“A pandemia afetou mais os pobres, os velhos e os sem cultura”

O antigo ministro Marçal Grilo vai lançar o livro ‘Não tenham medo do futuro’, onde reflete sobre as novas oportunidades e desafios do país e deixa as suas ideias para o desenvolvimento de Portugal. Também fala nos obstáculos e na necessidade de haver estabilidade política. Mas a Educação não ficou esquecida e alerta para os…

 

Vai lançar um livro com um título curioso, ‘Não tenham medo do futuro’, acha que os portugueses estão com medo dos tempos que aí vêm?

Não são só os portugueses. O futuro é muito incerto, muito imprevisível. Percebo que haja um receio generalizado, mas não tem a ver apenas com a pandemia. A pandemia veio reforçar esta imprevisibilidade que já estava em marcha com o processo de mudança que estamos a assistir. Houve sempre mudanças, a diferença agora é que a mudança é muito rápida e os períodos de adaptação são muito curtos. Há uma grande dificuldade, sobretudo para quem pensa na educação dos mais novos, como é que os formamos. O que é preciso para enfrentar um mundo imprevisível? No fundo, a base do livro é essa, começa por descrever o processo rápido de mudança e o que pode eventualmente acontecer. Mas são tudo hipóteses. Não sabemos com que velocidade é que isso se vai processar, país a país, região a região, setor a setor, etc. O livro o que quer é dar uma resposta a isso. Qual é a resposta? Perante a imprevisibilidade tão grande, a única resposta é os miúdos terem uma grande formação de base.

Passa sempre pela formação?

Sim e interrogo que formação é que os miúdos devem ter. O que é isto de fazermos cidadãos, adultos, que sejam capazes de enfrentar um mundo imprevisível e cheio de incertezas. Assento a formação em três pilares essenciais: os conhecimentos numa perspetiva que aquilo que se pode aprender em termos de conhecimentos é uma infiníssima parte do conhecimento global. Não há um grande debate sobre que tipo de conhecimentos. As pessoas sabem que têm que dominar a língua materna, mais duas ou três línguas estrangeiras, têm que ter uma formação matemática que permita ter um raciocínio lógico. Mesmo as pessoas que não gostam de matemática, todos os dias usam-na. A matemática faz parte da vida e é, além disso, uma matéria muito estruturante do raciocínio. Depois, obviamente, as histórias e as geografias para sabermos o que é que somos, onde é que estamos, de onde é que vimos, o que é o planeta, enfim. As ciências experimentais, as biologias, físicas, químicas, música, artes plásticas, tudo isso faz parte dos conhecimentos e de algumas das capacidades que as pessoas devem ter para depois, por si só, poderem progredir. O segundo pilar, que é o das atitudes e dos comportamentos. É a responsabilidade, a iniciativa, a inovação, a exigência, o trabalho em grupo, a capacidade de se adaptar à mudança, a pessoa ser pró-ativa, não ser passiva. Somos pouco pró-ativos. As pessoas, muitas vezes, vão para as empresas à espera que lhes digam o que devem fazer.

Não tomam iniciativa?

Exatamente. Não quer dizer que uma pessoa chegue a uma empresa e comece a dizer o que é que se deve fazer mas é a pessoa acreditar, a certa altura, que o seu contributo é grande e não ter qualquer constrangimento em fazer propostas. Muitas vezes, as propostas que vêm de pessoas que estão em níveis intermédios são da maior importância para quem decide, para melhorar o funcionamento das coisas. E depois um terceiro que tem a ver com os valores. O sentido ético…

Diz que um dos riscos é a perda de valores…

É um dos pontos que mais preocupa. Sobretudo a falta do sentido ético. Há uma grande falta do sentido ético. É curioso.

Foi-se perdendo com as gerações?

Julgo que se deve a esta vertigem em que as pessoas vivem, esta ideia de que tudo é volátil. A informação corre a velocidade tal que nada parece importante e tudo é importante. Distinguir o essencial do acessório é uma coisa muito importante. As pessoas devem ser – estou sempre preocupado com os miúdos – treinadas para terem um sentido crítico mas que assente em conhecimento das coisas. Não é uma espécie de teoria do ‘achismo’ em que a pessoa acha que…

Tem que ter um fundamento…

Sim, tem que ter um argumento, um fundamento. Sobretudo ser capaz de distinguir o que é mais relevante do que é irrelevante. Normalmente as coisas são apresentadas como sendo muito importantes. Os miúdos são confrontados com as questões essenciais, mas não com as questões que contam para o futuro.

