descanso de um mundo caótico e ameaçador, esse ritmo impõe-se ao nosso ânimo individual, e isto até ao ponto da dissolução. A massa é o nosso destino, e o primeiro sinal disso é o facto de, no mercado dos assuntos humanos, “esse infeliz valor chamado espírito” estar em queda há demasiado tempo, como sinalizou Valéry, a ponto de não se imaginar que alguma decisão nossa possa deter essa ruína, a não ser uma catástrofe que transporte a civilização para lá dos seus fins. Bernard Stiegler estudou as condições da decadência política das democracias hodiernas, e analisou o fenómeno consumista dentro do processo de transformação das sociedades, falando numa hipersincronização dos tempos das consciências. Avisou que a tendência do capitalismo cultural estava a promover uma liquidação do político, ou seja, do poder público enquanto Estado, mas ligou isto a uma tendência mais geral para a fragilização do “processo de individuação psíquica e colectiva onde se formam e se trocam singularidades”. Assim, nesta fase tardia do capitalismo, não só este não transcendeu a lógica industrial que conduz a uma proletarização generalizada das sociedades, mas esse regime cultural significou que todos os aspectos da nossa vida passaram a estar integrados num regime “integralmente computacional” que, para tornar tudo mais escorreito, se aplica na eliminação de todas as singularidades que resistam a ser calculadas como meros valores no mercado das trocas económicas. Por esta altura, se o leitor não abandonou já estas linhas, o mais provável é que o jargão o tenha deixado algo banzado, ou a equilibrar a cadeira nas pernas de trás, em busca de um impulso qualquer, e é precisamente este o risco que nos apresenta uma época ausente de si mesma, que raramente se dispõe a averiguar com frieza aqueles elementos que lhe permitiriam traçar um quadro amplo sobre as tendências que nos conduzem hoje a uma experiência cada vez mais estreita dos problemas que enfrentamos. Se se pode afirmar que somos cada vez mais a geração que se mostra indigna da sua tragédia, um sinal disso é essa tentação de abdicar de um qualquer juízo crítico, e de assumir a urgência de um combate à “liquidação do político e da individuação em que ele consiste”.

Há muito a lamentar na morte prematura deste pensador francês conhecido por ter criado, em 2005, o grupo de reflexão filosófica Ars Industrialis, procurando incitar-nos a repensarmos a nossa relação com a tecnologia e, em particular, com os algoritmos, com todos os aspectos da economia digital que organizam a infraestrutura para as sociedades de controle próprias da era hiperindustrial. Desde 2006, Stiegler estava também à frente do Instituto de pesquisa e inovação do Centre Pompidou. Em Portugal, apenas se publicaram dois títulos de sua autoria – “Descrença e Descrédito” (Edições Vendaval, 2006) e “Da Miséria Simbólica: A Era Hiperindustrial” (Orfeu Negro, 2018). No primeiro, Stiegler vincava que um pensamento só tem sentido se tiver força de abrir novamente a indeterminação de um futuro, e analisou o impasse em que vivemos hoje e como este decorre da deliberada cretinização dos consumidores através dos canais televisivos e de outros órgãos da comunicação de massas. Para este filósofo, a vida humana foi conduzida a um recreio caduco em que os modos de existência deram lugar a um processo adaptativo de sobrevivência, em que vidas singulares se vêem amassadas, rebaixadas a simples modalidades da subsistência. “O homem pode sem duvida subsistir sem existir”, mas é aqui que a miséria simbólica, que passou a ser a condição da larga maioria da população, cria uma condição psíquica e socialmente insuportável, desde logo porque conduz à ruína do narcisismo, o qual, para Stiegler, não deve ser visto como uma patologia, mas como o suporte da psique, do desejo e da singularidade. Face ao modelo em que estamos enredados, o filósofo diz-nos que a democracia não passa de uma farsa, e o espírito vai desistindo de si entre sucessivos momentos de descrença e descrédito.

Stiegler deita por terra as ilusões de uma suposta sociedade pós-industrial, denunciando como uma fábula que encantou pensadores e serviu de álibi a tantos agentes políticos. Era a ideia de que o homem estava a caminhar para um acréscimo do “tempo livre”, adquirindo condições para desenvolver uma civilidade reinventada, afirmando uma nova vontade de futuro, mas se os sociais-democratas se congratulavam com a ideia de que tínhamos superado o período das massas trabalhadoras, e que as classes médias haviam reclamado uma nova forma de dignidade, com a sociedade do lazer e do individualismo, afinal, o consumismo desenfreado veio provar que se tinha instalado um novo sistema de controle, já não repressivo, mas depressivo, em que tecnologias como a rede televisiva ou as redes sociais, vieram promover uma padronização das existências, levando a comportamentos cada vez mais gregários e que resultam na perda do indivíduo. Assim, estes instrumentos de controlo social são sinais da perfeita afinação de um capitalismo que passou a dominar e fabricar todas as peças dos estilos de vida, moldando o quotidiano de forma a servir os seus interesses imediatos, produzindo uma sincronização das consciências e a consequente padronização das existências, que marcham segundo o tambor dos conceitos de marketing.

Em “Da Miséria Simbólica”, o filósofo analisa a situação “paradoxal” deste gueto que cresce no seio das nossas sociedades e que permite que exista hoje uma imensa maioria que “vive em zonas esteticamente sinistradas, onde não se pode viver e amar porque se está esteticamente alienado”. Stiegler explica, assim, como a nossa época se caracteriza por esta tomada de controlo do simbólico e como a estética se tornou “simultaneamente arma e palco da guerra”. E uma das noções cruciais para perceber como o marketing opera é retirada de um documento de uma agência de publicidade norte-americana que, em 1955, afirmava o seguinte: “O que faz a grandeza deste país é a criação de necessidades e desejos, a criação do nojo por tudo aquilo que está velho e fora de moda”. Deste modo, o filósofo consegue mostrar como a “criação de gostos é, afinal, aqui a criação do nojo”, e defende que os meios de comunicação de massas e as indústrias culturais não têm feito muito mais do que criar este “nojo” pelo velho e fora de moda, dirigindo a atenção do consumidor para o novo e a novidade.

A notícia da morte de Stiegler teve ampla repercussão na imprensa francesa, mas aí se conteve, e mais do que nos determos perante a inscrição das letras do seu nome, se a sua obra não se oferece ao impulso emocional que rasga uma hora com o enganador e supersticioso peso da morte, é mais interessante pensar que o seu corpo merece ir a enterrar num desses cemitérios isentos de tristeza, que se encontram em frente ou ao lado do dia-a-dia, e não numa zona afastada e recusada. Num texto publicado no Le Monde, em Abril, o filósofo falava da sua experiência de confinamento, dos cinco anos que passou na prisão, comparando-o com este momento em que todos nos vimos forçados a um recolhimento até que o cerco feito pela pandemia se dissolva. Stiegler defendeu que, ao invés de encararmos o vírus e a interrupção do curso vulgar das coisas como um peso, numa ânsia de regressar à normalidade, esta experiência deveria conduzir-nos a uma reflexão de larga-escala sobre a possibilidade e a necessidade de transformarmos as nossas vidas. “Devia ser uma oportunidade para reavaliarmos o silêncio, os ritmos a que nos entregamos por oposição àquelas a que nos vergamos, e a uma parcimoniosa e premeditada relação com os media e tudo isso que, chegando do exterior, distrai o homem do que é ser homem.”