Maria, 66 anos, parece tão perdida na vida como uma criança. Mais vulnerável do que uma criança. De cabelo tratado e roupa cuidada, quem a vê não adivinha que tenha experimentado alguma dificuldade na vida. Prefere o anonimato. Esconder-se é já a única forma de preservar a sua dignidade. Cerra os olhos rasgados, como se a nostalgia de uma longínqua paisagem lhe consumisse toda a atenção: «Já tive uma vida de luxo, cheguei a ter cabeleireira em casa todos os dias. Não quero que as minhas amigas saibam onde cheguei».
As noites de insónia revelam-se no olhar cavado. Receia adormecer e ser apanhada no sonho recorrente cada vez mais próximo da realidade. Escuta a porta do apartamento pequeno burguês onde vive, no Parque dos Poetas, em Oeiras, fechar-se com estrondo na cara. É noite e deambula na rua vestida de andrajos, num terreno invadido por poças de urina e detritos abandonados. Empurrada na escuridão, sente que os seus pés roçam em corpos estendidos no chão e acaba por se deitar junto deles em cima de uma pilha de velhos jornais.
Maria regressa do pesadelo. Tem os olhos à tona das lágrimas, sente uma enorme tristeza: «É este o meu grande medo, acabar a dormir na rua. Ou ser contaminada e morrer sozinha, sem as filhas por perto». No entanto, nada no seu passado fazia prever este desfecho. Nasceu em Angola, o país era então a joia do império. De uma elite de assimilados, a guerra pela independência na ex-colónia passava-lhe ao lado. O tio, um salazarista, representava o caso invulgar de um negro que chegara a deputado da Nação. E ela, com este apadrinhamento, foi educada no colégio das Doroteias, frequentado pelas filhas da nata colonialista. Concluiu o liceu, mas, ao contrário das irmãs que tinham seguido para a universidade na metrópole, apaixona-se por um alferes miliciano de boas famílias minhotas, com quem casa. Hoje, quando não consegue dormir, ainda escuta as palavras assisadas da progenitora: «A minha mãe dizia que eu estava com pressa em casar. Sempre quis que tirássemos um curso e fossemos independentes. Infelizmente, não a ouvi».
Ele era muito ciumento e não queria que eu trabalhasse
O casal instala-se em Lisboa, e Maria, com um grupo de amigas, mais por desfastio do que por necessidade, ainda tenta pôr o pé no mercado de trabalho. Chega a ter um restaurante, um infantário e um lar de idosos. Mas sempre por pouco tempo. Fazia parte do leque de mulheres que dava o laço matrimonial como coisa adquirida e o marido engrossava o naipe de homens que consideravam que o lugar das mulheres era em casa: «Ele era muito ciumento, queria-me sempre à sua beira. Fazia cada cena que, por mais que eu tentasse, acabava por desistir. Portanto, fui cuidando das nossas duas filhas que, entretanto, se formaram e casaram. Mas ele, de um dia para o outro, conheceu uma mulher mais jovem, seguiu a sua paixão e eu fiquei dependente das minhas filhas que já trabalhavam, tinham filhos. Passei a cuidar dos netos».
Mas o mundo não pára quieto e, nas suas voltas, em plena fase da troika, com Portugal a rebentar pelas costuras, as duas filhas de Maria procuram nos Estados Unidos, a mítica terra promissora, outra guinada da sorte. A mais velha, formada em Direito, arranja emprego no contencioso da Delta Air Lines, e a mais nova torna-se relações públicas numa discoteca. As duas irmãs vivem com prosperidade, pagam a renda de casa da mãe e enchem-lhe a casa de comida. Mas, para não se tornar um fardo para a família, Maria recorre a anúncios e consegue um emprego numa área onde se fecham os olhos aos direitos laborais. Sem contrato de trabalho, e sem a perceção de que há momentos em que a vida humana vale menos do que um chavo, passa a dar apoio a uma idosa: «Ganhava por volta de 800 euros, mais ou menos, Dependia se ficava a dormir ou fazia fins de semana. Não me faltava nada e as filhas, online, faziam-me as compras todas».