E os programas curriculares estão adaptados para estes desafios?

Uns estão, outros não. Com a idade tenho cada vez mais dúvidas do que certezas e desconfio muito das pessoas que têm muitas certezas. Quando aparece uma pessoa com muitas certezas tenho sempre dúvidas sobre as certezas que ela tem. Relativamente aos planos curriculares, é muito difícil hoje dizer – há umas tendências que temos de contrariar. Por exemplo, está a haver alguma tendência para reescrever um pouco a História como se a História fosse uma coisa que pudesse ser mudada. Não podemos fazer a análise de determinados factos e momentos históricos com o que sabemos hoje, com os valores de hoje e com os hábitos de hoje.

É o caso dos Descobrimentos?

Esse é um dos casos, não faz sentido tratarmos as viagens dos portugueses, os descobrimentos que os portugueses fizeram no século XV e XVI à luz daquilo que são os nossos valores de hoje. Se calhar há uns sítios em que se faz bem e outros em que se faz mal. Agora, em relação à base, se me perguntarem que certezas tenho, tenho algumas. Por exemplo, temos de ter um grande respeito pelos outros, isso não tenho dúvidas. E o ter respeito pelos outros é ter respeito pelas suas convicções, ou pela sua cultura, ou pela sua etnia, pela sua língua, pela sua religião, pela sua orientação sexual, enfim, temos de ter respeito pelas pessoas. O respeitar as outras pessoas é um valor em si mesmo. Não digo que faça parte dos currículos, mas deve fazer parte do comportamento das pessoas. A educação tem de estar virada e assente para os valores.

No livro dá o exemplo do caso das redes sociais que muitas vezes incentivam ao ódio. Aí há a tal falta de respeito por ideias contrárias?

Umberto Eco dizia que as redes sociais são o mundo dos idiotas e dos imbecis. Não vou tão longe. Em 1996 houve uma reunião dos ministros da Educação em Veneza e o ministro italiano convidou-o para um dos almoços. Era um homem fascinante, interessantíssimo e drástico. Umberto Eco era um grande combatente, não diria contra as redes sociais, mas contra a utilização, a maneira como as redes sociais estão a ser usadas por alguns grupos. Grupos sobretudo com objetivos menos nobres, mais perversos. Julgo que as redes sociais têm, hoje, uma grande responsabilidade no funcionamento das sociedades.

As gerações mais jovens têm acesso a redes que há pouco mais de 10 anos não havia…

Os miúdos hoje vivem nas redes sociais. Têm estes TikToks… Já nem falo do Instagram que isso já é tudo banal. Então para eles o Facebook já é uma coisa para pessoas mais idosas. Acho que isto revela que temos que perceber que há mudança na forma como as pessoas se relacionam. Essa mudança é enorme e não sabemos como é que isto vai evoluir. Não temos bem ideia de quais são as consequências, designadamente da utilização da inteligência artificial em não sei quantos setores. Vão existir setores que não serão tão afetados como outros, mas há uns que vão ser profundamente afetados e falo isso no livro porque a ideia de formar pessoas para profissões é muito complicado.

Porquê?

É complicado porque as profissões estão a mudar, há profissões que vão quase desaparecer, não sabemos é quando e há outras que vão nascer. Vão nascer muitas novas atividades. O ser humano foi sempre capaz de perante novas tecnologias, encontrar novas formas de trabalho. Aqueles movimentos, como os ludistas – aqueles operários que desataram a partir máquinas quando elas apareceram porque estavam a perder os empregos – no fundo, em todos nós, há um bocadinho de ludismo, a ideia de que esta máquina vai tirar-me a minha função. Há áreas em que isto é absolutamente inevitável.

No caso das indústrias já acontece hoje em dia. Mas nas escolas já começa a surgir a ideia que o aluno não pode seguir determinada carreira por não ter trabalho…

E a forma como a profissão se exerce altera-se radicalmente. Por exemplo, a forma como trabalhava um arquiteto há 20 ou 30 anos. Hoje trabalha com um computadores, acabaram os estiradores. E a esmagadora maioria das pessoas passa o dia a olhar para um ecrã. Aparentemente a Medicina é uma profissão que não vai desaparecer mas a forma como está a ser exercida hoje já é de uma forma muito diferente do que era há 10 anos. Como é que isto vai evoluir daqui para a frente? A tecnologia está a evoluir.

