Numa das vinhetas da Mafalda, Quino mostra-nos os estragos feitos pelo Gui depois de uma endiabrada sessão em que deu uma de Miguel Ângelo atirando-se às paredes da casa, garatujando-as nesse impulso que fica a meias entre deitar cá para fora a sombra da sua imaginação e a alegria simples de sujar tudo. Quando a mãe dá com aquilo, fixa atónita a obra de vandalismo inocente (?) do filho, e, sem se encolher, a reacção deste é um prodígio de malandrice e de deslumbramento. Em tom de pasmo, diz: “Não é incrível tudo aquilo que pode caber dentro de um lápis?” E aqui temos um desses momentos em que a risada tem um vigor insurrecional, e sentimos que é o próprio Quino quem se identifica com aquela frase. Havia no seu trabalho esse compromisso com a irresponsabilidade, essa semente de rebelião que cresce desde os dias em que a criança se mostra como “um incêndio atrás do prato de sopa” (Jorge Fallorca). Assim, à medida que os seus poderes de observação se vão intensificando, a sopa deixa de ser esse caldo que nos obrigam a engolir, e ganha o peso de toda uma realidade opressiva, e recusá-la torna-se um gesto político. Como viria a demonstrar o criador da Mafalda que, em 1976, quando a ditadura chegou de forma violenta à Argentina, foi forçado a exilar-se. Esta quarta-feira, dia em que morreu e a notícia da sua morte se espalhava, foi como ver aquele traço cobrir as paredes da atenção do mundo, desde as páginas de jornais e redes sociais a tantos outros espaços onde não foi o branco mas o ruído que cessou, sintonizando na influência mundial que teve este artista, que através da banda desenhada soube assumir as suas irresponsabilidades, e que naquelas tiras que iam saindo diariamente nos jornais, conseguiu manter um diálogo vital com gente de todas as idades, espevitando esse sentido arteiro de olharmos ao nosso redor, de questionar aquilo de que é feita a sopa. E essa módica vertigem de questionar tudo, e de em vez de perguntar o que se pode fazer pelo nosso país, antes virar a coisa sobre a própria cabeça, como incitava Orson Welles, perguntando “o que há para o almoço?”, isso é de tal modo um vício que Quino confessou que não conseguia abdicar do espaço que conquistou. “Quando penso que um dia vou abrir o jornal e não vou dar com os meus desenhos, isso dá-me angústia que me faz sentar à secretária e pôr-me logo a desenhar. É como esse chefe do terminal que se reforma mas que volta todos os dias para ver se os comboios chegam e saem dentro do horário”, disse certa vez numa entrevista ao diário porteño Página/12.
Nascido no seio de uma família proletária, filho de um empregado comercial e de uma doméstica, Quino era neto de uma comunista, e desde cedo foi habituado a encarar com suspeita as movimentações no plano político, não sendo poupado aos horrores que tomavam conta da Europa nos anos da sua infância, fosse a Guerra Civil de Espanha ou a ascensão do nazismo e do fascismo italiano. Isso contribuiu para que toda a sua obra actuasse como uma leitura profunda da realidade seccionada pelos jornais, das relações de poder, das condições de exploração da classe da qual nunca se desvinculou, o que fez com que as suas vinhetas reinventassem o humor gráfico, num exemplo dessa vigilância que a arte deve exercer para não acabar a descascar batatas nas cozinhas do poder. De resto, mesmo quando foi obrigado a deixar o lápis quando começou a ter problemas de visão, sempre que sentia que algum acontecimento implicava de tal modo com a liberdade, perseguindo-a e atormentando-a no recreio, voltava para assinar uma ou outra vinheta. E quando sentiu que o seu nome ou o da sua icónica personagem eram usados para promover ideias com as quais não se identificava, nunca deixou que o sucesso o demovesse de protestar e marcar uma posição.
Joaquín Salvador Lavado Tejón nasceu a 17 de julho de 1932 em Mendoza, uma cidade próxima da cordilheira dos Andes que o próprio descreveu como “o Mediterrâneo: todos eram sírio-libaneses, italianos, espanhóis”. Os seus pais tinham trocado a Andaluzia (viviam perto de Málaga) pela Argentina em 1919, em busca de uma vida melhor. Tiveram três filhos, Joaquín era o mais novo.
Foi logo aos três anos que percebeu o que queria fazer, quando viu o seu tio Joaquín (por causa do qual desde sempre o trataram por Quino, para não se confundirem) desenhar um cavalo. Ficou fascinado quando se apercebeu de “tudo o que saía de um lápis”, contaria ao El País em outubro de 2014. “Em minha casa tínhamos uma mesa de refeições de álamo, uma madeira muito branca, e eu deitava-me de barriga sobre a mesa e começava a desenhar ali. Fiz um acordo com a minha mãe: eu podia desenhar e depois com […] sabão e uma escova daquelas grossas apagava tudo”, diria também ao diário espanhol.
Quino era um miúdo tímido e falava com os pais em andaluz, o que tornava mais difícil ser compreendido pelos colegas e amigos; em contrapartida, talvez isso tenha espicaçado a vontade de comunicar através do lápis.
Ainda passou pela escola de Belas-Artes de Mendoza, que foi forçado a abandonar depois da morte do pai, que o obrigou a encontrar um meio de sustento. Foi então que apanhou do chão esse fio que se revelou a cauda do sonho de se tornar cartoonista. Acabaria por conseguir realizá-lo de uma forma improvável. Começou com uma encomenda de um amigo para uma campanha de publicidade encapotada. As tiras deviam mostrar o quotidiano de uma família, passando a mensagem de como os eletrodomésticos Mansfield eram úteis e fantásticos. Mas o jornal que recebeu a proposta, o Clarín, rejeitou publicar os desenhos. Quino, ainda que sem grande convicção, continuou a desenhar Mafalda, que definiu como “uma menina que tenta resolver o dilema de quem são os bons e quem são os maus neste mundo”.
A série teve um sucesso estrondoso, mas Quino decidiu pôr-lhe um ponto final em 1973, por sentir-se como “um carpinteiro que tem de fazer sempre a mesma mesa, e eu também queria fazer portas, cadeiras, banquinhos”. Aliás, defendia que tinha feito tiras melhores do que as de Mafalda, mas que não tinham sido devidamente valorizadas pelo público. Fosse como fosse, com os seus desenhos aparentemente a brincar, conquistou as maiores honrarias, doutoramentos honoris causa e até o Prémio Príncipe das Astúrias de humanidades em 2004, que recebeu numa cadeira de rodas.
A década de 90 ficou marcada por vários problemas de saúde que o obrigaram a sucessivas intervenções cirúrgicas. Em 2006 a sua mão, que era como “uma criatura com vontade própria”, segunda a jornalista Leila Guerriero, do El País, silenciou-se – o mestre praticamente deixou de desenhar. Já estava quase cego quando em 2017 perdeu a mulher, Alicia, companheira de vida durante 57 anos (casaram-se em 1960 e, por opção conjunta, nunca tiveram filhos). Rodeado de familiares e amigos, regressou à terra onde tinha nascido para se despedir do mundo. É verdade que se considerava-se espanhol, mas, afinal, para ele Mendoza era apenas um pedaço do Mediterrâneo.
Com José Cabrita Saraiva