Desta vez não é preciso fazer grande coisa para preparar a cena. O público vive já saturado dos detalhes sobre a vida da família real britânica, e apesar de alguns momentos de frieza, acaba por se reconciliar, mostrando-se insaciável. Por isso, a uma série como “The Crown”, que se inscreve de forma astuciosa e arriscada na linha difícil de demarcar entre o documental e a ficção, cabe-lhe antes de tudo lidar com a relação complicada, tantas vezes turbulenta, entre os dois, sem ser denunciada no seu artifício e manha, pois, como notou o historiador, Charles Spencer, irmão mais novo da princesa Diana, “podes até pendurar a tua capa no cabide dos factos, mas a linha com que a coseste está longe de ser factual”. No que toca a recriações de acontecimentos históricos, e particularmente daqueles que estão ainda frescos na memória do público, e em que boa parte dos intervenientes são ainda vivos, há o perigo daquilo a que se chama realidade ser apropriada com fins de propaganda ou de mero entretenimento. O autor da série, Peter Morgan, reconheceu que “algumas vezes é preciso sacrificar a precisão, mas aquilo que nunca podes perder de vista é a verdade”. Contudo, nas últimas semanas, desde que a quarta temporada da série foi disponibilizada na Netflix, a imprensa britânica e as redes sociais foram assaltadas por uma torrente de reacções, talvez por os dez novos episódios focarem agora um período particularmente agitado, aquele que decorreu entre os anos 1977 e 1990, e que foi difícil não apenas para a família real, mas foi um momento de grande tensão na política britânica. Desde logo, foi neste período que entraram em cena duas figuras-chave da vida do país no século passado: Margaret Thatcher (interpretada por Gillian Anderson) e Diana, a princesa de Gales (Emma Corrin).
Se algumas reacções foram bastante humoradas, outras exemplificaram o regime de alarme e de constante guerra de atrito, em que tudo parece ser motivo para cavar mais fundo, entrincheirar-se, e vislumbrar inimigos por toda a parte. Mesmo se a moral que acaba por retirar-se de uma série como “The Crown” é que as crises se sucedem, os momentos em que tudo parece perdido assomam, e que a validade e o triunfo de uma instituição tão ancestral como a monarquia está na sua resiliência apaziguadora, na ideia de um conjunto de valores identitários que em vez de promover a fragmentação da sociedade, a perda dos vitais laços comuns, trabalha na sua consolidação, preservando uma discreta mas orgulhosa mitologia feita de usos e rituais.
Simon Jenkins defendeu nas páginas do “The Guardian” que as “liberdades artísticas” assumidas por Morgan fazem desta recriação histórica um modelo “tão corrosivo como as notícias falsas”, aproveitando-se “cobardemente” da relutância da família real em recorrer aos tribunais, fazendo uso das protecções legais contra a difamação. Mas num ou noutro sentido, a questão é complicada. Há um problema com a realidade, comecemos por aí. Sarah Ditum, colunista do “The Guardian” que escreve com igual desassombro sobre política, cultura e até esses temas avulsos e em regime pop-up para o qual se desenhou essa categoria que não passa de uma patranha genérica e que dá pelo nome de “lifestyle”, recorda que o enlace entre a família real e televisão não tem sido o mais feliz. De resto, a terceira temporada fez uma mordaz alusão a isso mesmo num episódio que se focou no malfadado documentário “Royal Family”, de 1969, o qual foi concebido com o propósito de reanimar o interesse do público britânico numa instituição que, segundo a percepção deste, se tornara fria e distante. Com esse intuito, ao longo de um ano uma equipa de filmagens acompanhou a vida da rainha Isabel II, mas quando este estreou a recepção foi de tal modo desastrosa que apenas houve lugar a mais uma emissão, antes de serem tomadas medidas de restrição para impedir que este voltasse a ser mostrado em público. Como