A primeira impressão que Ian Fleming teve de Sean Connery, quando soube que este iria encarnar o seu famoso espião, dificilmente poderia ter sido pior. «É um cabrão de um camionista», terá rosnado quando os produtores que haviam comprado os direitos para a adaptação da saga 007 ao cinema lhe apresentaram um tipo de ar duro, inegavelmente belo, mas praticamente desconhecido, com um indisfarçável sotaque escocês. Estava longe do tipo que se ensaia em Eton, entre a elite que apura há gerações esses traços distintivos da sofisticação inglesa. Oriundo de um miserável bairro operário de Edimburgo, aos 32 anos, Connery não precisou de fazer a audição para convencer os produtores. Bastou entrar na sala, bastou que o vissem atravessá-la, depois de a mulher de um deles ter garantido que o público feminino iria lutar pelos lugares na primeira fila para estar mais perto dele.
Fleming ficou possesso, mas Fleming era uma besta, e mais cedo inspiraria um vilão, sendo conhecidas as suas inclinações fascistas, do que um herói na sua própria saga. E a verdade é que, depois de ver Connery no grande ecrã, não apenas se deu conta do seu erro como arranjou maneira de justificar o sotaque, inventando umas raízes escocesas para James Bond nos últimos livros. De qualquer modo, havia algo de que o actor se tinha dado conta e que justificaria, em grande medida, o enorme sucesso daqueles filmes. Depois da devastação e da miséria provocada pela II Guerra, as audiências estavam ansiosas por outro género de herói, um que não lhes viesse pregar virtudes morais, mas que soubesse exaltar a carne, até pela sua impermeabilidade à ideologia, a carne que as utopias relegam sempre para o congelador. Tendo ele mesmo nascido no auge da depressão, Connery sabia que nada há mais dissuasor dessas fantasias totalitárias que haviam arrastado o século XX para a desgraça, do que uma aventura com carros rápidos, cenários de cortar o fôlego, mulheres tão belas que fazem do grande ecrã uma pauta para um coro de lobos, tudo levemente mexido, e não agitado, como o vodka Martini.
É isto que distingue Connery, e o que reveste desde logo a notícia da sua morte de um impulso para a elegia. Tratando-se de um homem que nasceu num outro mundo, é o último de uma geração de atores que passaram fome no Velho Continente, um miúdo cujo berço foi a última gaveta de uma cómoda num apartamento sem canalização, ao lado de uma fábrica de cerveja. As duas casas de banho ficavam no corredor e eram divididas com outras três famílias. Quando o irmão mais novo, Neil, nasceu, em dezembro de 1938, as papas de aveia e as batatas tinham de ser divididas por quatro. O pai, Joe, ganhava apenas duas libras por semana numa fábrica de borracha, e a mãe, Effie, dependia de alguns trabalhos que ia arranjando como empregada de limpeza. Assim, com apenas nove anos, Sean foi obrigado a levantar-se ainda no breu para, quatro horas antes ir para as aulas, distribuir leite numa carroça puxada por um cavalo. Uma vez por semana, se tivessem sobrado uns tostões, o seu único luxo era ir aos banhos públicos, onde o gozo de nadar era o de ficar limpo. Mas foi talvez por nunca ter conseguido lavar tão fundo a pele desses seus primeiros anos que, aos 63 anos, disse numa entrevista que a possibilidade de tomar um banho sempre que lhe apetecia continuava a ser «algo de especial».