Até nas próprias cirurgias, já se fala em robôs…

Quando entrarmos em questões do chamado Big Data, em que o número de dados que se tem é de tal maneira grande que o homem não é capaz de tratar estes dados, só as máquinas é que são capazes. E são capazes de fazer diagnósticos fantásticos. A máquina hoje pode fazer diagnósticos absolutamente extraordinários. Não sou médico, mas sou paciente há muitos anos – tive muitas doenças, algumas bastante complicadas – e sei bem o que é a relação entre o doente e o médico e isso é uma coisa que não se deve perder porque há um aspeto que as máquinas dificilmente poderão vir a cobrir que é o afeto, o sentimento, o simpatizarmos e o confiar na pessoa. Nós olhamos para uma máquina, mas ela não olha bem para nós, não se apercebe. Sinceramente, ser tratado inteiramente por uma máquina, que me diga o que tenho, o que vou tomar, não é uma coisa que me convença. Não dispenso uma conversa com o médico. É muito importante ter uma relação de confiança com a pessoa, pois é a ela que entregamos a nossa saúde.

Tanto que quando não se confia tenta-se saber uma segunda opinião…

Uma segunda e, às vezes, até uma terceira. Há uma questão de confiança que, na minha opinião, dificilmente a máquina poderá dar. Não quer dizer que daqui a uns anos, as máquinas não tenham essas capacidades. As funções humanas, segundo algumas escolas, são todas bioquímicas. Desde que se consiga reproduzir bioquimicamente aquilo que são as nossas características poder-se-à… bem, já estou a entrar na ficção cientifica.

Às vezes a ficção científica acaba por se refletir anos mais tarde…

Estamos além da ficção dos anos 50, 60. Por exemplo, o 1984 de George Orwell, é feito nos anos 30 ou 40 e era um livro de ficção que assentava num determinado tipo de tecnologia. Essa tecnologia está ultrapassadíssima. A ideia do chamado Big Brother is watching you, o watching you não se faz através da televisão, faz-se através destas coisas todas fantásticas. Eles sabem tudo o que fazemos e tudo o que gostamos. Hoje, o número de dados que têm sobre uma pessoa é tão grande que, por exemplo, um supermercado é capaz de recolher tudo aquilo que comprou durante cinco anos e é capaz de dizer ‘esta pessoa gosta disto’. E dá-lhe uma coisa que nunca comprou e você gosta. Isto é que é mais aterrador, que é traçar o perfil da pessoa e dizer ‘este tipo quer isto’. Isto já se faz na política. O caso da Cambridge Analytica, que trabalhou para Trump em 2016 e no mesmo ano para o Brexit e conseguem num eleitorado de 10 milhões de pessoas, fragmentar o eleitorado, dizer que uns gostam de um e outros gostam de outro… Depois as mensagens são direcionadas e só dizem as coisas que aqueles tipos gostam. Não tenho redes sociais, escrevo à mão e quando alguém põe um like, esse like vale imenso. Os likes que põem no Facebook estão todos contabilizados na conta daquela pessoa. Eles sabem exatamente o que é que a pessoa gosta. Por exemplo, tenho uma coleção razoável da Segunda Guerra e sempre que pesquiso um livro, eles atiram-me durante dois meses livros da Segunda Guerra que não tenho. Todos os dias aparecem 3, 4 ou 5 livros para ver se compro mais um. Às vezes compro, outras vezes não.

No livro pergunta se a crise vivida este ano vai deixar marcas difíceis de superar. Se lhe fizessem essa pergunta, conseguiria dar alguma resposta?

Acho que a grande marca que vai deixar é um trauma mental muito grande para muitas pessoas. O caso que tenho acompanhado mais é os Estados Unidos, no Reino Unido não tanto, e vê-se o crescimento das doenças mentais e do número de pessoas a pensar no suicídio. Os últimos números são absolutamente aterradores. Uma sondagem que saiu há uns dias dizia que, em alguns estados americanos, 11% da população tinha pensado em suicídio. É uma coisa brutal. E para grupos etários mais baixos, até aos 26 anos ou 30 anos, a percentagem ia para os 20 e tal por cento. Isto é uma coisa muito preocupante.