nos diz Ditum, se o objectivo pretendido fora humanizar a família real, a única coisa que o documentário conseguiu foi trivializá-la. Esse é um dos perigos, uma das rasteiras que a realidade impõe às mais inábeis tentativas de capturá-la e reflecti-la com este ou aquele propósito. Podemos dar uns passos ao lado, perceber os protocolos a que a ficção foi recorrendo ao longo dos últimos séculos para estabelecer a mecânica do “realismo, que não passa, afinal, de um conjunto de artifícios ou convenções empregues, de modo mais ou menos subtil, para transmitir a sensação de que o que estamos a ver é “a vida como ela é”. Na verdade, como bem sabemos, a vida é precisamente aquilo que perturba qualquer representação e o próprio pensamento, que se esquiva, ilude ou escapa, impede a linguagem de se fixar e se satisfazer com uma percepção ou experiência final. Desde logo, e segundo as melhores fontes, ficou estabelecido há muito entre criadores e críticos que há um limite para a quantidade de real que o público aguenta. Não só a imaginação, como notou Goethe, tem muita dificuldade em substituir-se à realidade, dar-lhe seguimento, provavelmente por se deixar atrapalhar com os seus juízos e necessidade de fazer sentido, mas, como nos dizem os célebres versos de T.S. Eliot, “a humanidade não consegue aguentar demasiada realidade”. Já agora, lembremos que Flaubert insistia que a ficção não devia julgar. Quanto a ele, o escritor devia evitar as conclusões, e escudar-se atrás de um exercício algo mais abnegado, analítico mas removido, numa soberania imperturbável enquanto criador: o de um inquisidor benévolo, que se contenta em fazer as perguntas certas, mas que não vai mais longe, não pune nem se põe a disparar com a pólvora seca da culpa, para atormentar os espíritos com noções de pecado. “A estupidez consiste em querer tirar conclusões. Somos apenas um fio e queremos ver o padrão completo.” Na sua perspectiva, o romance evita traficar opiniões, e ambiciona mesmo resignar-se à acção que descreve, ao ponto de “não sentir amor ou ódio por nenhuma das personagens”.
Voltando ao penetrante artigo de Sarah Ditum, a grande questão é saber como é que uma série como “The Crown” se conseguiu desenvencilhar desse conjunto de convenções e expectativas que tornam tantos relatos históricos em criações preguiçosamente realistas, cumulando factos com rigor mas aborrecendo de morte os leitores ou audiências. Porque é que nesta série a família real não nos parece apenas próxima, empática, mas até mesmo vital, questiona a colunista. E a resposta, sendo simples, deita por terra as pretensões e o apelo de uma série de criações que ostentam aquele reclame tão chamativo quanto pleonástico: “baseado em factos reais”. A verdade é que tudo isso ainda é ficção. É sempre ficção, e só por isso consegue ser tão cativante. É preciso que a presunção de verdade vá sendo alimentada, é preciso que a ligação entre o drama histórico e a realidade esteja presente, e seja evidente, mas, ao mesmo tempo, é importante que não se lhe submeta, não inteiramente. Na verdade, é nos momentos em que descola que nos apanha.
Como nos explica o crítico literário James Wood, “a nossa linguagem habitual sobre como nos relacionamos com as personagens de ficção” – e não esqueçamos que ainda que estas emerjam aproveitando-se de traços que identificamos com figuras históricas, numa obra de recriação o próprio mecanismo de representação depende de uma linha de coser factos que é a ficcional –, como “simpatizamos com elas, identificamo-nos, sentimos empatia, implica uma grande troca, um impacto considerável, uma partilha de identidades”, mas o que acaba por se constatar, diz-nos Wood, é que a representação se satisfaz com “um ponto de ligação muito pequeno, e que quanto menor for o ponto de impacto mais agudo será o seu efeito, como um lápis afiado que se calca sobre uma unha que vai ficando branca”.
