Não foi uma reunião sobre o Natal, mas soaram vários alertas sobre as semanas pela frente no combate à epidemia de covid-19. Especialistas e decisores políticos voltaram a juntar-se esta quinta-feira no Infarmed para um ponto de situação sobre a pandemia. “Boas notícias”, salientaram: o pico da segunda onda já passou, concordaram diferentes intervenientes, embora apontando datas diferentes para o momento em que se viveu o ponto de maior contágio. Ficou aquém do que chegou a ser estimado, para o que terão contribuído as medidas implementadas pelo Governo e mudanças nos comportamentos, com um máximo em torno das 5300 infeções diárias. Agora em rota descendente pelo menos já na região Norte, onde o RT já está abaixo de 1, o que colocou também o RT a nível nacional abaixo de 1. O risco: ao serem levantadas medidas ou aumentarem os contactos, a tendência será um novo aumento de casos e os convívios de Natal e Ano Novo serão propícios a isso. Foi o Presidente da República, que esta sexta-feira fala ao país, a colocar a questão sobre o que esperar em janeiro depois de dezembro e qual o risco associado a deslocações entre concelhos. Na resposta, as expectativas dividiram-se entre maior otimismo mas também os receios de uma terceira vaga, que mesmo com o arranque da campanha de vacinação apontado para janeiro não é descartada pelos especialistas.
Risco maior em família
O estado de emergência será renovado esta sexta-feira por mais 15 dias e o no sábado, como aconteceu nas vezes anteriores, o Governo concretiza as medidas que vão estar em vigor, apresentando agora os planos até 7 de janeiro já para incluir Natal e Ano Novo sem se esperar pela próxima renovação do estado de emergência, que calha em cima da véspera de Natal. Segundo o i apurou, a proibição de deslocações entre concelhos não deve vigorar nessa altura, mas vão ser definidas balizas para os encontros familiares e o primeiro-ministro ao longo da semana deu a atender que a folga será maior no Natal que no ano Novo. E até lá é preciso continuar a baixar a incidência, “pressionar a mola”, disse ontem, pelo que não é esperado um aligeirar das medidas nos concelhos de maior risco no imediato (que subiram de 217 para 235 na última avaliação da DGS).
O risco acrescido de contágio nas famílias foi descrito na reunião do Infarmed por Henrique Barros, epidemiologista e presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Henrique Barros explicou que na altura do Natal, dois em cada mil portugueses estarão capazes de infetar outras pessoas, sabendo ou não. “Quando nos sentamos à mesa, na maior parte das vezes não saberemos”, alertou.
Com base num estudo de 306 famílias no Porto com casos de covid-19, a equipa do ISPUP concluiu que, entrando um caso de covid-19 em casa, a probabilidade de infetar um familiar é de 23%. “Numa casa onde haja cinco suscetíveis (pessoas que nunca estiveram infetadas), é muitíssimo provável que ocorra uma infeção. Se forem oito, vão ocorrer duas infeções”. Se imaginarmos 100 famílias, num terço ninguém será infetado, nos restantes há uma a quatro infeções, continuou o investigador. Em contactos sociais mais esporádicos, em 100 grupos de cinco pessoas, em mais de 75% não haverá ninguém infetado, nos outros haverá um a quatro. “Se em cada família o risco é pequeno, isto, multiplicado por milhares de reuniões, corresponderá à ocorrência de muitas infeções”, sublinhou Henrique Barros, que estimou que neste momento já mais de 1,5 milhões portugueses terão estado infetados (15% a 20% da população), o que significa que 80% da população continua suscetível.
O investigador defendeu a necessidade de um novo inquérito serológico a nível nacional, que está previsto pelo INSA, até pelo impacto desta informação para perceber o que esperar com a vacinação. Na situação atual, com 80% da população suscetível, mantendo as medidas não farmacológicas (uso de máscara, restrição de contactos e distância) chega vacinar 24% das pessoas para se ter a chamada imunidade de grupo, isto com uma vacina com uma eficácia de 70%. Retirando medidas, seria necessário vacinar 83%. “Mesmo com 20% da população portuguesa imune, se a vacina só tiver eficácia de 50%, na ausência de medidas farmacológicas, nem que vacinemos a população toda conseguiremos resolver o problema”, estimou, tendo sido um dos peritos a advertir para a terceira vaga em janeiro, à semelhança do que vive o Japão.
O problema segue em janeiro
Com a vacinação ainda por arrancar e maior convívio no Natal, a advertência deixada foi de que os casos poderão começar a aumentar passados 15 dias, disse Manuel Carmo Gomes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que sublinhou ser difícil avaliar o impacto de medidas como a proibição da deslocação entre concelhos. “Tudo o que contribua para diminuir o número de contactos e um contacto se traduzir em contágio contribui para manter o controlo da epidemia”, disse. O especialista apontou que se Portugal conseguir manter uma redução diária de pelo menos 2% nos casos até ao Natal, que considerou fazível com as atuais medidas, poderá chegar a essa altura com 2500 a 3000 casos e menos doentes internados. E mesmo que os casos depois voltem a subir, disse esperar que seja uma subida mais controlada, com o início da vacinação a ajudar. Um cenário mais próximo da normalidade só mais perto do verão. “Quando chegarmos lá vamos ter de lamber as feridas e retomar a economia. Concretamente no Natal e pós Natal, vamos ter umas lombas”.
As “bolhas” que podem ajudar a partir de dia 10
Baltazar Nunes, epidemiologista do Instituto Ricardo Jorge, sublinhou que quando mais se conseguir reduzir a incidência agora, maior a probabilidade de a curva que venha a desenvolver-se depois ser menor. “Quando se reiniciar o processo de encontro das famílias, quanto menor a incidência, menor a probabilidade de haver um indivíduo infeccioso no seio familiar”, disse, propondo que em Portugal se adotasse a solução que tem estado a ser debatida no Reino Unido, as chamadas “bolhas de Natal”. “Tentar reduzir ao máximo o contacto que se tem com outros fora da bolha 14 dias antes e 14 dias depois do Natal”, explicou o investigador.
Ora a contagem decrescente de 14 dias para o Natal começa a 10 de dezembro, na próxima quinta-feira. Nas escolas, o primeiro período está previsto acabar a 18 de dezembro e já chegou a se discutido o término das aulas uma semana mais cedo, o que ganha novos argumentos.