Covid-19. Histórias de pobreza e solidão

Com mais duas histórias, o SOL prossegue a descoberta de personagens a quem a covid-19 roubou a alegria de viver. De um lado um palhaço que antes fazia rir e hoje só tem vontade de chorar – vive numa roulotte com um filho doente. De outro um cozinheiro que comeu cogumelos envenenados e que, doente,…

O mundo parece um circo. Com uma fera indomável à solta, cada cidadão é empurrado para a sua jaula, a bem ou a mal – para seu bem. E o espetáculo parece estar para ficar. É o que sente Ayres Ribeiro, 52 anos, palhaço de profissão com uma carreira internacionalmente reconhecida: mal a pandemia se espalhou e fez fechar fronteiras, ficou sem trabalho. «Sabe quando isto vai terminar? Eu não sei e o meu terror é esse! Sabe o que é um homem como eu, que sempre trabalhou e ganhou muito bem, passar a depender de outros para dar de comer à família e não ter dinheiro para comprar medicamentos sem os quais o meu bebé morria?» – questiona o artista enquanto segue com o olhar as cabriolices do filho mais novo, Marlon, a quem aos dois anos foi detetado um tumor alojado em grande parte do cérebro, tornando impraticável a sua remoção.

Ayres olha agora para o seu passado como um espetador que não pode retroceder a fita do filme à procura de uma explicação para as ratoeiras em que caiu. Não se pode dizer que não tenha sido pragmático. Descendente de gente ligada à arte circense, rapidamente percebeu que em Portugal não tinha futuro. O país olha para a cultura como para a banha da cobra. E foi em Paris, onde a sua arte é reconhecida, que há cerca de 20 anos praticamente se instalou. Tinha contratos semestrais com uma empresa francesa, ganhava seis mil euros limpos por mês, vivia com a mulher e os três filhos numa roulotte cheia de comodidades e investira em dois terrenos em Portugal – onde gostava de passar longas temporadas na sua casa ambulante.

 

Um diagnóstico terrível

Ayres é um homem esforçado, daqueles que creem que o trabalho é tudo ou quase tudo, e que se desenrascaria bem em qualquer circunstância. Mesmo nos intervalos dos seus périplos pelo mundo, quando assentava em Portugal não recusava um convite.

Há quatro anos, quando estava com o Circo Mundial em Portimão, a sua vida e a da família deu uma volta de 180 graus. Marlon, o filho mais novo, passou a ter com frequência febres altas, e a sua mulher viu-se obrigada a constantes idas com ele às urgências do hospital. Até que um dia, indisposto com a rotina, um médico lhe diz: «Ó mãe, já veio cá três vezes, não vê que isso é apenas um bicho que anda por aí?!». Dias depois, como o estado febril do garoto se mantivesse, foram a um hospital privado. E aí os exames ao bebé serão claros na sentença: um tumor. «Se for operado, pode morrer ou ficar paraplégico». – dizem-lhe.

Ayres desabafa: «Nada é pior do que isto. Pior mesmo será se não o conseguir manter vivo. Mudei tudo na minha vida a partir desse dia. Tenho umas terras que comprei no Pinhal Novo, mas como ainda não tenho lá luz estacionei a roulotte neste terreno, que é de uns primos e fica mais perto do Instituto Português de Oncologia (IPO), onde o bebé é seguido. A minha família passou a ficar aqui para ter mais comodidades e eu, como na altura tinha dinheiro, comprei outra mais pequena para continuar a trabalhar em França. Estava cá quando a covid apareceu e nos deixou nesta situação. Já tinha o bilhete de avião para Paris, seguia depois de lá para as Caraíbas, onde o circo ia ficar três meses. Mas fecharam os aeroportos e os espetáculos também foram cancelados. Até hoje».

