Estávamos em 2000 e uma revista destas – um objeto de que privilegia a cultura e o design – era já uma «bizarria». Duas décadas depois, essa parte não mudou muito. Patrícia Reis tem agora 50 anos, a revista que já teve várias vidas fez 20, e o número redondo da comemoração serviu-nos de gatilho para uma conversa que decorreu numa tarde em que o verão adoçou o outono. Estamos entre colegas – a escritora ainda hoje se vê e olha o mundo como jornalista, tendo passado pelas redações d’O Independente, Sábado e Expresso, isto antes de fazer de tudo um pouco o que tem a ver com ideias.
Na capa dos 20 anos da Egoísta, que saiu em março, escolheram uma citação de António Barreto: ‘Mal sabíamos que nos preparávamos para viver o céu e o inferno’. Parece premonitório para os tempos que aí vinham.
Pois parece, mas não foi propositado. Tenho o privilégio de fazer a Egoísta há 20 anos e é porventura como um filho. E é um privilégio por várias razões, mas há uma crucial: é o facto de um grupo como o Estoril Sol, cujo core business é o jogo, ter acarinhado um projeto editorial dizendo ‘a bem da cultura’. E pagando às pessoas, existindo um orçamento. Não há colaborações gratuitas, nem restrições editoriais ou de tema, nem uma lista negra de pessoas que não podem escrever para a Egoísta. É a liberdade total, com a cumplicidade do Mário Assis Ferreira, o diretor, com a cumplicidade dos administradores da Estoril Sol e depois com esta imensa generosidade das pessoas, desde o primeiro número, de dizerem: ‘Ok, vamos lá então’. No primeiro número lembro-me de ter ligado ao Vasco Graça Moura, que escreveu um conto belíssimo…
E inédito.
Um inédito, de propósito, como aliás aconteceu com muita gente. E eu liguei e disse: ‘Vasco, vou fazer um projeto editorial diferente, para a Estoril Sol, ainda não sei muito bem como vai ser mas… alinha?’. E ele respondeu: ‘Com certeza. Projetos novos é o que queremos’.
Tinhas 30 anos nessa altura. As décadas certas têm marcado o teu percurso pessoal e profissional: nasceste em 1970, fundaste a Egoísta em 2000, aqui estamos em 2020 a falar das duas décadas da revista. Aos 30 anos sentias-te uma mulher ou uma miúda no meio?
Qual meio?
O jornalístico. Pergunto no sentido de pegares no telefone para ligar ao Vasco Graça Moura a desafiá-lo para algo que ainda não existia…
Estive muito tempo nas redações e conheci muita gente, até pelas entrevistas. Com um entrevistado, se a entrevista corre bem, a relação fica. E a imprensa escrita tem esta coisa maravilhosa que a televisão e a rádio não têm: podemos estar seis horas à conversa com uma pessoa. Depois é preciso ter a arte e o engenho de conseguir editar uma conversa.
Quantos prémios a Egoísta já arrecadou?
82. Claro que isso contribuiu para uma validação do projeto, para legitimar esta quase bizarria de ter um produto em papel que não é sobre o jogo.
Já era uma bizarria no início?
Já era.
E agora, 20 anos depois, com os jornais a passar pela fase que toda a gente sabe?
Mesmo com o advento das redes sociais e com a velocidade a que nós vivemos acho que o objeto em papel, o livro, a revista, se tiver qualidade, terá sempre um público. Mesmo os projetos que são exclusivamente online, depois há um dia que saem cá para fora com uma coisa também em papel.
É o que tem acontecido.
Sim. E acho que na Egoísta há leitura para muito, há uma memória. Os últimos vinte anos da história de Portugal estão ali. Passaram por ali pessoas que já morreram, como o VGM, o Eduardo Prado Coelho, a Agustina Bessa-Luís e tantos outros. Se pegares numa coleção inteira da Egoísta é muito engraçado perceber a evolução, os temas, as preocupações, e vê-se isso em artigos, na ficção, nos ensaios que publicámos e também nas entrevistas.
E é uma experiência sensorial e intelectual que não tem nada a ver com um motor de busca.
Nada. Hoje, com o advento das redes e vivendo nesta velocidade, a capacidade de concentração das pessoas é cada vez mais diminuta. As pessoas leem muito nas redes, mas leem superficialmente. Não são capazes de se concentrar duas horas para ler um livro porque há este dispositivo na mão que faz constantemente querer ir verificar-se qualquer novidade, como aquelas pessoas que vão constantemente abrir a porta do frigorífico dez vezes e sabem que não foram às compras. Eu sou, obviamente, uma devota do papel. Serei sempre.
