Hoje temo-los por todo o lado: nos elevadores, nos automóveis, nas portas dos roupeiros e até nas lentes de óculos escuros. São usados na decoração de centros comerciais, de restaurantes e de bares mais ou menos duvidosos, mas também em aparelhos de tecnologia de ponta. O espelho tornou-se indispensável e omnipresente – mas nem sempre foi assim. Outrora um objeto de luxo, durante muito tempo era tão raro e valioso que só os muito ricos a ele tinham acesso e até figurava em testamentos. Tal e qual como uma joia.
A fabulosa História do Espelho é-nos contada por Sabine Melchior-Bonnet num livro com um encanto francês muito próprio, ao mesmo tempo erudito e acessível, detalhado e estimulante, publicado entre nós em 2016 pela Orfeu Negro (tradução de José Alfaro).
Até ao século XVII, Veneza orgulhava-se de produzir "os espelhos mais puros do mundo, encaixilhados em preciosas molduras", refere a autora. E reforça: "Para quem já se mirou num espelho de Veneza não há comparação possível".
Os reis adoravam-nos, a aristocracia imitava os gostos dos soberanos e, com a produção monopolizada pela Sereníssima, a moda dos espelhos provocou em França "uma hemorragia de divisas". Havia que fazer alguma coisa e Colbert, o poderoso ministro de Luís XIV, não poupou esforços nem dinheiro para iniciar uma indústria espelheira no seu país. O processo envolveu o aliciamento de mestres venezianos, contactos secretos, informadores, fugas cuidadosamente planeadas, intrigas, ameaças, agentes infiltrados. E acabaria por dar os seus frutos. Segundo Voltaire, a partir de 1666, os franceses começaram a "fazê-los tão bem como Veneza". Graças a certos progressos técnicos, até de maiores dimensões.
O sucesso foi materializado na Galeria dos Espelhos de Versalhes, apresentada ao público em 1682 – na realidade uma brilhante manobra de marketing para estimular uma procura que sustentasse a indústria recém-criada. "É uma ofuscante acumulação de riqueza e de luzes, mil vezes repetidas em outros tantos espelhos e criando perspetivas mais brilhantes que o fogo", escreveu uma testemunha entusiástica. "Que símbolo mais adequado se pode encontrar para o radioso reino do Rei Sol [Luís XIV] do que esta galeria onde a corte resplandecente de joias se pode olhar e admirar, da cabeça aos pés em todo o seu esplendor?", pergunta Sabine Melchior-Bonnet.
Este esplendor luminoso contrasta, curiosamente, com as associações dos espelhos em tempos mais recuados: "Na Idade Média, a sua forma convexa e a sua cor escura provocam efeitos estranhos, o que lhes vale o nome de ‘espelhos de feiticeiras’, sendo-lhes atribuídos poderes maléficos", refere a autora. As conotações mágicas, simbólicas, filosóficas, teológicas não foram esquecidas e oferecem muita matéria de reflexão.
Li algures há uns anos – e pareceu-me bem observado – que cada livro é um espelho, na medida em que só nos devolve o que de alguma forma já tínhamos cá dentro. Mas daqui em diante, além de ver os livros como espelhos, também os espelhos me trarão à memória este livro. De cada vez que olhar para um espelho, não deixarei de evocar estas páginas reveladoras, com as suas mil e uma cintilações e reflexos deslumbrantes.