Mas o início deste ano apresenta-se como uma conspiração nefasta contra a humanidade. Um novo vírus começa por atacar a China e, rapidamente, como erva daninha, espalha-se por todo o lado. Parecia que o mundo, impreparado para uma grande operação de salvamento, fora governado por uma quadrilha de tratantes. Os hospitais afogam-se em mortes, as vítimas são enterradas sem o adeus das famílias, os países fecham fronteiras e o tecido irracional de que é feita a economia lança milhões no desemprego.
Maria e as filhas perdem o emprego
Nos EUA, onde um presidente insano, perante o inimigo invisível, reagia com artifícios à pandemia, os dois pilares financeiros de Maria desmoronam-se: «Em abril, a filha da senhora onde eu trabalhava diz-me que a situação em Lisboa está fora de controlo e que vai levar a mãe para o Alentejo, onde fiaria mais protegida da covid – e eu fico desempregada. Mais tarde, acontece o mesmo às minhas filhas. Trabalhavam em setores muito expostos à crise. A que estava na discoteca, como foram fechados os espaços noturnos e ela ainda não estava legalizada, não teve direito a nada. E à mais velha a companhia aérea propôs-lhe a reforma antecipada, com uma indemnização que ela não aceitou. Ficou com um horário reduzido de trabalho e a ganhar muito pouco. É ela e o marido, que está em layoff, que ajudam, com o que podem, a mais nova. E ainda há os netos, a estudar…».
Maria precisa de uma pausa, de controlar a respiração e as emoções. Não sabe como foi parar tão baixo na escadaria social: «Ter de pedir para comer, para quem já teve tudo, é uma vergonha muito grande. Senti-me tão pequenina quando fui pela primeira vez buscar comida ao Banco Alimentar. Passei fome até ganhar coragem!». Maria não fazia parte daquela gente silenciosa, posta em tal grau de indigência que já nada tem a perder e conhece as regras da sobrevivência: «Não sabia a quem pedir auxílio. Estava transida pelo medo e pela humilhação. Estive uma semana a dividir um iogurte e um litro de leite. Fazia chá à noite para disfarçar a fome. Foi horrível. Até que me lembrei de uma rapariga que conheci num café já há muito tempo. Vivia mal e eu ia-a ajudando com dinheiro e umas roupas. Tinha-me falado certa vez de uma assistente social que a ajudava muito. Liguei-lhe e, sem dizer que era para mim, pedi-lhe o número de telefone. Tem sido a minha salvação: nesse mesmo dia, arranjou-me logo um cabaz de comida».
A esperança de ir para um bairro social
Maria tinha iniciado uma descida fatal para a qual não tinha qualquer sentido prático. Desconhecia até os seus direitos: «Foi a assistente social quem conseguiu, através dos apoios que o Governo criou na fase da pandemia, inscrever-me num programa de emergência para o pagamento das rendas ao senhorio e noutro que impede que me cortem a luz, a água e o gás natural. Sabe o que é? Pessoas como nós, ficarem sem água para tomar o banho diário a que estamos habituadas! Tenho andado apavorada. Estes apoios estavam para durar apenas até ao final de setembro, parece que o António Costa está a pensar prolongar estas ajudas, mas vamos lá ver o que ainda me falta passar. Tendo a renda paga até outubro, o que é um alívio. Entretanto, como cheguei a ter as minhas empresas e descontei, parece que também tenho direito a uma reforma que eu nem sabia! Agora, a minha esperança é que me arranjem uma casa num bairro social, que o vírus desapareça e recupere o meu emprego. Porque estas benesses não vão durar muito mais tempo».