Fazendo uma resenha rápida por estes vinte anos, a Egoísta já passou por momentos difíceis: já esteve suspensa, alterou a sua periodicidade… O que tem contribuído para que seja uma fénix?
Há várias razões para isso. Há a vontade expressa e o reconhecimento da Estoril Sol de que este é um veículo de comunicação de prestígio, há uma equipa de designers incrível que rotativamente pega na edição e que tenta superar-se sempre. Não são só os textos que são bons. Os textos podem ser muito bons, mas têm que ser apresentados de uma maneira inovadora. Se calhar o maior desafio para nós, enquanto equipa que edita e produz a Egoísta, é tentar fazer melhor do que na edição anterior. E das coisas impossíveis: lembro-me de fazermos um revista cujo tema é a Memória e decidimos que só se conseguiria ler depois de ser colocada no micro-ondas. Para isto era preciso uma tinta especial, e foi um inferno para a Norprint, a empresa que nos imprime há 20 anos. São uns parceiros de mão cheia, eu digo mata e eles dizem esfola.
Quando aparecias não te fechavam a porta na cara, abriam.
Nunca me fecharam a porta! O Jorge Moreira, a pessoa da Norprint que trata da Egoísta, sempre me disse ‘Se tem que ser, tem que ser’. E fizemos coisas loucas, em que a nossa equipa quase não ganhou dinheiro com a edição porque a capa foi caríssima.
Mas isto não é nenhum golpe de sorte, foi tudo muito trabalhado.
A sorte dá muito trabalho! Diz-se que protege os audazes, mas acho que dá muito trabalho. Sou uma pessoa profundamente sortuda, sou uma privilegiada, mas deu-me muito trabalho chegar aqui (risos).
És conhecida por não gostar de queixas e também por não gostares que te digam que é impossível. Estas duas características refletem um bocadinho o que é a Egoísta hoje?
De alguma maneira. Há uma frase em que penso muitas vezes: ‘Não há nada que seja impossível. O que há é uma perceção limitada daquilo que é possível’. Não sou propriamente uma pessoa muito espiritual, mas esta é uma frase do Dalai Lama que ficou comigo. Acho que pode fazer-se sempre melhor. E ao contrário da maioria das pessoas não dou graças por ter um copo meio cheio ou meio vazio. Dou graças por ter um copo, caramba. Há tanta gente que não tem um copo! O meu filho mais novo diz-me muitas vezes: ‘Tu és insanamente otimista’. Acho que se quiseres mesmo, se tiveres mesmo, mesmo vontade, fazes qualquer coisa.
Cresci a ouvir dizer que a Egoísta era um objeto de culto. Esta definição parece-te bem?
Sim, parece-me bem numa dimensão, mas noutra devo dizer-te que gostaria que ela chegasse a muito mais pessoas, porque acho que toda a gente deveria ter direito a poder ler e ver aquilo que publicamos. Disso tenho pena, confesso.
Já pensaste em mudar isso de alguma forma?
Ideias à volta daquilo que se poderia fazer com a Egoísta, ao longo dos anos, são milhentas. Muitas vezes tens limitações concretas de orçamento, por exemplo, e o dinheiro nestas coisas é o que é.
É finito.
É, e geralmente as pessoas não gostam muito que se fale de dinheiro. Falo de dinheiro com imensa facilidade, porque acho que é assim que tem que ser e todos precisamos dele para pagar os iogurtes. Mas o percurso da revista é tão feliz que não me consigo lamentar e dizer: ‘Isto é tão bestial, mas…’. Não há cá adversativa nenhuma, ponto. Isto é bestial.
Nem quando o fim esteve em cima da mesa?
Nem aí. Quando houve essa hipótese concreta, eu também disse: ‘Já viram a alegria que foram estes anos todos? O privilégio que foi?’ Há coisas que saíram na Egoísta que não há em lugar nenhum, como uma entrevista à Leonor Beleza de 22 páginas, feita pela Maria Flor Pedroso, que não tens em nenhum jornal. Está lá a história toda. É um documento.
O quê, ou quem, ainda não conseguiste trazer para as páginas da Egoísta?
