A habilidade de inventar noções que por si só nos transportam no tempo, nos lançam em direcção a novas possibilidades, a liberdades inexploradas, é um dos fenómenos mais curiosos sobre essa forma de expansão do mundo que ocorre em nós através de viragens linguísticas, expressões que se desdobram e trazem um novo alento ou entendimento das coisas. Em 1990, quando Teresa de Lauretis gizou no chão as linhas gerais onde viria a assentar a estação para os infindáveis destinos da teoria queer, foi como se a sensibilidade tivesse atravessado um bloqueio, um cabo tormentoso, abrindo-se uma perspectiva radicalmente nova sobre a forma como cada um de nós representa o seu papel na opereta sexual. Isto para quem se conforma a uma identidade e a goza sem especiais angústias, restando depois, na margem desse enredo principal, uma série de actos trágicos, desafios fantásticos seguidos de purgas, cenas de terror incompreensível, e que nos dizem muito sobre sociedades que continuam a sentir-se ameaçadas, e que se assustam com as instáveis e assombrosas manifestações de um elenco amotinado, recusando-se a ficar prisioneiro da sua narrativa convencional. Esse salto dado há 30 anos, devolveu aquela dose de incerteza que obriga as noções mais comuns a inspirarem mais fundo, a sentirem o seu reflexo tremer, e, como frisou Paul B. Preciado, essa expressão foi um arroubo, uma teoria para a anormalidade, um ramo em que a ciência é forçada a seguir desvios românticos, levar em conta essas formas estranhas que dão densidade à experiência humana. Foi “uma teoria da loucura criada pelos loucos para denunciarem os horrores da civilização da sanidade”, vinca Preciado. Hoje, estamos engolidos pelo vigor dessa espécie de delírio que não apenas se insurge contra um espectáculo pobre que transforma os seus actores em canastrões, como a possibilidade de aderir a um regime mais inconstante da realidade íntima, afectando, desse modo, a própria realidade. Hoje, estamos mais perto de aceitar que, não só a vida é tocada pela transitoriedade, mas que nós, através do ímpeto criador, do ânimo sensível, somos seres da transição, animais capazes de se transformar a si mesmos e ao mundo.
Com o seu sistema de castas, a Índia é um desses países cuja identidade se liga a uma teia de convenções que é de tal modo complexa que se torna extravagante e absurda, risível para um estrangeiro, mas não para quem se vê asfixiado por ela. Com o seu regime de proibições, com a implacável vigilância e o modelo de punição exercida de forma difusa e controladora por uma sociedade que vive submetida a um ambiente de paranoia provocado por três milénios de tradições em que preconceito e superstição foram consolidando um modelo de estratificação social doentio e que leva a que até hoje haja ainda homens e mulheres assassinados por se casarem em desrespeito da ordem social definida pelo nascimento. A Índia é, assim, das nações que mais leva ao palco da vida real encenações cruentas de Romeu e Julieta. E mesmo numa altura em que milhões de pessoas são arrancadas todos os anos à pobreza, e quando há sinais de que aquela sociedade começa a aceitar a transformação, um estudo feito em 2017 revelava que apenas 5,8% dos casamentos indianos transgrediam o regime das castas. As represálias violentas ainda são bastante comuns, sempre em nome da defesa da tradição e da honra, mas o mais curioso é lembrar como esta ordem fundada nas escrituras hindus foi útil às autoridades coloniais para submeter uma nação vastíssima, assaltando o topo da pirâmide e aproveitando-se deste regime hierárquico para desenhar sobre ele a sua estratégia de domínio. Hoje, com a sociedade segmentada em mais de três mil castas, que se organizam segundo as ocupações especificas dos seus membros, estando ainda divididas internamente em cerca de 25 mil sub-castas, os dalits ou intocáveis, que estão na base da hierarquia e representam perto de 17% da população (mais de 1,3 mil milhões de pessoas) estão a conseguir libertar-se de séculos de subjugação, tendo invadido esferas profissionais cujo acesso lhes estava vedado, seja na política, no ensino superior ou nos negócios. Mas para lá das divisões sociais que dão sinais de estar a ceder, a Índia só recentemente deu sinal de estar a abandonar a idade das trevas no que toca a lidar com a homossexualidade. Foi só em 2018 que foi abolida a lei 377, a qual remontava ao domínio imperial britânico, e que condenava a prisão perpétua quem fosse apanhado a praticar actos homossexuais.