A um mês de fazer 14 anos, deixou a escola e, depois de distribuir o leite, foi-se ocupando de biscates enquanto havia ainda trabalho, isto até aos soldados regressarem da guerra. A guerra não lhe deu a oportunidade de ter uma educação. «Não tinha qualificações para trabalho nenhum, e o desemprego sempre foi muito alto na Escócia, por isso safas-te como podes. Fui leiteiro, operário, metalúrgico, misturador de cimento – fiz de tudo». Pelo meio, passou três anos na Marinha. Aos 16 anos, inscreveu-se para os próximos 12, mas acabou dispensado com 19 anos depois de ter desenvolvido uma úlcera. Além de duas tatuagens no braço direito – uma dizia ‘Mum and Dad’, a outra ‘Scotland Forever’ –, nas quais nunca perdeu o orgulho, recebeu também uma pequena bolsa de invalidez que investiu numa formação para aprender a polir mobília. Deu por si a fazer acabamentos em caixões, e nos tempos livres jogava futebol, e revelou promessa, ao ponto de um olheiro do Manchester United lhe ter oferecido um salário se quisesse ingressar na equipa. Recusou a proposta, e mais tarde viria a dizer que foi uma das suas jogadas mais inteligentes. Por essa altura, tinha já começado a dedicar-se ao culturismo, e depois de ter-se finalmente livrado do seu ar escanzelado, começou a interessar-se pelo teatro. Em 1953, ele e um amigo rumaram a Londres para se inscreverem no concurso Mr. Universo, onde acabaria por ganhar o bronze. Ouviu falar das audições que estavam a realizar para um musical, South Pacific, e conseguiu um papel no coro, para o qual lhe bastou a pinta de marinheiro e a boa figura que fazia quando lhe era pedido que fizesse flexões.
Nesses anos, o que lhe ensinaram as ruas, a malandrice, a ousadia e o arrojo viriam a ser essenciais mais tarde, quando foi preciso vestir a pele do espião, fosse Bond ou qualquer outro dos papéis que lhe foram aparecendo; o seu trunfo não estava tanto na forma como encarnava os personagens, mas no gozo que tirava, no modo como parecia ficar um pouco atrás, rindo-se de si mesmo e da cena, satisfeitíssimo, seduzindo a audiência como quem conta uma anedota, e, por mais tosco ou piroso que fosse o material, o que Sean Connery fazia era dar-lhe uma certa dignidade. Por esse mesmo motivo, sempre resistiu firmemente aos pedidos de que se livrasse do sotaque. «Se eu não falasse da forma como falo», disse certa vez a um realizador, «nem faria puto de ideia de quem sou».
Se Pauline Kael, a célebre crítica de cinema da The New Yorker só colocava Connery atrás de Marlon Brando e Lawrence Olivier na lista dos atores cuja vitalidade fazia deles os expoentes da atração masculina no grande ecrã, Anthony Lane, crítico da mesma publicação, exalta-o entre essas grandes estrelas de cinema que apenas fingem ser este ou aquele, dizem as falas, carregam até a cena de forma convincente, mas nunca deixam de fazer de si mesmas. Vestem as fardas, deixam-se maquilhar, chegam a usar peruca, mas defendem a mesma força, o mesmo sentido imutável e a graça que os singulariza. Compara-o a outras lendas que marcaram o período de ouro do cinema, como Clark Gable e John Wayne. E depois há outro aspeto decisivo na sua forma de trazer uma certa gravidade às cenas, segurando o nó que aperta realidade e fantasia, de tal modo que a audiência embarcava no que quer que fosse pelo puro prazer de deixar que a imaginação se espreguiçasse. Rob Sheffield, jornalista da Rolling Stone, chama atenção para o óbvio, lembrando que havia algo de ridículo na ideia de que um espião inglês estava embrenhado nas conspirações e conflitos da Guerra Fria, um embate de forças titânicas para o qual mais ninguém na Inglaterra parecia ter sido convidado. «Numa altura em que a grandeza do país consistia em criar estrelas pop e inventar as minissaias, Bond era o último homem empenhado na defesa da honra do Império Britânico, o qual já não existia. E, no entanto, ele tornava plausível por um segundo que fosse a ideia de que as tropas russas poderiam invadir as ruas de Croydon e Shaftesbury e Wakefield assim que ele baixasse a guarda ou se contentasse com um vodka Martini agitado em vez de suavemente misturado». Sheffield remata dizendo que era essa, por fim, a grande piada implícita no nome de código 007: «A ideia de que havia pelo menos outros seis destes trapaceiros à solta e a causar distúrbios pelo mundo».