Em Portugal disparou o consumo de antidepressivos…

Isso deixa uma marca muito grande e sobretudo vai deixar algum receio que as pessoas têm em relação às outras. ‘Será que esta pessoa me vai infetar ou não?’. Há aqui um pouco de desconfiança em relação ao próximo. Depois tem coisas positivas. O teletrabalho, por exemplo, que tem aspetos muito positivos, mas também tem negativos.

E posto em prática em poucos dias…

Tem algumas vantagens porque permite que as pessoas possam viver noutros sítios. Não sei até que ponto é que um país que tem um problema significativo do interior – está muito despovoado, muito abandonado, com muitas pessoas idosas, isoladas, sem voz e isso foi muito notório nos incêndios de 2017, porque eram pessoas sem voz, não havia quem falasse por elas – não pode beneficiar com isto. Se se fizer em Portugal uma verdadeira política de descentralização – não é esta coisa das comissões coordenadoras, não acredito nada nisso – acho que se se levarem para o interior determinado tipo de instituições, isto pode mudar. E com o teletrabalho, pode haver muitas pessoas que podem ir viver para outros sítios e continuarem a dar o seu contributo às empresas. Há empresas que podem perfeitamente fazer quase todo o trabalho em teletrabalho. Empresas de consultoria, por exemplo. Com exceção das reuniões de coordenação, normalmente feitas fisicamente, são mais úteis, olhar para as pessoas é diferente. Acredito muito na empatia, sou muito afetivo. Gosto de falar com as pessoas, estar com as pessoas, tocar nas pessoas…

Mas há muitos trabalhadores que têm receio que possam ver o seu posto de trabalho extinto…

Se o posto de trabalho for extinto não é por estarem em teletrabalho. É porque o contributo deles já não serve. A pandemia revelou muitas coisas e uma delas foi mostrar as enormes desigualdades que existem pelo mundo fora. E os países também são muito desiguais internamente. Se olharmos para os resultados da pandemia, para a maneira como ela atacou, as pessoas mais afetadas foram os mais frágeis: os mais velhos, os mais pobres, os mais afastados da cultura, os que tinham empregos menos qualificados, os que viviam em zonas mais desprotegidas. Isso foi em todo o mundo, não foi só aqui.

Com a pandemia percebeu-se que algumas crianças do interior do país não tinham acesso a um computador.

Calcula-se – não tenho números exatos – que cerca de 150 mil miúdos não tenham tido acesso a aulas, nenhum contacto através de ipads, computadores. Isso, para elas, deixa uma marca. Uma das razões porque fui muito defensor deste ensino presencial, mesmo com os riscos que ele tem, é que a perda de um ano de um miúdo neste seu processo de formação, pode ter consequências muito graves para ele no futuro. Mesmo mais tarde quando for adulto. Até há um estudo – hoje em dia há estudos para tudo – que saiu há relativamente pouco tempo que dizia que a perda de um determinado período do ano tinha uma consequência quantificada em termos de rendimento que essa pessoa poderia vir a ter ao longo de toda a sua vida. E era uma coisa significativa. Eram para aí 3 ou 4% daquilo que a pessoa pode vir a ter como rendimento global.

A par da pandemia a economia enfrenta também esses sérios riscos como a taxa de desemprego, queda da economia…

Estamos a falar de uma situação próxima do trágico porque em termos de desemprego, julgo que estamos ainda longe daquilo que podem ser os dados reais. O que foi definido praticamente em toda a Europa foi tentar aguentar as empresas e o emprego no nível mais alto possível através de apoios do Estado. Quer para as empresas sobreviverem quer para manter os postos de trabalho. O layoff teve como grande objetivo manter as pessoas ligadas à empresa e com o mínimo de rendimento para poderem sobreviver, para poderem viver. Quando este processo terminar, e se a pandemia não estiver completamente dominada, o que é provável, vamos ter aqui níveis de desemprego certamente mais elevados.