Ora, aquele documentário de 1969 mostrou-se inábil ao estabelecer esse ponto de impacto precisamente porque não quis comprometer-se com qualquer regime de ficção, e limitou-se a representar aquelas pessoas de carne e osso, exibindo apenas trivialidades sobre as suas vidas privadas sem arriscar-se a expor um ângulo menos dignificante, e o resultado é que a realidade fez a sua careta, apareceu de forma patética, como acontece sempre que a tentar capturar numa linguagem onde esta não cabe. O que ficou a faltar foi o elemento de tradução que a ficção concretiza. Assim, o documentário, que se propunha mostrar a família real, fê-la desabar na pior forma de irrealismo, que é essa caricatura vazia e tola, a de bonecos imitando-se a si mesmos, e ainda por cima, querendo mostrar-se muito respeitáveis e enfaticamente dignos. Por outro lado, a versão dramatizada que nos é servida por uma série como “The Crown” assume esse efeito de tradução ficcional, “fabricando as vidas interiores” daquelas figuras, diz-nos Sarah Ditum, e é enquanto personagens que estas se tornam mais humanas, porque a invenção está carregada dessa astúcia que a leva a parecer-nos bem mais realista do que a realidade, mesmo sem filtros, conseguiria fazer.
De algum modo, poderíamos até questionar se o real não se nos tornou para as audiências modernas mais estranho do que as imagens que o espectáculo consegue produzir. Até que ponto não estamos muito mais familiarizados com as linguagens ficcionais, com as personagens limitadas e tantas vezes esquemáticas, do que com as versões reais que supostamente gostaríamos de conhecer. De algum modo, a ficção é mais confortável precisamente porque se cinge a um conjunto de “pormenores escolhidos com critério e que mantém o balão da verosimilhança a flutuar” (James Wood). E se “a acção narrativa obedece aos requisitos básicos da plausibilidade”, o problema é que a realidade tem o péssimo hábito de nunca se cingir a nenhum guião, de romper até com o que nos parece verosímil, abastardando qualquer estrutura que segure o enredo, sendo capaz de atormentar esse conjunto de hábitos e expectativas que nos mantêm emotivamente ligados a uma trama que se inscreve dentro da pauta da normalidade. A realidade, como bem sabemos, mofa de tudo isso. Desilude a audiência, chega a correr com ela ao pontapé das salas de cinema, de teatro ou até das salas de estar. É incómoda, frágil, temperamental, imprevisível, às vezes ridícula, às vezes brutal. De tal modo que a imaginação não aguenta, o nosso sentido do que tem cabimento acaba sempre ofendido, humilhado, e, como também sabemos, o que se segue é que a maioria de nós, abandona por si mesmo a sala, a exposição, preferindo uma versão substituta, contida, sem as partes tediosas, mas que faça também o favor de censurar as partes mais incongruentes ou simplesmente absurdas.
Se mesmo Flaubert, o mais purista dos cultores do realismo, ele que, no seu desejo de impessoalidade, consagrou a ideia de que a escrita não se comenta a si mesma – “apresenta-se e retira-se, como um bom lacaio” (Wood) –, indo ao ponto de se perguntar: “Quando é que os factos serão registados desde o ponto de vista de uma comédia superior, isto é, tal como o bom Deus os vê, lá de cima?” E mesmo ele não soube impedir-se de julgar as suas personagens, de tirar conclusões, mesmo ao condená-las ao seu “fatalismo intransigente”, e não só não consegue distanciar-se dos seus livros, mas na sua prosa densamente pormenorizada, James Wood detecta uma espécie de cólera por não poder ocupar o lugar de Deus. Ocupa assim mesmo esse lugar como se Ele existisse. “Flaubert olha para o seu mundo ficcional como um Deus irado que já não existe.” Esta “estranha metafísica” vê-se invertida e dá lugar a uma espécie de paródia numa das cenas daquele episódio de “The Crown” que foca o tal documentário, e a qual parece resignar-se a um comentário trocista, reconhecendo como a série que retrata a vida privada da família real de algum modo se penitencia face àquele outro trabalho documental. Nessa cena o príncipe Filipe entra num salão onde dá com Isabel II, a rainha mãe e a princesa Margarida sentadas umas ao lado das outras, forçadas a representar a intimidade introduzindo um elemento de solenidade, em que a carne entronca na pedra das estátuas, reconhecendo a presença das câmaras e o facto de estarem a ser filmadas. Trata-se de um desses momentos “estultificantes” para a audiência, que ao invés de satisfazer o desejo de espreitar pelo buraco da fechadura, aquilo que encontra é um monumento à exterioridade artificial e pomposa da realeza diante dos seus súbditos. Em vez de uma sensação de familiaridade, o público tem de contentar-se com o seu bocejo. Por outro lado, como sublinha Sarah Ditum, em “The Crown”, esse pequeno nada dá origem a um excelente momento televisivo, com Margarida (“interpretada com uma magnificente arrogância por Helena Bonham Carter”) a imprimir em tom de enfado um gracejo: “Estamos a ser filmadas a ver televisão, para que as pessoas nos possam ver a olhar para a televisão tal como elas, em casa, a olhar para as suas televisões. Isto é realmente levar a exploração da banalidade a profundezas inauditas.” Mesmo Flaubert teria exultado diante de um comentário como este.