Os filmes 007 foram descritos certa vez por um dos seus produtores como «sadismo para toda a família». No fundo, há algo do bom velho divertimento, esse que não pede desculpas por uma espécie de gozo cruel, que não está disposto a abandonar os seus vícios, mas defende-os com uma convicção tal que, há falta de melhor, vai ao ponto de ficcionar uma pátria, para poder pôr a mão no peito encostado ao balcão do bar, com um cigarro na boca, a fazer uma gaifona à empregada enquanto lhe pede outro copo com meio litro de cerveja. É verdade que Connery se tornou amigo de Terence Young, o realizador de Dr. No (1962), que nos meses que antecederam as filmagens do primeiro filme da saga, o levou a restaurantes caros e a casinos e o ensinou como devia portar-se, para que a aspereza dos seus modos escoceses não desse cabo da ilusão de que estava a encarnar um agente secreto educado nas melhores escolas inglesas. Mas se Connery marcou o imaginário popular nas sete vezes que foi 007, a ponto de, meio século depois, e tendo-lhe sucedido uma série de atores, a sua interpretação continuar a ser encarada como o padrão-ouro, a referência incontornável, isto deve-se ao facto da sua interpretação ser um primor de contenção. O seu Bond trouxe ao personagem não só aquele tom sardónico na forma como vai pontuando as suas interações de tiradas que gizam a fronteira entre o humor e o cinismo, mas sobretudo por ter emprestado o seu lado temperamental e uma palpável sensação de ferocidade que ameaça revelar-se a qualquer momento, mesmo nas cenas românticas.
Se Sean Connery tinha um lado garnachão, havia indícios de que a coisa podia virar sem aviso. Pressentia-se uma natureza ameaçadora com a qual podíamos deparar-nos se alguma coisa o desagradasse. De resto, Connery era muitíssimo desconfiado, e envolveu-se frequentemente em disputas com os produtores dos filmes em que participou, tendo o hábito de mandar auditar as contas de quase todas as produções em que se envolveu, e não hesitando em processar fosse quem fosse se lhe parecesse que alguém estava a tentar passar-lhe a perna. E como diz a conhecida expressão, «só porque eu sou paranóico não quer dizer que eles não estejam a ver se me lixam». De facto, a razão porque Connery foi obrigado a regressar ao papel de James Bond em Never Say Never Again (1983), 12 anos depois de ter dito adeus ao personagem, foi o ter dado por si com uma série de problemas financeiros depois do seu contabilista ter usado o dinheiro que ganhou com a saga em investimentos tudo menos seguros. Connery processou-o e a negligência ficou provada, mas o ator deixou claro que não contava receber os 4,1 milhões do pedido de indemnização.
Houve outros processos de que Connery se viu obrigado a desistir, e em algumas ocasiões reconheceu que era seguido por uma espécie de sombra, fúrias que se apoderavam dele, um «lado violento» que estava sempre à espreita, e que tinha colecionado «munições» ao longo de toda a sua infância. É conhecida a polémica que se gerou quando numa entrevista disse que, por princípio, não via nada de mal em bater numa mulher, e se mais tarde se retratou, durante muitos anos foi perseguido pelos rumores de que teria sido violento com a sua primeira mulher, a atriz Diane Cilento, mãe do seu único filho, o também ator Jason Connery.
A história de Sean Connery é definida pela tensão entre o desejo de se cultivar e o ter-se mantido sempre fiel às suas origens, segurando-as para ter um rumo sempre que lhe faltava um mapa, o que não quer dizer que não tenha sempre feito um esforço por evoluir. Do período de um ano que passou em tournée com a peça South Pacific, diz que foi muito importante por ter encontrado num dos atores, o americano Robert Henderson, uma espécie de mentor. Além de ter aligeirado um pouco o sotaque, que na altura era tão impenetrável que havia quem pensasse que ele era polaco, deu provas de um desejo intenso de aprender, tendo recebido de Henderson uma lista de leituras que devia fazer para recuperar por fim a educação que lhe faltou, e a lista incluía as peças de Bernard Shaw, Oscar Wilde e Ibsen, romances de Thomas Wolfe, os volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, e o Ulisses, de Joyce. «Passei a temporada de South Pacific enfiado em bibliotecas em Inglaterra, Irlanda, Escócia e País de Gales», disse Connery numa entrevista, em 1992, ao The Houston Chronicle. «E nas noites em que não atuávamos, via todas as peças que conseguia. Mas, na verdade, foram as leituras, é isso o que muda a vida de uma pessoa. E eu sou a prova viva disso mesmo».