A história de um homem terá tido bastante influência na mudança de atitudes que levou o Supremo Tribunal do país a promover a alteração ao Código Penal. Um príncipe que se tornou o único elemento da realeza a assumir publicamente a sua homossexualidade, e que, com isso, enfrentou uma reacção de repúdio popular, de ódio e de humilhação, tendo sido abandonado pela própria família. Nascido em 1965, Manvendra Singh Gohil seria o herdeiro do trono de Rajpipla, no estado ocidental de Gujarat, isto se a família real não houvesse perdido os seus poderes institucionais em 1971. Pertencendo a uma dinastia com mais de 600 anos, ainda que aquele estado não esteja já sob o jugo da família, esta conservou os palácios e as mansões, e Manvendra foi criado para um dia tomar conta dos destinos do reino perdido. Assim, em grande medida as tradições foram preservadas, e a família manteve um papel cerimonial, o que levou o príncipe a passar a maior parte da sua infância resguardado do mundo, numa mansão da família em Bombaim, cercado por um exército de mais de duas dezenas de criados que trabalhavam para a família há gerações. Manvendra poucas vezes viu os pais, e a mulher que até aos 9 ou 10 anos pensou que fosse a sua mãe era uma ama, a mesma que criara a sua mãe. “Até então não me dera conta de que aquela mulher glamorosa que aparecia de vez em quando era a minha verdadeira mãe”, recordou o príncipe numa entrevista recente ao The New York Times.
Dolorosamente introvertido, ainda hoje, aos 55 anos, e depois de ter abraçado o activismo pelas causas LGBTQ, tornando-se uma das figuras mais destacadas no plano global e face a uma das sociedades mais homofóbicas do mundo, Manvendra recordou a solidão desoladora da sua infância, estando proibido de brincar ou sequer ter contactos com crianças que não partilhassem de um estatuto tão privilegiado quanto o seu. Os amigos de infância que foi fazendo eram animais que ia atraindo e resgatando, e apesar de escudado do mundo, isso não o impediu de se dar de conta na adolescência de que se sentia atraído por rapazes. Nesses anos, foi descontando isso como se não passasse de uma fase, sabendo-se destinado a casar com uma mulher e a ter filhos. Em 1991, seguindo a tradição, desposou a mulher escolhida pelos seus pais, Chandrika Kumari, uma princesa da família real de Jhabua. O casamento nunca se consumou, mas isso não impediu o casal de se tornar próximo, até cúmplices, e Manvendra contou à mulher que não sentia atracção pelo sexo oposto. Ao fim de 15 meses, o casal decidiu pôr fim ao casamento, o que já de si causou algum escândalo, particularmente nos círculos reais, mas nada que pudesse preparar o príncipe para o tipo de abusos que se seguiriam. Aos 26 anos, divorciado, virgem, estava mais confuso do que nunca quanto à sua sexualidade, e foi ao regressar a Bombaim que decidiu começar a explorá-la. Foi por essa altura que conheceu Ashok Row Kavi, considerado o pai do movimento pela luta dos direitos gay e o fundador da primeira revista indiana voltada para esta comunidade, “Bombay Dost”. Depois de se ter assumido publicamente em 1977, Kavi fundou a revista em 1990, e, quatro anos depois, criou o Fundo Humsafar, o primeiro grupo dedicado a oferecer serviços de saúde e assistência legal a homossexuais.
Manvendra não se limitou a explorar a sua sexualidade mas deixou-se inspirar pelo trabalho desenvolvido por Kavi, e de forma discreta arranjou os meios para que fosse criada a primeira linha telefónica de apoio à comunidade gay indiana. Uns anos depois, o envolvimento do príncipe tornou-se mais sério, e uma vez mais encorajado por Kavi, usou uma parte do património familiar para criar o Fundo Lakshya em Gujarat, tornando-se uma iniciativa preponderante no apoio à comunidade gay naquele estado. O passo que faltava era o mais difícil: sair do armário. Manvendra sabia que nunca poderia abraçar inteiramente aquela causa ou até viver livremente a sua identidade se não explicasse à sua família a razão por que resistia a casar novamente.
