Maria da Paz roda a chave e abre a porta da instalação que em breve vai receber um casal de saguins bicolores, uma espécie da Amazónia altamente ameaçada. «Cuidado com a cabeça», avisa a nossa anfitriã, que há perto de 28 anos trocou a Escola de Belas-Artes pelo Jardim Zoológico. Nesta espécie de grande gaiola há plantas e ramos por todo o lado. «Isto é um espaço para animais, as pessoas têm que ter cuidado para não furarem olhos ou magoarem a cabeça», comenta a tratadora de primatas.
E pára junto daquilo que, aos olhos de um leigo, parece apenas uma estrutura de madeira esburacada. «Este é o famoso hotel de insetos», anuncia. Cada um dos buracos que vemos será como um quarto. «Sendo os saguins uma espécie que explora muito e se alimenta de insetos, achámos por bem construir este ‘hotel’, que além de servir para a preservação dos insetos que temos, é também interessante para a espécie forragear, para estar ocupada. Até pode ser que não liguem nenhuma, nunca sabemos». O que para uns é um hotel, para outros será um restaurante: o menu é composto por gafanhotos, grilos, tenébrios (larvas do trigo e da farinha) e talvez algumas formigas.
O espaço destinado ao casal não é muito grande, mas tem tudo o que a espécie precisa. Tem zonas de sol e de sombra, humidade, recantos para explorar, aspersores que simulam a chuva, pontos de aquecimento para quando o tempo arrefece. «Ainda não temos o clima da Amazónia», comenta a tratadora, que além de alimentar e de zelar pelo bem-estar diário dos animais, prepara os habitats, faz a manutenção das plantas, escolhe os troncos, divide os espaços e até constrói túneis que permitem observar estes pequenos animais ao pormenor caso eles tenham algum problema.
«Normalmente estes saguins dormem em buracos nas árvores. Não temos aqui buracos nas árvores, mas temos ninhos de madeira», explica. Antes de irem para a nova casa, os animais passam algum tempo a dormir nesses ninhos, para que eles fiquem com o seu cheiro. «Quando vierem para cá trazem esse mobiliário com eles». Tal e qual como nós.
Além do famoso hotel, continua Maria da Paz, «espalhamos insetos vivos pela instalação e às vezes entram também aves – pardais, corriças – e havia um comportamento giríssimo que era eles caçarem as corriças e os pardais. Era um comportamento natural. Significa que a instalação corresponde exatamente àquilo que eles necessitam. Como são pequeninos, normalmente a alimentação é cortada, mas também penduramos maçãs inteiras, o que estimula o agarrar do fruto».
Uma prova de como a instalação é adequada é que a mãe da fêmea que agora vai ocupar a instalação bateu um recorde de longevidade: 24 anos. «Se tudo correr bem», prevê a tratadora, «daqui a um ano temos quatro ou seis animais». Normalmente nascem gémeos, para que pelo menos um sobreviva no caso do outro morrer, até porque esta espécie pequena tem, na natureza, vários predadores.
À saída, perguntamos à tratadora: e a instalação não vai ficar com o nosso cheiro? «Não, porque eu vou limpar tudo. E além disso, também não se vão roçar nas árvores, pois não?». Segue-se a entrevista com Maria da Paz.
Há quanto tempo trabalha no Jardim Zoológico de Lisboa?
Está a fazer 28 anos.
Lembra-se do seu primeiro dia de trabalho?
Claro. Vim para cá à procura de um trabalho temporário para conseguir dinheiro para continuar a estudar. Entretanto apaixonei-me e fui ficando, era para ser temporário e tornou-se definitivo, porque isto é um trabalho muito envolvente e não há rotinas, é um estímulo diário.
Na altura foi logo para os primatas?