Podíamos percorrer a lista dos filmes, da espantosa lista de realizadores que o quiseram nas suas fitas, começando por Alfred Hitchcock, John Huston ou Sidney Lumet, que lhe deu papéis em cinco dos seus filmes, e acabando em Brian De Palma e Steven Spielberg. Podíamos falar no Óscar e em mais algumas distinções, incluindo o ter sido armado cavaleiro pela Rainha Isabel II, em 2000, no Palácio de Holyroodhouse, na sua cidade natal. O título de Sir acabou por tornar-se bastante significativo para o ator pois venceu as resistências que levaram a que lhe fosse roubado por duas vezes devido ao antagonismo dos líderes políticos do país pelo seu apoio ao Partido Nacional Escocês, e ao seu papel ativo no referendo que levou à criação do primeiro Parlamento do país em 300 anos. De resto, o seu patriotismo levou-o em muitas ocasiões a superar a sua atitude bastante sovina, tendo desembolsado toda a vida somas elevadas para a promoção não apenas da independência como de programas culturais no seu país. Mas se a sua morte merece ser tema de uma elegia esta ultrapassa a sua lenda, e surge em contraste com a própria decadência da noção de masculinidade, algo que nos nossos dias é motivo de embaraço, e raramente se livra da carroça que arrasta e que foi lançada sobre ela pelos estudos de género: (masculinidade) tóxica.
Num momento em que o ‘novo’ homem emergia para se dedicar a um segundo plano, assumindo uma postura meio acabrunhada, às vezes de puro capacho, e gaguejando para que ninguém sinta que queria falar por cima ou interromper seja quem for, ou, muito menos, ser acusado de mansplaining… Numa altura em que, como assinalou Martin Amis num ensaio, a educação masculina parece passar obrigatoriamente pelo cultivo do lado ‘feminino’ como uma espécie de homenagem a esses valores que nos conduzem a uma natureza mais gentil, chega-nos a notícia da morte de Sean Connery e de algum modo, o mais difícil, é acreditar que uma figura como a sua pudesse ganhar relevo nos nossos dias. Quase duas décadas depois de se ter retirado dos ecrãs, queixando-se de que não tinha paciência para «os idiotas que hoje fazem filmes em Hollywood», o mais fácil é supor que este homem, que morreu aos 90 anos, e que sofria há algum tempo de demência, pudesse ter paciência para fazer parte deste mundo. E que tivesse outro sentimento além de desprezo por esse ‘novo’ homem, esse que de acordo com Martin Amis também não tem grande futuro, pois está condenado a envelhecer prematuramente, «de tanto lavar a loiça e aspirar a casa, de tanto estar plantado na cozinha, com uma fralda numa mão, um baralho de tarô na outra, e os seus conselhos sobre gravidez, os seus afrontamentos e a sua tensão pré-menstrual, e a tentar sorrir com aquela expressão de otário num rosto envelhecido». E com isto em perspetiva, nada melhor do que ir lá atrás, recuperar aquela cena em que pela primeira vez nos surge o verdadeiro Bond, e sem pedir desculpa, por uma vez, dizermos o que disse Anthony Lane, que se lhe fosse apontada uma arma à cabeça, estaria disposto a perder tudo o resto, fosse a continuação de Dr. No, fosse qualquer um dos 24 filmes que se seguiram, com os atores que fizeram o melhor possível para nos compensar depois de o original ter perdido a paciência, virando costas. Lane diz-nos que está lá tudo aquilo porque ansiamos e de que precisamos. Ele não vai até ao fim, não leva a sua apreciação às últimas consequências, mas o que fica diante dos nossos olhos ao revisitarmos essa cena no Le Cercle, em Londres, são os elementos da construção de um mito. E esse mito, que nos diz a firmeza que torna tão admiráveis estas representações de uma masculinidade que não se deixa arrastar pelos aluviões da vergonha e da culpa, esse mito lança o seu olhar meio solerte meio desdenhoso sobre nós, atravessando-nos, como se este tempo não fosse senão uma hipótese ridícula, um bluff que não tem como se sustentar e que acabará destroçado assim que for obrigado a mostrar as cartas. Revejam essa cena. A primeira em que o ouvimos apresentar-se: «Bond. James Bond». Está lá tudo. De cigarro na boca, «cedendo logo ao primeiro de mil vícios». Sem o menor nervosismo, quando ela lhe diz «presumo que não se importará se aumentarmos o limite das apostas», ele responde: «Não tenho objeções».