Em 2002, após um esgotamento nervoso, foi o psiquiatra quem o convenceu de que só se libertaria da ansiedade que estava a esmagá-lo se contasse a verdade aos seus pais. Manvendra sabia que os pais não iriam receber bem a revelação, mas o que não supunha era o quanto estes se empenhariam e como moveriam mundos e fundos de modo a limpar o que viam como uma nódoa e uma ameaça terrível à honra da família. Assim, viraram-se em todas as direcções em busca de uma cura para aquela “doença”. Ainda que todos os especialistas e médicos que consultaram lhes tenham garantido que a homossexualidade não se tratava de uma doença nem de um distúrbio mental, rezaram a todos os deuses da ignorância, e entregaram o filho nas mãos de tudo o que fossem curandeiros e charlatões, antes de se virarem para os líderes religiosos ou de cultos. O príncipe foi submetido a diversas formas de terapia e até a tratamentos com choques eléctricos. Manvendra explicaria mais tarde que Kavi o convencera a sacrificar-se ao que quer que os seus pais entendessem que pudesse curá-lo, até que não lhes restassem mais dúvidas de que tinham feito tudo ao seu alcance, e de que não havia nada a fazer senão aceitar quem ele era. Foi a mãe quem nunca lhe perdoou, e além de ter sido afastado da direcção dos negócios familiares, temendo o escândalo, ela ameaçou mover influências para que fossem cortados os fundos governamentais que financiavam o Fundo Lakshya. Foi então que a jornalista Chirantana Bhatt o convenceu de que a sua história era importante e de que contá-la poderia afectar as vidas de muitas pessoas e talvez até mudar as mentalidades no país. A 14 de março de 2006, a entrevista que lhe deu fez manchetes por todo o país, desencadeando manifestações na sua cidade natal, Rajpipla, onde houve várias efígies suas que foram queimadas. Aterrorizada, a mãe comprou um anúncio no jornal de maior circulação para anunciar que o havia deserdado. Ela sabia o golpe para a reputação de uma família real que descendia do conservador clã de guerreiros Rajput que em tempos haviam dominado vastas regiões do norte e centro da Índia. As ameaças de morte choveram e as autoridades do estado ofereceram-se para deixar à sua disposição um destacamento de segurança, mas Manvendra recusou, como recusou esconder-se, e, em breve, começaram a chegar sinais de esperança vindos de fora. Enquanto era cilindrado pela família, pela imprensa e pelo público indianos, não demorou até que começassem a mobilizar-se esforços para que lhe fosse dada visibilidade, e depressa a BBC meteu as suas equipas no terreno e fez uma reportagem com o Príncipe Gay de Rajpipla, que em breve receberia o cognome de o príncipe-rosa. No ano seguinte, foi Oprah Winfrey quem quis tê-lo no seu programa para lhe dar a oportunidade de contar a sua história. Nos anos seguintes, a apresentadora não deixou que se esquecessem dele e voltou a chamá-lo outras duas vezes. Foi também convidado do programa “Keeping Up With the Kardashians” onde o príncipe esteve à conversa com a matriarca do clã, Kris Jenner, e foi também o convidado de honra do festival gay EuroPride, em Estocolmo. Se os indianos se deixam subjugar pela malha de ancestrais preconceitos que faz daquela uma sociedade algo esquizofrénica, entre o deslumbramento com a modernidade e a cultura que vem de fora, o certo é que o público acabou por ceder ao fascínio diante da súbita fama internacional conquistada pelo príncipe.
Nos anos que se seguiram, Manvendra reaproximou-se do pai, o marajá Sri Raghubir Singhji, que lhe doou uma propriedade de seis hectares onde ele criou um centro de acolhimento para os membros da comunidade LGBTQ rejeitados pelas famílias, afastados dos seus empregos ou socialmente ostracizados. A mãe não lhe perdoou ainda. E ainda se zangou com o marido: “Porque motivo lhe deste a propriedade se sabias que ele ia fazer dela um centro para os maricas?”
Manvendra acredita que se a verdade neste mundo pode ter dificuldade em triunfar, pelo menos consegue sobreviver aos seus inimigos. Tem trabalhado com uma série de agências na prevenção do HIV. Chirantana Bhatt, que depois da sua entrevista se tornou sua amiga pessoal, disse ao Times que quando o conheceu ele vivia debaixo de enorme pressão, como um animal acossado, mas que, hoje, vive de forma plena e orgulhosa a sua vida. E, no que toca à sua vida amorosa, Manvendra acabou por voltar a casar. Em 2009, conheceu um americano online, deAndre Richardson, com quem deu o nó em 2013. Vivem juntos na propriedade rural em Gujarat que o pai doou a Manvendra, e se a modesta casa de tijolos onde residem fica uns bons furos abaixo do opulento palácio dos seus antepassados, pelo menos ali o príncipe sente-se feliz. E diz até que pouco lhe interessa saber se irá herdar o título honorário do pai, admitindo que as responsabilidades que este acarreta acabariam por distraí-lo do seu activismo, desse desvio face a uma longa linhagem conservadora, apegada a valores mortos, e que assim voltou a produzir um guerreiro, um anormal que teve a coragem de desafiar os horrores de uma tradição que leva uma mãe a tentar apagar o filho e, depois, a repudiá-lo publicamente para apaziguar esses que, estando vivos, nunca saem da sombra dos mortos.