Não, iniciei-me nos pinguins e nas otárias do Cabo. Ao fim de um ano fui para os primatas e dediquei-me completamente a eles. Não gostava muito dos macacos por serem parecidos connosco, causava-me até alguma repulsa trabalhar com eles. Mas depois fiquei completamente fascinada com a vida dos animais, com os comportamentos, com as possibilidades que temos para melhorar o dia-a-dia deles e contribuir para toda a causa da conservação. O bem-estar diário depende do trabalho diário do trabalhador.
Qual é a diferença entre primatas e macacos?
Primatas é a designação genérica que até nos inclui a nós, humanos. Macacos é uma família específica dentro do grupo dos primatas. Temos os grandes primatas – que são os hominídeos, onde nos incluímos, o orangotango, o gibão. Depois temos o cercopiteco, os macacos de cauda comprida; e os macacos verdadeiramente macacos são os do género macaca, são mais robustos, normalmente têm uma cauda mais curta. E depois há os primatas do novo mundo.
Quando veio para cá já tinha alguma formação na área?
Costumo dizer que ninguém nasce para ser tratador. Fui um bocado autodidata. Li bastante a formação teórica, tentei ir buscar a informação às pessoas mais antigas, fui aprendendo com a experiência e fui fazendo formações também que me ajudaram a consolidar os conhecimentos. Estar dentro da área significa que a pessoa se interessa, mas isso nem sempre é sinónimo de ser um bom tratador. É um trabalho muito exigente e que implica algum sacrifício. Há pessoas que, apesar de gostarem dos animais, nem sempre estão disponíveis, por isso os tratadores são pessoas com origem muito diversa.
A ideia geral que existe é que o tratador alimenta os animais e limpa as instalações. Isso corresponde ao seu trabalho?
Isso é o básico. Faz parte do nosso trabalho. Mas além disso é essencial a observação, conhecer bem os animais. Não só o conhecimento teórico das espécies e daquilo que caracteriza aquele grupo, mas o conhecimento específico do indivíduo. Isso é que permite vermos se está tudo bem ou não, e estabelecer uma relação.
E que tipo de relação é essa?
Não pode ser uma relação muito próxima, porque queremos manter os animais selvagens e por isso tem de haver um equilíbrio entre a confiança que conseguimos ter dos animais e a distância que temos de manter para não serem domesticados. Não os queremos como animais de estimação nem queremos que tenham grande proximidade. E depois há todo o trabalho de melhoramento, de enriquecimento, que é alterar o dia-a-dia dos animais de forma a manter estímulos novos. Visto que o espaço é mais ou menos o mesmo durante algum tempo é bom criar sempre situações novas.
Como se faz isso?
Temos de nos pôr na pele dos animais, temos de conhecer muito bem os animais, as características, as necessidades e a própria personalidade dos animais, porque alguns respondem de uma forma e outros respondem de outra. No caso dos primatas, que são animais sociais, não podemos interferir nas relações sociais entre eles e não podemos criar situações que impliquem algum conflito. Tentamos que as situações sejam sempre o mais natural possível. Por isso é que nos saguins, que são animais em que o olfato é uma área importante, o enriquecimento sensorial é uma coisa facílima de fazer. Basta tirar uma planta de uma instalação de uma espécie diferente que tenha feito uma marcação e pôr nessa instalação que vai logo estimular o comportamento de marcação, o comportamento de alerta. São comportamentos naturais que é bom manter, porque todos os animais são potenciais candidatos a serem soltos na natureza. Nunca são soltos os que estão sob os nossos cuidados, são os seus descendentes, mas a informação passa de pais para filhos.
Para conhecer os animais é importante vê-los no seu habitat natural ou não acrescenta muito?
Ver no habitat natural é importante, mas hoje em dia o habitat natural é uma coisa em vias de extinção, como os próprios animais. A pressão de ir ver os elefantes e ver os leões ao Kruger [Park] ou de ir ver os gorilas da montanha é tanta que põe em risco a espécie no seu habitat natural. Conheço imagens do Kruger em que há uma caçada do leão e de repente vemos que tem 40 ou 50 carrinhas à volta com os turistas, não tem privacidade nenhuma. Se calhar os nossos animais têm mais privacidade do que os animais em estado selvagem.