O layoff acabou por mascarar um pouco a realidade…

Não é uma questão de mascarar, é tapar um buraco. O que estamos a fazer é tentar reparar os danos que isto causou. Isto causou um dano enorme. Mesmo o ensino que se fez, o funcionamento das escolas por sistemas tecnológicos foi mais um ensino remoto de emergência. O ensino à distância tem outro tipo de regras. O ensino remoto de emergência foi os professores saltarem para a frente do computador, os miúdos saltarem para os computadores nas casas deles – os que tinham – e passava a haver uma ligação através de um meio tecnológico. Isto não é ensino à distância. Isto foi um remendo, foi tentar diminuir ao máximo o dano introduzido aos miúdos. Estes miúdos têm um dano na sua formação. Vai faltar-lhes qualquer coisa. Por isso tão importante neste início de ano e, se não o fizerem deviam fazer, encontrar as lacunas que cada um tem, as insuficiências que cada um tem e encontrar a fórmula capaz de ultrapassar esses condicionalismos que os miúdos trazem do prejuízo que tiveram do ano anterior. Vai ter de haver um período – não sei se um mês, se dois – em que tem de se fazer uma recuperação destes miúdos.

Por isso defendeu o ano neutro?

O que disse foi que poderia ser um ano neutro porque este ano, no fundo, acabou por ser um bocadinho um ano neutro com exceção do 11.º e 12.º ano em que houve exames. No resto foi um bocadinho mais a ver como é que a coisa ia andando. Agora é preciso que as escolas sejam capazes de encontrar os planos de recuperação.

As escolas estarão preparadas?

Acho que vai depender muito. As escolas são todas diferentes umas das outras. Há escolas que reagem muito bem e têm uma grande capacidade. O que é preciso para uma escola funcionar bem? Tem de ter uma grande liderança, um corpo docente minimamente estável e coeso e depois ter um plano, um programa educativo, adaptado à comunidade que serve. O projeto educativo é uma espécie de um documento guia que a escola produz e que deve resultar de uma grande interação com a comunidade. E o que é a comunidade? São essencialmente os pais – que são os responsáveis pela educação dos miúdos.

Há pais que às vezes remetem isso para os professores.

Às vezes chutam para os professores mas aí são pais que se demitem da sua função. O projeto educativo tem de refletir isso. Não é a mesma coisa uma escola numa aldeia perdida algures no centro do país com uma escola na Avenida de Roma. São comunidades diferentes, têm preocupações muito diferentes e ambientes familiares muito diferentes. Mesmo em determinadas zonas, onde o nível de desemprego é muito alto, estes miúdos têm um enquadramento familiar muito diferente de outros. Os projetos educativos são todos diferentes e têm de estar adaptados à comunidade. Quem tiver isto bem feito, a escola funciona.

Com a ideia do desemprego se calhar há cursos e talentos que ficam em pausa …

No livro procuro dizer que qualquer curso que façam, façam-no bem feito. Esta ideia de que um curso de História não tem saída, um curso de Filosofia não tem saída não faz sentido. Sou engenheiro mecânico. Fiz o curso em 1966. Hoje, se me metesse numa fábrica, fosse do que fosse, não fazia rigorosamente nada. Tinha de aprender tudo. E pergunta-me se eu era capaz. Sou, ainda sou capaz, apesar dos meus 78 anos, ainda sou capaz de pegar numa matéria e estudá-la desde o princípio porque tenho uma formação base.

A diferença é que evoluiu tudo muito…

O resto é que andou tudo a uma grande velocidade. Se pegarem, um médico operador do século XX e levarem-no hoje a uma sala de operações ele não é capaz de fazer nada. A única coisa que deve conseguir é distinguir o bisturi do resto. O resto é chinês. Se o tipo souber muita anatomia e souber exatamente qual é a técnica operatória, independentemente dos aparelhos, em dois meses está a fazer o mesmo que fazem os de hoje.

Voltando às escolas. Foi notícia que abriu uma há uma semana e já fechou. Corre-se o risco de fecharem mais?

Vão existir várias. Cada escola tem de ter um plano de contingência porque a pandemia não parou. Sempre que ocorre um caso, é preciso saber exatamente o que se deve fazer.

Aí voltamos à estaca zero..

No outro dia, por Skype, falei com os professores da Lousada e disse-lhes que este é talvez o ano letivo mais difícil que me recordo.

Não poderá haver divergência entre ensino público e privado?

A Escola Alemã foi das primeiras a ter de mandar 70 miúdos para casa. O vírus não distingue as escolas públicas das escolas privadas.

Podem ter menos alunos por sala…

Não penso que a diferença seja entre o público e o privado. As diferenças dentro do público são muito grandes e dentro do privado se calhar também. Vão haver escolas que vão ser capazes de reagir ou que vão reagir de uma forma e outros irão reagir de outra. Estou preocupado com a situação global. É uma situação muito delicada e difícil.