Maria sabe que está numa situação provisória e há episódios da vida política que sente como um ultraje. Com a indignação no olhar, evoca o momento protagonizado por Inês de Medeiros numa reunião da Câmara de Almada a que preside, em que a autarca, sem ofuscar o seu sentido estético parisiense, elogia as condições da habitação social no seu território, dando como exemplo as vistas «maravilhosas» do problemático Bairro Amarelo. Revelando nada saber da vida, Inês de Medeiros ia mais longe: se pudesse, mudava-se para lá já amanhã. Maria, apesar do estado de espírito de um náufrago, atira a matar: «Brincadeira parva! Pois eu não gostava. Mas não me importava de ir para lá, desde que isso represente ter de novo paz de espírito e dormir descansada».
Em queda livre, a senhora teve de se adaptar às circunstâncias. A ajuda do Banco Alimentar mal chega para o mês. Há que racionalizar e recorrer aos dotes culinários para dar sabor à invariável massa com frango ou atum com arroz, e fechar os olhos aos iogurtes fora de prazo: «Antes olhava para as datas, agora já nem faço isso. Mal não me fazem!».
O drama de Liliane
Como os mais desgraçados, que sempre frequentaram a escola da miséria, Maria ganhou manhas. Quando sente que está à beira de se desmoronar, recorre às velhas amizades. Mas salvar as aparências continua a ser para ela uma preocupação constante: «Aos fins de semana, às vezes, ligo a uma das minhas amigas que não sabem a situação em que estou e digo: ‘Ó Mizé hoje vou passar a tarde contigo!’. Já sei que depois me convida para jantar. A primeira vez que fiz isto, comi, comi, comi. Ai, Felícia, foi tão bom!».
Num apartamento dos arrabaldes de Lisboa, descalça e de pijama, Liliane, 25 anos, segura uma tigela com flocos, ainda por tocar, entre as mãos trémulas. Passa um pouco das 15h, não se sabe há quanto tempo ela está naquela posição, sentada no sofá, em frente ao televisor desligado, sem almoçar e com os cereais empapados no leite já frio. Um súbito rubor cobre-lhe o rosto pálido. O corpo de uma mulher, após o parto, tem diálogos silenciosos, mas visíveis. Nos últimos dias, tem-se sentido inspecionada como se não fosse um ser humano, mas sim um objeto ou um animalzinho e, num tom de voz baixo, vazio de expressão, responde à pergunta de forma quase inaudível: «É o leite que está a subir. Fico quente quando isto acontece. Costumo tirá-lo à noite, com a bomba, para não me doer. Não o vou secar porque ainda tenho esperança de que a Justiça me devolva o meu bebé e possa voltar a amamentá-lo».
Quando há um ano aterrou em Lisboa, vinda de Cabo Verde, Liliana vinha cheia de expectativas. Com uma licenciatura em Literatura Francesa e o sonho de melhorar o futuro com um currículo à prova de ciladas, arranja um emprego na operadora NOS, para conseguir pagar a universidade. Com o companheiro, Gabriel, que vem disposto a deitar mãos ao que puder e encontra solução na construção civil, a rapariga não planeia ter filhos tão cedo. Estão os dois ilegais, sem contrato de trabalho – ou seja, no trapézio entre a sorte e o azar. Mas são movidos pela força dos jovens apaixonados, que enfrentam a incerteza do futuro com uma gargalhada. Sempre com um ar ausente, como se tivesse perdido o rumo, Liliana mantém a conversa com a mesma vontade que tem de comer: «Eu ganhava cerca de 700 euros, dependia dos contratos de fidelização que fizesse por mês, podia ser mais. Vivíamos bem, arranjámos casa e pagávamos 530 euros de renda. Só nos faltava arranjar um trabalho com contrato para nos podermos legalizar».
A covid-19 troca-lhe as voltas
Mas a covid-19 veio desequilibrar um país já desequilibrado, onde o ordenado mínimo é um salário de fome e os trabalhadores precários estão para os interesses das empresas como o rato para o gato. O casal fica sem emprego e, contra as suas perspetivas, ela engravidara. Com o rosto abatido e o corpo enroscado como se não passasse de uma concha frágil e atrofiada, a rapariga subitamente reage: «Eu estava de sete meses quando fiquei desempregada. Nunca tinha pensado em abortar, muito menos abandonar o meu filho. A gravidez não foi planeada, mas fiquei muito feliz quando soube. Comecei logo a comprar roupinhas, a fazer o enxoval do bebé. Só que em agosto já não tínhamos dinheiro para pagar a renda e o senhorio começa a ameaçar-nos com uma ação de despejo».