Falou-me dessa repugnância que faziam os primatas serem parecidos connosco. Como é que eles a conquistaram?
O mundo dos primatas é muito variado. Temos primatas que quando nascem pesam 20 gramas e temos primatas adultos como o gorila que pesam 200 kg, portanto é um mundo muito vasto. E foi essa vastidão, principalmente este conhecimento teórico mais científico, que me atraiu na altura. E depois foi-me atraindo o desafio dos próprios animais. Na altura foi-me entregue um grupo de animais muito específicos, os saguins. Tínhamos muito pouco espaço e nesse espaço minúsculo consegui criar um habitat a imitar a natureza e houve sucesso reprodutivo.
Deram-se bem?
Deram-se bem e eu dei-me bem com eles. Eles são pequeninos, eu também não sou muito grande, e por isso não se assustavam comigo. Houve ali uma empatia e tudo o resto veio por acréscimo.
Disse que a ideia não é domesticá-los, não é obedecerem nem nada. Em todo o caso, às vezes cria-se uma ligação especial com certos animais?
Obviamente. Passamos aqui o nosso dia-a-dia, se calhar às vezes passamos mais horas aqui do que com a nossa família mas mesmo havendo essa relação temos que manter uma certa distância porque os animais não são nossos, não são do zoo, são da comunidade internacional de zoos, portanto se me vierem dizer que este animal vai para outro sítio porque é um animal importante para reproduzir, não posso estar muito apegada. Tem que ser assim. Temos de manter a variedade genética das espécies, é para isso que temos aqui os animais, além de serem embaixadores das espécies. É importante eles não estarem aqui só para serem vistos, há um motivo para estarem aqui, que é manter, conservar e preservar as espécies.
Mas às vezes deve ter um certo desgosto por ver um animal partir ou morrer…
Como as pessoas têm, com os seus animais domésticos, também nós temos com os nossos animais, mas temos de ter uma atitude profissional em relação a isso. O facto de eu trabalhar aqui há tanto tempo ajuda-me a perspetivar as coisas de outra forma. Já estou a trabalhar com a terceira geração, já estou a trabalhar com os netos dos animais com que trabalhei inicialmente.
E são mesmo os netos?
São mesmo os netos. Quando comecei a trabalhar tínhamos um casal de saguins, normalmente quanto se reproduzem têm sempre gémeos, como são animais pequeninos, e devido à pressão da predação, por norma nascem dois porque se morrer algum o outro sobrevive. Esse casal teve cerca de 20 filhos, alguns foram direcionados para outros zoos, outros ficaram, a descendência já vai em cerca de 200 animais. Quando só de um casal temos essa descendência, isso ajuda-me a perceber o que estamos aqui a fazer. Mas vem a febre amarela, os incêndios na Amazónia e torna-se outra vez mais urgente o nosso papel.
Tal como entre nós há uns mais tímidos, outros mais extrovertidos?
Há animais que são completamente descaradas, há outros que é preciso um cuidado imenso porque à mais pequena coisinha eles escondem-se. Eu digo sempre que temos de nos pôr na pele dos animais para perceber. Se eles reagem é porque alguma coisa nós fizemos. Eles têm o seu perfil de personalidade, mesmo dentro da própria espécie, há uns que são mais tímidos e é preciso saber lidar com isso.
E como se consegue perceber que há um que não está bem?
Os animais selvagens normalmente escondem que estão doentes. É uma defesa. Na natureza um animal mais fraco é sempre mais propenso a ser caçado. Os primatas com quem eu trabalho são caçados, têm predadores que os caçam para comer, além dos humanos. Eles escondem muito que estão doentes e temos de ser nós a perceber. É a maneira de olhar, é a postura, há n sinais que eles nos dão.
Imagino que no seu dia-a-dia tenha vivido situações engraçadas. Há algumas que me possa recordar?