Ui. Há um artista que gostaria muito de ter tido, há anos que ando atrás dele, e não me dizem que não, mas andam a rabiar-me como se faz na tourada. É o David LaChappelle, acho aquela estética incrível. Mas depois há muitas pessoas que começaram por escrever ficção na Egoísta, o que é um um orgulho. Só houve duas pessoas que recusaram escrever para a Egoísta – não vou dizer os nomes por elegância. Percebo perfeitamente as razões. De resto, a generosidade das pessoas tem sido imensa. Não há nada que eu tivesse pensado e quisesse muito que não tivesse conseguido.
E tens ideias para fazer mais 20 anos de Egoísta?
Tenho. É muito mais simples manter um produto como a Egoísta do que a Good Housekeeping, uma revista sobre pó e aspiradores que dura há 90 anos (risos). E a cada ano que passa vais introduzindo pessoas da nova geração, que começaram agora a interessar-se por fotografia, ou por pintura, escrever e fazer poesia, ou por pensar assim ou assado. Sem descurar, obviamente, aqueles que consideramos extraordinários e maravilhosos e que hão de sê-lo a vida inteira.
E já houve alguém que tivesse ficado chateado por nunca ter sido convidado a escrever?
Deve haver muita gente, mas a única pessoa que me confrontou foi alguém que convidei e que me respondeu que eu não tinha feito o obséquio de a convidar ao longo dos anos, e portanto agora também não aceitava. Está no seu direito.
Em 20 anos, qual foi a edição mais difícil de fazer chegar às bancas a tempo?
Houve uma em que estive três meses a pedir uma entrevista ao António Costa, através dos canais corretos.
Já era primeiro-ministro?
Sim. Decidi ir ao assessor de imprensa, que é uma pessoa bastante estimável e agradável, mas aquilo andou aí a engonhar. Até que mandei uma mensagem ao António Costa a perguntar se queria ou não dar uma entrevista para a Egoísta, que tinha que fechar a revista. No dia seguinte fui fazer a entrevista. Acabou por funcionar. Mas acho que, à partida, não se manda um sms ao primeiro-ministro, só mesmo em último recurso. Respeito a privacidade e os lugares, com certeza que tem que se respeitar. Não é tu cá, tu lá. É uma questão institucional.
Achas que a Egoísta é uma revista mais altruísta ou mais elitista nos temas que aborda?
As duas coisas. Depende do tema e depende também do ano em que aquele tema surge. Obviamente que fazer um número comemorativo dos 20 anos é uma coisa egoísta, não é altruísta. Mas quando decides fazer algo sobre a Terra, o ambiente e o planeta é evidentemente uma coisa altruísta. Quando decidimos pensar Portugal e reunimos 50 personalidades para o fazer é evidente que é para o outro.
São os próprios tempos que trazem os temas?
Muitas vezes sim. E as ideias são como as conversas, são como as cerejas. Basicamente é estar atento ao mundo – mas isso eu acho que é o foco do jornalista.
Qual é a edição que guarda com mais carinho?
Next! É a próxima. Será sempre a próxima.
Ao longo destes anos já tiveram inéditos do Paul Auster, fotos da Annie Leibovitz… O teu céu e o da Egoísta não têm limites?
Acho que o céu de ninguém tem limites! As pessoas é que se autolimitam, auto-boicotam-se e bloqueiam-se. Tenho 50 anos… Não tenho nada a perder nem nada a provar, isso é absolutamente maravilhoso.
A partir de que idade começaste a sentir isso?
Não fui sempre assim, isto é um processo, um trabalho interior. Comecei nos jornais muito cedo e tinha que provar muito. Ainda por cima és mulher, tens dois palmos de cara, és muito novinha, são os anos 80. Era todo um outro mundo, não havia internet nem telemóveis.
As redações ainda eram maioritariamente constituídas por homens?
No caso d’ O Independente nem por isso, tínhamos muitas mulheres, felizmente. Mas há um momento na minha vida… como hei-de dizer… A verdade é que estou a trabalhar há 32 anos, caramba. Já fiz tanta coisa que nem consigo enumerar aquilo que fiz. Estou bem comigo própria, e por isso tenho que estar bem com aquilo que faço. A pandemia veio mudar muita coisa, e veio reestruturar muito da minha vida pessoal em termos logísticos e profissionais. É a primeira vez em tantos anos que hão tenho um sítio para ir, estou em casa.
O atelier 004 fechou mesmo portas?