Têm surgido movimentos contra as regras da DGS, principalmente no caso do pré-escolar…

Há sempre gente que está contra qualquer coisa. Nunca é nada consensual. Também há gente contra as vacinas. Há milhões de famílias nos EUA contra as vacinas. As pessoas são inconscientes relativamente àquilo que é o papel que podem ter não perante os filhos mas perante os amigos dos filhos e dos colegas dos filhos. O perigo dos movimentos anti-vacinas é que eles não se estão a proteger a eles próprios, eles estão é a desproteger os outros. Na minha opinião são atitudes, não quero dizer criminosas, mas são, pelo menos, irresponsáveis. Relativamente aos movimentos contra as máscaras: isto das máscaras… é muito complicado dizermos a um miúdo de 3, 4 anos, que tem de andar com uma máscara.

E a distância do amigo…

É muito complicado, são situações nos limites dos limites. Não sei, sinceramente, como é que se faz, numa sala em que estão 20 ou 15 miúdos, como é que se evita que não estejam próximos uns dos outros ou não que brinquem com os mesmos carrinhos ou legos. São situações muito complexas para as quais ninguém está preparado.

Mas isso não dá noção que se está a roubar um pouco a infância de algumas crianças?

Estamos. É um dos traumas que referi há pouco. A escola não é apenas um sítio onde se vai para aprender qualquer coisa. É um sítio onde as pessoas socializam. E o pré-escolar nessa matéria, como digo no livro, cito um autor americano, que diz: ‘Tudo o que preciso de saber aprendi no jardim-de-infância’. É capaz de ser um pouco de exagero mas em termos de valores é verdade.

É considerado o pai do pré-escolar…

Debati-me muito por isso. Fui dos pouquíssimos privilegiados da minha geração que tive pré-escolar em 1945. Tinha 3 anos e fui para um pré-escolar, em Castelo Branco. Aquilo marcou-me de uma forma imensa. Acho que o pré-escolar, teve para mim, uma influência decisiva na minha vida. O jardim escola era uma coisa quase encantatória porque vivia numa família muito conservadora e muito fechada, dávamo-nos só família com família, não tínhamos contacto com o exterior e o pré-escolar deu-me uma visão diferente, o contacto com a música, com as histórias, com as letras, cores, formas, as visitas que fizemos, idas aos jardins. Castelo Branco era uma aldeia em 1945. Ainda sei o nome de todas as educadoras. Só mais tarde é que reconhecemos isso. Acho que foi tão importante quanto foi o liceu, ou o Técnico. Por isso, insisti muito no pré-escolar. Foi antes de estar no Governo, sobretudo quando estive no Conselho Nacional de Educação. Fez-se um grande estudo sobre a educação pré-escolar e depois tive a oportunidade única de ter participado naquilo que foi um dos grandes objetivos da minha passagem pelo Governo que foi a educação pré-escolar. Fizeram-se as leis todas, pôs-se aquilo a funcionar e arranjou-se o dinheiro, que era o mais importante.

No livro também aborda questões económicas e aponta a localização geográfica como positivo, quando muitos criticam a nossa periferia…

Tem um lado positivo relativamente ao mundo global e menos positivo em relação ao centro da Europa. Quer dizer, os custos em relação ao centro da Europa são altos, estamos na periferia, não estamos a uma 1h de Bruxelas, nem de Paris nem de Berlim, como estão outros países, mas temos uma localização que nos permite ter o mar e ter um papel na gestão de uma plataforma continental fantástica que o país vai ter acesso entre um a dois anospara ser uma espécie de ponte mais próxima da Ásia relativamente àquilo que são os países exportadores do sudoeste asiático, sobretudo com a abertura do canal Panamá, que duplicou e o grande transporte é o marítimo. Tudo o que vem do sudoeste asiático e que passa pelo canal Panamá, o sítio mais próximo somos nós. O porto de Sines é uma porta de entrada muito pesada. O que implica e penso que António Costa Silva tratou razoavelmente é a nossa ligação e relação com a Europa, designadamente através do transporte ferroviário.