 

‘Ainda emprestei dinheiro a colegas’

O mundo transformara-se num universo estranho de reclusão e defesa. Os mais velhos, em lares, morriam confinados, a correria feliz das crianças nas escolas fica adiada, as cidades parecem centros de uma verdadeira explosão onde apenas o betão resistiu. As ruas ficam desertas. Há pessoas atiradas para a miséria a procurar no lixo comida para a família. Na esfera artística, praticamente paralisada, já houve dois suicídios. A economia, esse monstro abstrato, ressente-se, muitos ficam no desemprego e as dívidas são um caos concreto. As poupanças de Ayres, que sempre acreditou que a contenção financeira o livraria de certos apuros, esgotam-se: «Quando isto começou em Portugal, nunca pensei que durasse muito e, como os circos fecharam todos, ainda emprestei algum dinheiro a colegas que ficaram desempregados e numa grande aflição. Mas foi o que foi. Tinha as minhas despesas, a prestação de um carro e só em medicamentos para o Marlon são 120 euros por mês. Fiquei sem nada. Tive de recorrer ao Banco Alimentar contra a Fome para poder alimentar a família e é também através de uma assistente social que trabalha com a Isabel Jonet que consigo os remédios para ele. É muito humilhante… um homem que sempre trabalhou sente-se um parasita quando tem de recorrer a outros. Mas pelos filhos perde-se toda a vergonha!».

 

Um tratamento experimental

A emoção embarga-lhe a voz, tenta mascarar os sentimentos e dirige o olhar para o filho. A vida do artista, que sempre usou a sua vocação como se com uma gargalhada pudesse resgatar a espécie humana, já não é a mesma. Parece agora alimentar-se apenas da energia galopante do pequeno, loiro como ele, que no capítulo da felicidade se mostra invencível. Marlon está agora com seis anos, mas a quimioterapia atrofiou-lhe o desenvolvimento físico e aparenta muito menos. Caminha para a cegueira, já não tem visão periférica, mas ninguém diria. Com a pandemia a propagar-se num segundo round, o catraio mal sai da roulotte e habitua-se a viver naquele exíguo espaço. Depois da autorização da comissão europeia de saúde para um novo tratamento, Ayres recuperou a esperança: «Está agora a tomar uns comprimidos que ainda estão na fase experimental, só têm sido usados em adultos. Mas têm muitos efeitos secundários. Provocam-lhe muita sede durante a noite e não dorme, passa a vida na casa de banho, a boca rebenta-lhe e tem urticária, está sempre a coçar-se. Mas está com esta energia toda. Quer ser trapezista. É um sobrevivente!».

O artista continua, porém, a sentir-se encurralado. Com a reabertura dos circos ainda sem data, conseguiu um emprego como motorista numa empresa de camionagem, vive na mais estrita economia material e a noção de confiança foi completamente banida da memória: «Se vier aí um novo confinamento global e eu perder o emprego, o que será dele? De nós?».

 

Cogumelos venenosos

Com a dramática evolução da pandemia nos últimos tempos não se pode profetizar o dia em que se lançarão foguetes. Nestes tempos, liberdade e justiça defendem-se com outros argumentos, renascem métodos repressivos. Um medo incerto alastra dia a dia pelo mundo, e até os afetos e o amor parecem fantasmas. A solidão também pode matar. Arlindo Rodrigues, 49 anos, é emigrante e vive o seu drama na Noruega, em Eammerue, a um pulo de Oslo. Entre ele e os dramas de Shakespeare parece haver uma relação muito forte. Foi poucos dias após o fecho das fronteiras que o bafo do azar o apanhou de novo. Chegou com a mesma força dos que já vivera até aqui. Trabalhava há quase duas décadas numa pizaria italiana e tornara-se perito na arte da iguaria napolitana. Chegara a primavera, o frio abrandara um pouco. Como estava de folga, embrenha-se na floresta onde sempre gostou de fazer caminhadas. Uns cogumelos selvagens atraem-lhe a atenção. Tempos antes, no mesmo local, um colega apanhara uns muito parecidos e com eles fizera um arroz macio, leitoso, apenas para o pessoal do restaurante, e ele não pensou duas vezes.

O veneno só começou a produzir efeito no seu corpo uma semana depois. Sentia-se fraco, sem apetite, tiritava. Habituara-se a não partilhar as fraquezas, impusera a si próprio a disciplina dos solitários, e sair da vida como vencedor tornara-se a sua vingança contra o destino. Mas não ganhara calo para semelhante notícia: «De repente, estou sozinho no hospital. Dizem-me que fui envenenado e que tenho a função renal quase toda parada e que só sairei da hemodiálise com um transplante. Pedi ajuda à minha mãe biológica, ela disse que me dava um rim. Mas os dias passavam e ninguém me vinha ver. Ela dizia-me que fazia parte de um grupo de risco, que não podia viajar. A minha mãe adotiva já não estava viva (se estivesse, acho que era a única pessoa que me teria ajudado, apesar de tudo o que lhe fiz). Senti-me tão sozinho que só pensava no suicídio».