Os fãs da série, mesmo aqueles capazes de discernir os seus excessos e desvios, perdoam-lhos, ignoram as suas infidelidades, não vêem grande perigo nesses jogos que entretém para a nossa fruição, e deixam-se seduzir pelas suas tropelias, comentários jocosos, complexidades retorcidas, até pela evidente parcialidade ou pela forma alegremente despreocupada como pisa a linha, fazendo passar por um regime de recriação levemente trôpega de eventos históricos o que é, na verdade, uma licenciosa ficcionalização. Para Sarah Ditum tudo isto se justifica pela composição, pela forma como a série nos transmite “o custo humano que a monarquia cobra” de cada um dos seus membros. Realeza, segunda ela, pode ser descrita como um nível de privilégio soberbo, mas à custa de um sacrifício inimaginável. “Podes comandar um exército de serviçais, mas não tens a liberdade de escolher com quem casas (…) Pertences a uma instituição que, a qualquer momento, pode levantar o sagrado bem último da nação sobre a tua cabeça, e a menos que faças parte daquele restrito círculo de membros da realeza sobre quem recaem funções oficiais, pouco te resta fazer – e não há quase nada que te seja permitido em caso de poder comprometer a majestade da coroa.”
Mas então, tudo isto para quê? Se até para os membros da realeza todos aqueles títulos e privilégios se revelam, afinal, um regime de constrangimentos e inconveniências, como a série tão bem demonstra, para quê manter a charada? Para Sarah Ditum trata-se de um truque de magia, esse de ter um chefe de estado sem verdadeiro poder, e que se limite a elevar a etiqueta a um nível supremo para ir oleando as juntas da democracia, dando-lhe um ideal. Assim, esta instituição que soube reinventar-se enquanto tantas outras monarquias se desfaziam em escândalos ou se mostravam incapazes de captar esse pitoresco e ancestral elemento de fantasia, em tempos de democracia, numa sucessão de momentos conturbados e até mesmo dramáticos da vida britânica, a sua família real soube sacrificar ao imaginário popular um conjunto de figuras que, embora gozem de privilégios absurdos, vivem enclausurados numa representação, numa espécie de farsa benévola que ilustra esses valores distintivos sem o qual uma nação arrisca derivar ou diluir-se.
Mas vamos às liberdades artísticas assumidas por Peter Morgan e que tantos pruridos ou contendas tem produzido na reacção à nova temporada de “The Crown”. Para começar, há uma cláusula que ninguém disputa: quase todos os diálogos são pura especulação, mas vão mais longe do que isso, pois não apenas situam os factos históricos, mas há neles uma inclinação que se diria quase divinatória em relação àquilo que se seguirá. Os guionistas não tomam como um inconveniente o facto de o público conhecer já o desfecho da história que ali se está a contar, antes, servem-se desse alcance sobre o futuro para entretecer no fio da trama subtis indicações, denunciando antecedentes, assinalando aqueles aspectos que vieram a destacar-se pela intransigência fatalista do destino. Assim, a ilusão que a série cria é precisamente a de estarmos a lidar com um destino, quando, na verdade, as coisas muitas vezes acontecem de uma forma e não de outra por motivos puramente acidentais.