Fechámos. Não fazia sentido. O ateliê é um espaço de design e de conteúdos. Trabalhei sempre com designers e com uma produtora e fizemos muitas coisas diferentes. Relatórios de contas, livros, revistas, muitas exposições, muitas marcas, muito marketing. Fizemos tudo aquilo que tivesse a ver com ideias, é uma panela de pressão de ideias. Um lugar feliz, com uma equipa pequena.
Não há tristeza aqui envolvida?
Há imensa, claro que há. Foram muitos anos. É difícil fechar a porta e dizer: ‘ok, vamos continuar noutros moldes’. Aos 50 anos ainda faltam 15 para a reforma, na presunção de que eles não a passam para os 72 ou que o Estado Social ainda não faliu. Claro que é difícil, mas e depois? Um grande amigo meu morreu aos 44 anos, estupidamente. Eu podia ter morrido, não morri. Porque me vou estar a preocupar com os 15 anos que faltam?
Nem toda a gente tem essa…
Capacidade de pôr em perspetiva.
Ia dizer de olhar para a mesma questão de um ângulo mais tranquilo.
Quando se escreve, um dos princípios é o pensamento, é pensar sobre as coisas. Escrevo para dar resposta às coisas que me incomodam, tenho muitas horas de raciocínio sobre o que ando aqui a fazer.
Antes de irmos à ficção, vamos rapidamente à infância. Nasceste em Lisboa, em que zona cresceste?
Nasci numa maternidade ao lado do Galeto, na Avenida da República, onde aliás nasceu o primeiro-ministro (risos). É a única pessoa que conheço que nasceu lá. Vivi uma temporada ali perto. Os meus pais tinham casa em Benfica, os meus tios-avós no Marquês e Pombal e depois foram viver para Odivelas. E eu fui andando por estas casas. Sou profundamente lisboeta e citadina.
Não te vês a morar do campo?
Vejo, daqui a 15 anos (risos). Ou melhor, a passar temporadas no campo.
Como é que foste parar ao jornalismo logo aos 18 anos?
Fui porque queria escrever, a única coisa que queria fazer da vida era escrever. E por isso tinha que arranjar uma profissão onde desse para o fazer. Depois saiu aquele anúncio d’ O Independente, que dizia «repórteres absolutamente excelentes precisam-se».
Isso é maravilhoso!
Não é? Mandei uma carta, eles mandaram uma carta de volta a pedir para ir a uma entrevista e a uma prova escrita. Sou a única jornalista que conheço que entrou por provas escritas.
E não foste para a faculdade?
Fui, só que obviamente… Era O Independente, eu tinha 18 anos, a faculdade não tinha importância nenhuma! Estava a trabalhar com o Paulo Portas, tinha o Miguel Esteves Cardoso lá ao fundo, tinha a Inês Pedrosa…
Foram, aliás, o Miguel Esteves Cardoso e a Inês Pedrosa que te entrevistaram, e li algures que ele não gostou nada de ti.
Nada (risos). Devo o meu emprego à Inês. Ele não gostou de mim porque eu estava super nervosa, e eu não o achava o máximo. Todas as criaturas que se candidataram e foram à entrevista iam para Sociologia porque ele fez Sociologia. E estavam todas ali para dizer amén a tudo o que ele dissesse – e eu só conseguia dizer ‘já sei’ (risos). Estava nervosíssima. A entrevista foi n’O Independente, na rua Ator Taborda, com o cinema de filmes pornográficos cá em baixo. No fim da entrevista o Miguel terá dito qualquer coisa como ‘esta não’ e a Inês terá tido ‘esta sim, porque é a única que tem, de alguma maneira, um espírito menos subserviente’. E foi uma experiência incrível. Claro que nós mitificámos. Mas eu adoro o Paulo Portas, foi porventura o melhor diretor que tive. Tive outros encantadores e maravilhosos, mas o Paulo… Todo aquele ambiente, toda aquela construção, aquela irreverência…
Gostavas de política na altura?
Não tinha grande remédio, porque fui estagiária durante muito tempo da Helena Sanches Osório. E a Helena era ‘A’ jornalista de política. Era a mulher mais velha da casa, vinha do DN, e era ela que tinha a agenda. No final do meu estágio, que durou dois anos, deu-me as duas agendas dela e disse-me: ‘Isto é o melhor que te posso dar, são os meus contactos todos. Vai tirar fotocópias e eu depois já te digo quem é que está morto’.
É de uma generosidade incrível.
Inacreditável. Ainda hoje tenho essas fotocópias. Havia formação nos jornais, havia gente mais velha.