Ao contrário do que seria espectável, Arlindo foi penalizado precisamente por ter família a mais. Não há nada na sua história que seja vulgar. Foi trocado à nascença na maternidade de forma singular: a mãe biológica, Maria Helena, era muito loira e branca, como ele; a mulher a quem foi entregue por engano, Joana, era cabo-verdiana e deu à luz no mesmo dia um filho que foi entregue a Maria Helena por engano. Certo é que nem ela nem o marido, empregado na Emissora Nacional, deram conta de que viviam um logro, mesmo quando os sinais eram óbvios.

 

A estranheza da família

A revolução de Abril ainda não acontecera – e em Longroiva, na Guarda, terra de onde o casal é natural, à época não se vira um negro. Assim, quando eles, derretidos com o bebé, lá se deslocaram para apresentar o recém-nascido aos avós, as línguas soltaram-se para debicar na integridade moral de Maria Helena. A cor de pele do menino, a quem chamaram Tiago, os traços negroides, davam razão aos ditos da família. Foi a médica que assistiu ao parto, Maria Irene Crespo, quem tirou as teimas e levou os pais ao desespero. A clínica aconselhou então exames aos grupos sanguíneos da família. Os resultados das análises não deixaram margem para dúvidas: a criança não podia ser filha do casal. Este apresenta queixa na Polícia Judiciária, onde o caso fica parado.

 Arlindo, esse, foi crescendo numa família que não era a dele. Aos 10 anos, porém, já entende que as peças não jogam: «Os meus pais eram cabo-verdianos, tinha duas irmãs negras e eu era loiríssimo. Na escola, gozavam comigo: ‘É pá, tu não és filho dos pretos!’. Eu comecei a fazer perguntas à Joana e ela começou a levar-me ao cabeleireiro com as minhas irmãs gémeas. Enquanto a uma delas pintava o cabelo de loiro, a mim fazia-me permanente para ficar com os caracóis delas. Só muito mais tarde é que soube que os meus verdadeiros pais me procuravam desde pequenino, mas a minha mãe negra sempre fugiu deles. Não aceitava o filho negro. Tinha uma obsessão por mim. Quando os meus pais brancos me descobriram a primeira vez, eu ainda gatinhava, mas a mãe preta não quis fazer a troca e fugiu comigo para a Noruega».

 

Casal não desiste do filho ‘verdadeiro’

O casal Rodrigues, apesar de amar como um filho o ‘pretinho’ que lhe calhara na sorte, não desistia do outro. Investigava por conta e risco, sem se aperceber que nessa busca perdia a tolerância para as coisas da vida. Arlindo não pode esquecer os pais, porque sem eles – ambas as partes – ele seria inexplicável: «Quando eu tinha 15 anos, voltaram-me a descobrir. Os meus pais negros mantiveram a mesma casa e quando, numas férias, vieram a Portugal, são apanhados. Abordaram-me e não tive dúvidas de que eram os meus pais. Fui com eles. Mas o Tiago nunca me aceitou, tinha ciúmes. Era toxicodependente, fazia tudo em casa, mas eles não se apercebiam de nada. Contei-lhes. As coisas acabaram por falhar, acho que nunca me perceberam. Uma vez a Joana, que continuou a viver na Noruega, telefonou-me para me ir despedir dela ao aeroporto. Estava com saudades minhas, e eu também. A outra mãe soube e ficou muito zangada. Disse-me que eu era como os ciganos. Não sabia para onde ia».

 O medo pode alterar completamente o caráter do homem. A pandemia trouxe morte, fome e solidão. Para Arlindo, não ter ninguém na sua vida já não é novidade; mas neste momento, com tudo o que acontece no mundo, a sua única aspiração é não estar só. Já não se trata de uma questão biológica mas biográfica – em que as influências dos fados são bastante visíveis: «Não tive uma única pessoa da família comigo até agora. Só os meus colegas de trabalho. Tudo por culpa da covid, está toda a gente com medo. Também se morre de solidão, sinto que parte de mim já morreu».