Como é retratado na série, o príncipe Carlos conheceu Diana, tinha ela apenas 16 anos, numa altura em que este cortejava a irmã mais velha, mas a encantadora cena em que a adolescente força um encontro com o príncipe parece arrancada das páginas de um romance do século XVIII, e o fascínio que Diana exerce dirige-se menos ao obtuso e decepcionante herdeiro do que à audiência. Andre Morton, que trabalhou com Diana numa explosiva biografia publicada em 1992, disse à Vanity Fair que, até ao momento, não tinha visto ninguém encarnar Diana de forma tão convincente como faz Emma Corrin nesta temporada da série. A atriz de 24 anos terá conquistado mesmo algumas das pessoas que eram mais próximas de Diana, e de acordo com Rachel Cooke, o que a atriz consegue fazer melhor do que ninguém é reflectir a razão porque a princesa se tornou tão popular junto do público. “O que há de arrepiante e revelador na sua performance está não no olhar desassombrado que por vezes nos lança, mas sim na forma como irradia a energia adolescente de Diana – essa vitalidade que chegava a ser desarmante e que, na verdade, a princesa, nunca perdeu.” Mas a imagem que a série passa é a de que Carlos se resignou a um casamento arranjado com uma virgem e inexperiente rapariguinha que vivia deslumbrada com os privilégios da realeza. Ele nem dá mostras de grande afecto por ela, mas a verdade é que, anos mais tarde, Diana confessaria que, no início, Carlos não a largava, e que a sua atenção chegou a dar-lhe a sensação de uma “aflitiva vermelhidão coceguenta na pele”. A série prefere elevar o drama dando a entender que Carlos nunca conseguiu libertar-se da influência e dos sentimentos pela sua namorada de longa data Camilla Parker Bowles. Um dos episódios iniciais lida também com os primeiros sinais da bulimia de Diana, tendo esta confessado a Andrew Morton que “a bulimia começou na semana após termos ficado noivos. O meu marido pôs a mão na minha cintura e disse: ‘Ah, estamos a ficar um tanto rechonchudas aqui, não estamos?’ E esse fez soar um alarme cá dentro. E aquela coisa com a Camilla – isso deixava-me desesperada.”
Embora a série vá bordando a realidade, fazendo adornos ficcionais a partir daquilo que foi vindo a lume ao longo dos anos sobre o desastre deste casamento, é fácil perceber porque é que Charles Spencer, o irmão mais novo de Diana, reagiu com algum desconforto à série. Ele revelou que os produtores pediram para filmar em Althorp, a ancestral casa de família, e adiantou que lhes tinha dito logo que “não, nem pensar”. Numa entrevista dada há dias, confessou que a sua preocupação é que as pessoas vejam uma série como esta e se esqueçam de que se trata de ficção. “Tendem a assumir, especialmente os estrangeiros, e foi isso o que me disseram alguns americanos, que viram ‘The Crown’ com a sensação de quem recebeu uma lição de História. O problema é que não receberam, porque as coisas não se passaram assim.”
O historiador Hugo Vickers deu-se ao trabalho de denunciar uma série de aspectos em que os guionistas cederam à fabricação pura e simples, e Simon Jenkins acredita que qualquer um deles serve para retratar de forma caricatural a família real. Vamos a eles. Logo no primeiro episódio a carta de Lord Mountbatten enviada a Carlos na véspera da sua morte, como o próprio Peter Morgan reconheceu, não passa de um dispositivo dramático. De resto, se o tio-avó do príncipe foi assassinado numa explosão provocada pelo IRA – quando pescava com o neto e um outro rapaz da península de Mullaghmore, no condado de Sligo, na Irlanda –, as coisas não se passaram exactamente como nos mostra a série. Ele não morreu de imediato na explosão, mas ainda foi retirado com vida dos destroços do seu barco, morrendo ao ser levado para a costa. Já no segundo episódio, a série faz algum estardalhaço de um conjunto de minas e armadilhas sociais montadas no retiro anual da família real no Castelo de Balmoral, situado numa propriedade da família real na Escócia. De acordo com a série, Margaret Thatcher terá falhado clamorosamente, e teve até a descortesia de abandonar a semana de retiro ao fim de apenas dois dias. Aparentemente, nenhum outro primeiro-ministro o terá feito, nem antes nem depois. Se Vickers garante que Thatcher não foi submetida a qualquer protocolo humilhante, nas suas memórias, Tony Blair referiu-se a essa tradição de convidar os primeiros-ministros para passarem uma semana de férias na companhia da família real em Balmoral, e parece sugerir que há de facto qualquer coisa como um elaborado regime de jogos e rituais que servem para avaliar os visitantes, tendo descrito uma das suas visitas como “uma vívida combinação de intriga, elementos surreais e aspectos absolutamente esquisitos”.