A tal alta velocidade…

Não diria que é só a alta velocidade, não vou entrar nessas questões se são 400 km por hora ou 250 km por hora, o que importa saber é como conseguimos pôr as coisas que aqui chegam rapidamente no centro da Europa, através de Espanha. Essa vantagem existe, todo o transporte marítimo pode ser uma vantagem para nós. A nossa situação também nos permite ter uma relação transatlântica com os EUA, que julgo que é uma relação que a Europa não pode perder, seja com Trump, seja sem Trump.

Outra das vantagens apontadas diz respeito à estabilidade política. Estamos quase em tempo de entrega do OE 2021 e os partidos de esquerda já disseram que não vão assinar um cheque em branco. Essa estabilidade poderá ser posta em causa?

Acho que é mais difícil agora do que foi no passado. Penso que é um fator que tem de ser preservado, mas não sacrificando tudo. Não sou um grande entusiasta desta relação do Governo com o BE e com o PCP, mas percebo que aqueles quatro anos foram anos de grande estabilidade. O país ganhou uma grande credibilidade externa, conseguiu aquilo que nunca se tinha conseguido que foi ter um superavit orçamental. Aquilo que desejo sinceramente é ter uma estabilidade até ao fim da legislatura. Parece-me difícil sinceramente, as condições hoje são diferentes em relação à legislatura anterior. António Costa tem tido a grande virtude de ser muito hábil na maneira como faz esta negociação. Precisamos sobretudo de muito bom senso por parte de todos. Estamos a um mês de apresentar o plano de recuperação em Bruxelas e esse plano tem de ter o acordo do PS e do PSD, pelo menos. E deverá também ter o apoio de outros partidos porque precisamos de uma espécie de acordo de regime nessa matéria.

Diz no seu livro que constitui uma oportunidade talvez única…

Acho que é única e não sei se é a última. Estamos a falar de qualquer coisa como seis mil milhões por ano, que é um número brutal e para um período que vai envolver vários governos diferentes. E havendo vários governos diferentes deveria haver um grande acordo. Estou convencido que o bom senso vai prevalecer.

E como vê o plano de Costa Silva?

É um plano de recuperação em que há coisas em que todos estarão de acordo e outras não. É preciso maximizar as convergências e minimizar as divergências. Acho que há campo para termos muitas convergências entre os vários partidos. Há coisas que são de interesse nacional. Os partidos interpretam o interesse nacional, o objetivo tem de ser esse.

É a tal ‘bazuca’?

Não sei se é bazuca, mas é uma quantia muito grande. É um salto absolutamente louco, é passar para o dobro. A minha preocupação é como é que o dinheiro vai ser aplicado. Qual é o método? Porque se este dinheiro é distribuído por várias capelinhas, o impacto vai ser muito baixo. Julgo que isto tem de ser feito de forma muito dirigida, muito transparente para percebermos bem o que se está a fazer e porque é que se está a fazer. Tem que haver uma monitorização deste processo, tem de haver muita competência técnica para se fazer isto e tem de se perceber que há muitos interesses na captura destes financiamentos. É preciso distinguir os investimentos que são de verdadeiro interesse nacional e os que não são. E esse é um trabalho que tem de ser feito ao longo deste período de uma forma sistemática e com informação permanente às pessoas. Temos apoio financeiro, temos uma estratégia – quer se queira ou não – o documento do António (trabalhei 15 anos com ele) tem um conjunto de propostas que me parecem coerentes, pode-se não estar de acordo com tudo, há certamente muitas coisas que podem ser limadas e temos um Banco de Fomento que teoricamente vai ter um papel importante nisto. A questão principal para mim é como é que isto se faz. Na semana passada defendi e volto a defender que o Governo, seja ele qual for, tem de ter um ministro de Estado só para fazer isto, que fizesse toda a coordenação, não quer dizer que centralize a execução toda, mas que centralize tudo o que é o processo decisório. Devia haver uma unidade dependente do primeiro-ministro, um ministro de Estado que pudesse ser o garante de toda a ação, porque este dinheiro tem de ser aplicado de uma forma eficaz, tem de ter um impacto real. Não pode ser para tapar buracos. Há áreas em que é preciso dar uma volta.

