A minha geração é a da rutura. Do Maio de 68 em Paris ou da crise académica de 1969 em Lisboa. Do Woodstock. Do ‘Make love not war’. Do ‘É proibido proibir’. De Cohn-Bendit e Bob Dylan. Do amor livre, das drogas, do feminismo. Do pacifismo. Das ideias de esquerda libertas do ‘jugo comunista’.
Vivi tudo isso. Diretamente ou através de amigos. O meu pai habitava em Paris nessa altura e saboreou com uma alegria juvenil o Maio de 68 em Paris. Andou nas barricadas. E também por influência dessa experimentação de liberdade saiu do PCP a seguir, onde militara uns 20 anos.
Todas as ideias que ainda hoje são ‘subversivas’ em termos de libertação dos costumes vêm dessa época. O consumo de drogas, o sexo sem barreiras, a defesa do aborto…
Essa geração fez um corte com as igrejas – fosse a Igreja Católica ou a ‘igreja marxista’, as duas grandes ideologias que dominavam o mundo. E daí essa sensação de libertação plena.
Os tabus sexuais caíram praticamente todos nessa época. A virgindade, a fidelidade, a monogamia. E com isso ruiu, claro, a família tradicional – a mulher entregue ao lar, a cuidar do marido e dos filhos.
As mulheres queriam viver, recuperar o tempo perdido, estudar, ter uma profissão, ter a sua independência, ter liberdade para namorar, desfazer convenções, experimentar sensações novas.
Claro que houve feministas nas gerações anteriores à minha. Conheci uma das mais ‘célebres’: Maria Lamas. Era amiga do meu pai, embora fosse mais velha do que ele, vivia num hotelzinho no Quartier Latin muito perto do Bd. Saint-Michel. O meu pai visitava-a com frequência, e às vezes eu acompanhava-o.
Conheci outra feminista ainda viva, Maria António Palla. Era amiga do meu pai e de um arquiteto com quem trabalhei 15 anos e de quem fui muito amigo: Manuel Tainha.
Havia ainda as ‘Três Marias’, também da geração anterior à minha, que pregavam o feminismo e ameaçaram queimar soutiens no Parque Eduardo VII.
Mas essas eram ‘militantes da causa’. Ora, as mulheres da minha geração foram as primeiras feministas ‘praticantes’. Não teorizavam o feminismo – praticavam-no.
Conheci um grupo de amigos – quatro casais, todos muito jovens – que iniciaram uma experiência de troca de parceiros. Reuniam-se em casa de um deles, e faziam sessões em que trocavam de partenaires sexuais: hoje A dormia com B, amanhã com C, depois com D, e assim sucessivamente. Todos rodavam. Só que a certa altura começarem a formar-se novos pares. Já não eram os casais iniciais, mas sim novos casais, resultantes das experiências amorosas que iam tendo e das afinidades que iam descobrindo.
Aquilo acabou em separações, em acusações mútuas, em recriminações. Alguns dos protagonistas dessa experiência tiveram graves problemas de toxicodependência. Os filhos desses casais que se separaram ficaram ao abandono.
Também data desta altura o envolvimento das mulheres na política. Muitas começaram a militar nos partidos de extrema-esquerda que surgiam como cogumelos e outras no PCP, que em França era engolido pela onda de liberdade que varria as ruas mas aqui ainda conservava uma aura idealista.
E algumas dessas jovens militantes que se dedicavam à política, para passarem à clandestinidade ou irem fazer cursos ao estrangeiro, na URSS ou noutro satélite comunista, confiavam os filhos a familiares ou amigos.
Esse tempo mágico de euforia da libertação de amarras ideológicas, tabus ou preconceitos teve assim um lado destruidor.
Crianças cresceram fora da família, casamentos desfizeram-se, vulgarizou-se o aborto, o consumo de drogas leves conduziu em muitos casos às drogas duras.
Nada voltou a ser igual.
As mulheres da minha geração viveram o céu e o inferno: tiveram uma experiência de liberdade total, fazendo tudo, experimentando tudo, mas viveram também a ressaca dessa euforia.
A História nunca volta para trás. As mulheres das novas gerações nunca voltarão a ser como as das gerações anteriores à minha. Mas julgo que, depois da brutal rutura que se deu, haverá a procura de um novo equilíbrio. Porque a verdade é que muitas mulheres da minha geração, tendo vivido experiências intensas, estão hoje sós, vítimas de casamentos falhados, talvez invejando aquelas mulheres que, tendo sido mais conservadoras, mantiveram uma família ‘normal’ – e envelhecem hoje num ambiente tranquilo, sem o drama da solidão.