A criança, um rapaz a quem dão o nome do pai, nasce no final desse mês. O casal está com as poupanças a zeros. A oito de setembro, continuam sem dinheiro para a renda da casa e o proprietário faz o ultimato. Liliana vê-se, entretanto, sozinha: o companheiro lançara mão a um biscate numas obras no Porto, na esperança de se salvarem do naufrágio. O senhorio ainda tem pena dela. Diz-lhe para ficar num quarto na sua própria casa enquanto o marido não regressa. Mas a filha do homem opõe-se. Liliana murmura como se a garganta lhe ardesse em fogo: «Disse que não estava para aturar o choro do bebé. Consegui ficar lá ainda uma semana, até que me meteram na rua na condição de ir lá buscar as nossas coisas quando o meu marido chegasse no fim de semana. Estava sem saldo no telemóvel e não sabia o que fazer. Lembrei-me de uma pessoa da família que morava relativamente perto de mim, sabia o nome da rua, e, como não podia contactar com ela, pensei que conseguia dar com a casa».
Desespero na noite
Já é noite, o filho recém-nascido dorme. Como sempre, retira o leite do peito e enche um biberão para lhe dar a mamada noturna quando ele acordar. Da casa que acabara de perder à casa da prima não é uma caminhada longa: são cerca de seis minutos a pé. Está há pouco tempo em Lisboa, a cidade ainda lhe é estranha, e acaba por se perder. Não tem como comunicar com ninguém, a quem pedir ajuda. Sente-se encurralada. Com ela, leva apenas o saco de maternidade do bebé, com meia dúzia de mudas de roupa, fraldas e o biberão. Pouco mais tem. Com as poupanças a zeros, nem houvera dinheiro para uma alcofinha para o transportar. Vai ao seu peito, bem agasalhado e envolto por um cobertor.
Liliana sente-se tomada pelo desespero. Os ponteiros do relógio marcam 22h30. A noite de setembro de 15 de setembro já estava fria. Imagina-se a dormir na rua com um filho de apenas 20 dias de vida. Estava a umas passadas da casa da prima, mas perdera a noção de tudo – até dela própria, de quem, em parte, se despedia também. Passa por uma igreja Evangelista, as luzes estão acesas e toma uma decisão. Retira da mala um bloco de apontamentos e, numa página, como se fosse o próprio recém-nascido o autor da narrativa, apresenta-o a um destino incerto: «Olá boa noite, desculpe a invasão a essa hora na casa e na vida de vocês de repente… Mas é que a minha mãe me ama muito, a ponto de me entregar para outra família com melhores condições de me adotar. Por favor não julguem a minha mãe, ela só está a evitar que eu sofra junto com ela, estamos a passar por muitas dificuldades (…) Por favor cuidem de mim como um filho de vocês. Só quero amor e carinho. E cuidado, por favor não me maltratem!».
Com a voz num fio e a palidez a retocar-lhe o rosto, Liliana recorda o momento: «Subi umas escadas de pedra, deitei o meu filho num banco perto da porta. Depois fugi, toquei à campainha no portão da entrada, escondi-me. Só saí de lá quando vi a porta a abrir e uma senhora a pegar nele ao colo. Só umas horas depois encontrei um senhor e tive coragem de lhe pedir o telemóvel para ligar à minha prima. Estava tão perto. Arrependi-me logo nesse dia. Mas, como estava ilegal, tive medo de ser presa. Só no dia seguinte me apresentei na maternidade onde o meu filho nasceu. Agora estou à espera da decisão do tribunal, se o volto a ter comigo ou não. Não consigo comer nem dormir. Ouço-o a chorar pela casa a toda a hora».