E havia tempo para passar a memória.
Sim, e hoje em dia estamos a descartar as gerações mais velhas dos jornalistas porque são mais caros, estão cá há mais tempo, e às tantas já não tens ninguém que saiba o que era o PREC.
Ou que tenha vivido as coisas.
Ou que te diga, como me disse o Assis Pacheco uma vez: ‘Oh Patrícia, nós escrevemos para o abominável homem das neves’. A entrevista mais extraordinária que li na minha vida foi feita pelo Assis Pacheco ao Carlos Tê. Saiu n’O Jornal. O título era: ‘Nasci no tempo das cerejas’. Acabei de ler a entrevista, era uma miúda, e pensei: ‘Caramba, no dia em que conseguir fazer uma entrevista assim… ‘ Queria chegar aos calcanhares do Assis Pacheco, chegar aos calcanhares do Cáceres Monteiro. Havia muita gente para admirar, gente que estava ali. E isso foi uma bênção.
Qual foi o primeiro trabalho que te mandaram fazer?
Uma das primeiras coisas foi transcrever uma entrevista que o Paulo e o Miguel fizeram à Amália Rodrigues, e a Amália já estava naquela altura em que depois do início da frase tinha seis caminhos, divergia. Lembro-me de estar desesperada, sem saber o que fazer, porque nada daquilo tinha nexo. E lembro-me de um trabalho sobre sexo em que pusemos uma caixa de cartão na redação para as pessoas deixarem os papéis anonimamente sobre o que quisessem dizer sobre sexo, e fomos para a rua falar com as pessoas sobre isso.
Depois do Independente veio a Sábado e o Expresso, mas ainda fizeste um estágio em Nova Iorque, na Time. Como foste lá parar?
Mandei um fax a pedir um estágio. Tinha 20 ou 21 anos. Eles aceitaram, estive lá três meses e foi maravilhoso, embora tenha percebido que aquele jornalismo não me interessava minimamente.
Porquê?
Porque nos EUA, e ainda hoje é assim, há o writer, o researcher e o reporter. Ora, o repórter vai para a rua, o investigador vai para a papelada e traz e depois o outro tipo escreve. Isto para mim faz-me acreditar que quem escreve está potencialmente a perder tudo. A expressão facial da pessoa que entrevistou, o tom de voz, a animação, se estava vento… Para mim não é possível, e como também gosto de investigar, uma das coisas que me fez confusão foi este sistema tripartido. Eu vinha do faz tudo, como é óbvio (risos).
Depois dos jornais abraçaste a ficção, que entretanto já é uma amiga de longa data (editou o primeiro livro, Cruz das Almas, em 2004. O último, As Crianças Invisíveis, foi lançado no ano passado). Desde aí tens publicado regularmente.
Se o meu marido não tivesse insistido muito comigo eu não teria publicado nenhum livro e teria continuado a escrever para a gaveta, provavelmente. É maravilhoso ter alguém ao nosso lado que nos faz acreditar que podemos fazer o que quisermos. E mesmo se sair merda, está tudo bem. Se não fosse ele, talvez eu não tivesse tido esta ousadia, porque publicar também é uma exposição. Claro que publicamos por uma questão de ego e quem te disser que publicar não é um exercício de vaidade mente. Claro que é. É expores-te e dizeres: ‘Olhem aqui isto que eu fiz’. Depois também te sujeitas a levar pancada. Felizmente não tenho levado muita da crítica, não me posso queixar. Mas a minha necessidade de escrever é tanta que não há outra maneira de viver.
Apesar de escreveres ficção o teu olhar, o teu ponto de partida, parece vir do mundo real, do jornalismo que ficou entranhado.
São duas coisas muito diferentes. O jornalismo obedece a um código deontológico e uma forma de fazer. Mas no meu último livro, por exemplo, é evidente que fiz uma pesquisa enquanto Patrícia jornalista. Depois a Patrícia escritora pegou naquele material e não contou a história daquelas pessoas e instituições, criou um universo paralelo. Não estava a fazer uma reportagem, estava a contar a história de uma criança numa instituição para refletir, novamente, sobre como é que as pessoas constroem a sua identidade.
1970, 2000, 2020. Como vai ser 2030?
2030? Uau. Em 2030 joguei no Euromilhões e ganhei (risos). Os meus filhos estão bem e de saúde, eu estou bem e de saúde. E há um livro para ler e um livro para escrever.