Nas notas finais do livro fala na necessidade da reforma da segurança social…

Tem de haver vontade política para mudar porque o sistema de Segurança Social é uma área muito importante para as pessoas. Temos a Saúde, a Educação e Segurança Social como três bases dos setores sociais que são muito importantes e em que o Estado tem um papel muito importante. E no caso da Segurança Social há que garantir a sua sustentabilidade não é para os próximos dez anos é para garantir para os próximos 50, 60 ou 70 anos. O ministro Vieira da Silva fez uma reforma muito importante há uns anos, mas evidentemente os processos de reforma nunca estão terminados. Há muitas coisas que vale a pena pensar. Por exemplo, o processo de robotização das empresas como é que vai ser taxado? Os robots vão pagar Segurança Social? Os robots não se reformam, mas este robô tirou daquele sistema uma série de contribuições de trabalhadores. Temos de perceber qual é o tipo de Segurança Social que criamos quando alterarmos radicalmente o funcionamento das empresas e dos processos produtivos.

E também defende a reforma do ato eleitoral?

A lei eleitoral que temos vem de 1975 e pode ser aperfeiçoado, não é preciso ir muito longe para perceber que há medidas que alguns países já tomaram nessa matéria. Por exemplo, os alemães têm um processo que funciona de forma diferente do nosso, em que é possível combinar uma maior proximidade entre o eleito e o eleitor através dos círculos nominais e ter ciclos nacionais que fazem uma espécie de compensação em relação aos partidos. Isto com o objetivo de evitar o que acontece hoje porque se olharmos para o Parlamento, os deputados que lá estão prestam contas aos líderes dos partidos que os meteram nas listas. Eles prestam menos contas aos eleitores e prestam mais contas ao partido que os nomeou para aquele cargo. Não lhes pedimos nada, mas eles também não nos dizem nada. Este modelo não é muito atrativo para votar. Os partidos são indispensáveis à democracia, não há democracia sem partidos políticos, mas os partidos políticos têm de ter a noção que não são uma espécie de proprietários da democracia, os proprietários da democracia são os eleitores. Quanto maior for a ligação que possamos ter aos políticos que elegemos melhor será a democracia.

E evitar populismos?

Sim, que estão a começar. O que ocorreu em França, em Itália está a chegar a Portugal, ainda que esteja a chegar mais tarde. Os partidos nacionais populistas estão a crescer. Vamos ver o que vai acontecer com a eleição do Presidente norte-americano. A reeleição do Presidente Trump será um grande impulso para os movimentos nacionais, mas a derrota de Trump será um recuo para estes movimentos.

É o caso do Chega?

Apresentou-se como anti-sistema e basta olharmos para o programa do Chega e a primeira coisa que diz é desmantelar a terceira República. Estou convencido que a maioria dos eleitorados são moderados, mas há sempre aqueles que procuram puxar as coisas para os extremos.

É formado em engenharia, mas dedicou a sua vida profissional a melhorar a educação em Portugal. Como ocorreu esta mudança?

Fiz 10 anos no Laboratório de Engenharia Civil e no Técnico. Doutorei-me em 1973 e mantive-me nos dois sítios, fui especialista no LNEC e depois dediquei-me à Educação em 1976. Nessa altura, fui convidado para ser diretor-geral do Ensino Superior e depois dediquei-me à Educação.

E chegou a ministro no Governo de António Guterres…

Entre 1995 e 1999.

A sua maior dor de cabeça foram as propinas?

Não diria que tenha sido uma dor de cabeça. Foi aquilo que teve uma repercussão pública maior, porque era uma reforma que era necessária fazer. O Governo anterior – de Cavaco Silva – tinha feito uma lei de propinas que introduzia uma grande perturbação nas universidades porque o valor da propina dependia do rendimento das declarações de IRS. Era uma coisa muito complicada, o que procurei na altura, foi fazer uma lei de financiamento do ensino superior, em que havia uma comparticipação dos estudantes e das respetivas famílias feitas com um valor que era uma taxa fixa.

Mas não evitou os protestos na Av. 5 de Outubro…

Tive imensos protestos. Mas alguns que protestaram são hoje meus grandes amigos. É o caso de Zita Henriques e de Fernando Medina que era presidente da Federação Académica da Universidade do Porto. E não foram só estes. Ninguém deve ficar de fora por razões económicas. Nenhum estudante que queira e possa entrar no ensino superior deve ser impedido de o fazer por não ter dinheiro para pagar as propinas e para isso é que existe a ação social escolar e é para isso que o Estado deve pôr dinheiro. As propinas sempre existiram em Portugal, mas eram muito baixinhas. Com a ideia de ninguém pagar estamos a dar um grande benefício a quem não precisa que são as pessoas que têm meios para poderem pagar.