No retrato do período de noivado de Carlos e Diana, Vickers denuncia também a série por dar a entender que ela, a certa altura, foi ridicularizada pela princesa Margarida por não dominar os protocolos de reverência ao ser apresentada aos membros da família real. Por outro lado, o historiador também dá uma péssima nota à série por sugerir que, nos primeiros anos de casamento, Carlos não se coibia de ligar todos os dias a Camilla… Mas a lista de exageros ou distorções é demasiado longa, e pode tornar-se até mesquinha para quem, antes da série, não tinha sequer o menor interesse em deter-se nem nos aspectos gerais, e mais relevantes, nem, muito menos, nesses detalhes e complexidades da vida privada da família real britânica. Mas se há um momento em que a série, do ponto de vista da recriação e fidelidade histórica realmente oferece o flanco é no quinto episódio, aquele que nos fala da manhã em que a rainha foi acordada do seu sono e deu com um intruso nos seus aposentos no palácio de Buckingham.
Curiosamente, este é de longe o mais empolgante episódio desta temporada, aquele em que os criadores de “The Crown”, por um momento, parecem ter sido tomados pelo desejo de fazer uma estentórica homenagem a Kean Loach e aos seus filmes de penetrante crítica social. Sendo ele, desde logo, um dos grandes responsáveis por fazer ver ao público britânico a dimensão desagregadora e absolutamente nefasta do ponto de vista da coesão social das políticas de Thatcher. Mas na série este episódio de distorção heroica é feita descosendo uma pessoa de carne e osso, que vive ainda hoje em Londres, e que teve oportunidade de dizer aos jornais que não gostou de se ver retratado na série, desde logo porque, na sua juventude, era uma estampa, bem mais bonito do que o actor que escolheram para lhe dar vida na ficção. Michael Fagan acabou por ser ilibado depois de ter invadido por duas vezes o palácio, e, de acordo com um artigo do Times, de 1982, ter-se-á sentado na cama da rainha, dizendo-lhe que a amava e ameaçando matar-se com um caco de vidro. “The Crown” usa este insólito personagem real e, servindo-se vagamente dos seus contornos, constrói uma peça digna de museu no que toca às mais audaciosas e dissimuladas formas de propaganda, estabelecendo um perigoso antecedente no que toca a abusar das liberdades artísticas para reescrever a História.
Fagan surge-nos aqui como uma vítima emblemática das impiedosas reformas do Thatcherismo, as quais ainda hoje se projectam no nosso horizonte político, assombrando com o espectral e vasto elenco da culpa todos aqueles que, vivendo nas sociedades onde a regra dos estímulos económicos passou a permitir a defesa orgulhosa de desigualdades brutais, não se conseguem adaptar e dão por si enclausurados pela pobreza, e humilhados a um tal ponto em que, não é só a sua dignidade o que fica em causa, mas a sua luta de sobrevivência diária acaba por cobrar um custo ao nível da sua sanidade, sendo que cada vez mais o modelo neo-liberal se vê a braços com a necessidade de varrer para baixo do tapete as repercussões das suas políticas ao nível dos distúrbios mentais que provoca. Um vínculo que um pensador como Mark Fisher evidenciou de forma notável num livro como “Realismo Capitalista”, publicado este ano entre nós.