Sim, há fêmeas que estão grávidas e que vêm mostrar o bebé, isso aconteceu com muita frequência. Quando eu estive grávida e estive num período de férias, naquele período em que a barriga aumenta mais, quando voltei na altura trabalhava com gorilas, quando regressei o gorila veio direito a mim a apontar o dedo para a minha barriga, como quem diz: ‘O que é isso? Uma bola aí?’. [risos] Há uma intimidade muito grande entre os tratadores e os animais.
Às vezes tem a sensação de que os consegue perceber e que eles nos percebem a nós?
Se nos percebem a nós eu não sei, mas nós conseguimos percebê-los. Eles comunicam tal como nós, então nos primatas, dada a parecença, dada a proximidade connosco, a comunicação é muito próxima da nossa. Eles não falam mas usam o olhar, a expressão facial, mímica, posturas físicas, e se estivermos atentos percebemos que nós próprios, os humanos, ainda temos isso. Quando acontece alguma coisa temos a tendência para nos impor, aumentar o tamanho. Eles levantam o pelo, como nós não temos pelo erguemos os ombros. Eles dizem tudo com a expressão facial e com a mímica. Os babuínos, por exemplo, é impressionante. As pessoas acham que eles estão sempre à briga, basta estar um bocadinho a olhar para ver a quantidade de comunicação num grupo, como é que um fala com o outro, o outro olha, há uma movimentação… é um mundo espetacular, e quando se percebe consegue-se saber muita coisa.
Ouvi uma vez uma história de um homem, em África, que tinha um chimpanzé como criado, vestido a rigor, que servia à mesa e tudo. É possível treinar um primata a esse ponto?
Ter um chimpanzé vestido como criado, sim. Ter um chimpanzé treinado para levar coisas à mesa, sim. Agora, fazer uma refeição completa, já não acredito. Provavelmente teria um chimpanzé vestido como criado e se calhar levou alguma coisa à mesa. Não acredito que tenha levado tudo. Apesar de serem treinados, os chimpanzés não têm perfil submisso a esse ponto. Mas isso é uma situação muito estranha. Hoje em dia ainda há pessoas que dizem com orgulho que têm saguins e cercopitecos em casa. É horrível. Os animais têm de viver uns com os outros. Nós nunca vamos ter a capacidade de lhes dar o que eles precisam. O cão foi domesticado há milhares de anos e mesmo assim às vezes há problemas, quanto mais um animal selvagem.
Segundo a história que ouvi, o dono do chimpanzé dizia aos seus convidados: ‘Por favor, ajam com naturalidade, nunca se riam dele’. O escritor Axel Munthe também disse que os macacos gostam muito de se rir de nós, mas não gostam nada que as pessoas se riam deles. Isso é verdade?
Há uma coisa que é mostrar os dentes, que para nós é rir e para eles é um comportamento agressivo. ‘Estou-te a mostrar os dentes porque te vou morder. Vê como tenho dentes grandes para te morder’. Portanto, se eu me rir para ele, ele vai-se comportar como com os outros da sua espécie, pode-se tornar agressivo. Ele está a ler que é um comportamento da ameaça. Se eles se riem de nós? É preciso ter uma intimidade muito grande com os animais para perceber que eles se riem de nós – e não se riem como nós nos rimos, mas às vezes fazem determinadas coisas mesmo para nos chatear.
Fazem coisas mesmo para chatear?
Fazem. Por exemplo, quando estamos a colocar alimento e se eles estão numa situação qualquer em que não nos querem ali, deixam-nos cair coisas em cima para a gente se afastar. Ou prendem coisas para a gente ter mais dificuldade a passar nas portas… coisas típicas. [risos]
E o contrário – colaborarem ou facilitarem?
Acho que os animais não querem muito saber de nós. Têm a vida deles e, como disse, nós não queremos a tal proximidade. Eles não quererem saber de nós é muito bom.