Que estranho e poderoso fascínio é este que os egípcios exercem sobre nós? De onde vem a forte atração que ainda hoje suscitam?
Não será fácil identificar as origens precisas do fenómeno. Ainda assim, arriscaria dizer que esse fascínio, essa atração, se devem em grande parte ao facto de este povo e a sua civilização serem simultaneamente distantes e próximos de nós – funcionando assim, aos nossos olhos, como uma espécie de ponte entre o passado remoto e o presente.
Disse dos egípcios que são distantes, e não me referia apenas ao que nos separa em termos geográficos ou cronológicos. São-no, sobretudo, pelo quadro mental, pelas crenças bizarras que alimentavam. A preparação das múmias, os túmulos colossais, os rituais minuciosos de sepultamento ou a convicção de que os defuntos tinham de ter comida à disposição e criados para lhes realizar as tarefas na outra vida são outros tantos testemunhos de uma visão do mundo que nada tem que ver com a nossa.
Vejamos agora alguns aspetos que os tornam próximos. "O leite era uma verdadeira guloseima", assegura Pierre Montet em A Vida Quotidiana no Egipto no Tempo dos Ramsés, o livro que me acompanhou nestas férias. A cerveja era a "bebida nacional" e "bebia-se em todo o lado" (se bem que não tinham o privilégio de a beber geladinha como nós). Os faraós eram "grandes consumidores de vinho".
Quanto às comidas, o peixe estava proibido no palácio real, suponho que por ser alimento de pobres. "O galo e a galinha não eram ainda conhecidos, mas a criação e o consumo de aves fazia-se em larga escala", continua Montet. Algumas pinturas mostram uma técnica engenhosa com redes e estacas para capturar as aves.
Tal como entre nós, "o alho era muito apreciado. Heródoto afirma que os operários que trabalharam na pirâmide de Cheops comeram 1000 talentos de prata de rabanetes, cebolas e alhos". "As melancias, os pepinos, assim como os melões, apareciam com frequência nos tabuleiros de oferendas. […] Os autores clássicos afirmavam que a religião proibia que se comesse favas e grão de bico para ensinar aos homens, supõe Diodoro, a privarem-se de alguma coisa. Na realidade, encontraram-se favas, ervilhas e grão de bico nos túmulos", descreve o autor.
Para comer, os egípcios deviam usar muito as mãos, embora tenham sido encontradas belas colheres de madeira trabalhada. As laranjas, as amêndoas, os pêssegos e as cerejas só mais tarde, no tempo dos romanos, chegariam às mesas.
"Nos tabuleiros de oferendas não é raro ver-se belas alfaces verdes. Comiam-nas com certeza como os Árabes comem hoje ainda, cruas com azeite e sal", diz o autor. Como os árabes e como os portugueses, acrescentaria eu.
Chegado o fim da refeição, a singularidade dos egípcios volta a emergir à superfície. "Exibia-se nos banquetes ricos, terminada a refeição, uma figurinha de madeira, colocada num caixão, pintada e esculpida, de modo a imitar um morto, um morto mumificado, claro, e não um esqueleto". O dono da casa mostrava o boneco "a cada um dos convivas dizendo-lhe: ‘Olha-o, e depois bebe e goza o prazer, porque depois de morto serás seu semelhante’".
Este comentário mostra bem a obsessão dos egípcios com a morte. Mas parece entrar em conflito com o sistema de crenças que os levou a construir as pirâmides, a mumificar os cadáveres e a colocar comida, bebida, joias e escravos nos túmulos. Vemos esse mesmo ceticismo manifestado por outro contemporâneo dos Ramsés: "Os deuses que existiram outrora e que repousam nas suas pirâmides, as múmias e os manes que também se encontram enterrados nas suas pirâmides e para quem se construíram os castelos, esses lugares já não existem!" Era, conclui o texto, "como se eles jamais tivessem existido".
Em que ficamos? Afinal os egípcios acreditavam ou não no reino da vida eterna? Confiavam ou não na eficácia das múmias? Possivelmente uns sim, outros não. E outros ainda talvez tivessem dúvidas que nunca conseguiram resolver. Tal e qual como nós, não é verdade?