Este episódio da série retraça os meses que antecederam a proeza tresloucada de Fagan, e ilustram a espiral destrutiva em que este se viu engolfado depois de engordar as estatísticas do desemprego, que duplicou no período em que Thatcher residiu no número 10 de Downing Street. Vemos Fagan na fila de desemprego, obrigado a esperar nessa fila da desolação junto com os outros “falhados” para obter um carimbo e reclamar um miserável subsídio de sobrevivência, vemo-lo mendigar biscates e ver-se impulsionado na descoroçoante máquina burocrática a tentar conseguir um apoio que lhe permita fazer as obras em casa para ter alguns dias de custódia dos filhos, isto depois de a mulher o ter abandonado. Vemo-lo, finalmente, visitar os filhos num parque infantil, perdendo as estribeiras ao ver outro homem substituí-lo enquanto pai dos filhos, companheiro da sua ex-mulher, e provocar uma briga apenas para ser sovado em frente aos filhos. E depois, com alguns cortes e um olho negro, vemo-lo passar em frente a Buckingham no autocarro, de madrugada, decidindo-se a invadir de novo o palácio, desta vez já não com o mero intuito de um delirante explorador sem nada a perder, mas incentivado pelo seu representante local, um jovem magistrado conservador que se está nas tintas para ele, para as suas queixas, e que em vez de o mandar à merda, diz-lhe que se vá queixar à rainha. É o que Fagan faz. Na ficção. E na ficção o diálogo que mantém com a rainha é um dos mais perfeitos exemplos em que arte supera a propaganda e se transforma num momento de consciência de tal modo elevada que dá vontade de acreditar que a rainha realmente se compadeceu daquele pobre coitado e viu nele a expressão humana da devastação provocada por Thatcher. Mas numa série que se diz baseada em factos verídicos, este episódio desavergonhadamente audaz, acaba por se revelar uma fabricação insustentável, sobretudo quando basta pesquisar o nome de Fagan, e não faltam artigos que desfazem de imediato aquela fantasia. Como uma notícia que saiu em 2012 no “The Independent”, em que Fagan, a quem fora já diagnosticada esquizofrenia, diz: “Não sei bem porque é que o fiz, foi simplesmente uma coisa que me passou pela cabeça”, admitindo logo depois que pode ter sido um efeito secundário de ter ingerido cogumelos mágicos.
É um tropeção do qual o realismo socialista tem dificuldade em recuperar sempre que sente necessidade de alindar as coisas, forjar um herói a partir da pobre e frágil constituição de um tipo qualquer, como qualquer um de nós, e que, por isso mesmo, precisa ser protegido de situações de absoluto desamparo como aquela em que Fagan se viu.
Na altura dos factos, o “The New York Times” dava conta de que a rainha tinha tido a frieza para conversar com Fagan e tentar distraí-lo falando dos seus filhos, os príncipes, enquanto aguardava que a segurança do palácio se desse conta da sua colossal falha. No episódio, a realidade é que é expulsa como se não passasse de um estorvo, sendo substituída por uma versão que, não sendo propriamente falsa, é demasiada requintada do ponto de vista ficcional, de um idealismo que nos deixa a ansiar por uma confirmação de que aquilo realmente se passou. E é isso o que torna tão dolorosa a confirmação de que não, embora um Deus justíssimo pudesse ler aquele interacção à laia de subtexto, nenhuma daquelas palavras foi proferida. Nem Fagan é um herói nem a rainha estaria preocupada com outra coisa que não ver-se livre daquele lunático que sangrava de uma mão e lhe sujou a colcha da cama enquanto balançava entre a admiração por ela, por aquela figura que, mesmo ao acordar, e com toda a sua compostura, não desiludia face à imagem de dignidade da efígie, e o desespero que o fazia ameaçar o fio pelo qual estava preso à vida. “The Crown” mostra-se assim uma bela traição. Podemos desculpá-la, e admirar o seu engenho, mas isso apenas significa que ficaremos cada vez mais nervosos quanto ao salto sobre a cerca da História que ela dará a seguir. Desculpando-se, dizendo que o faz para nossa fruição e deleite, mas ainda assim, deixando claro que, quando realmente conta, a verdade é mandada às urtigas, e somos elevados pela fantasia para logo depois nos resignarmo-nos à derrocada de as vermos desfazerem-se no confronto com a realidade.