O município de Lisboa é, talvez, um dos melhores ‘laboratórios políticos experimentais’ de que o país dispõe, quer para incubar tendências, transferidas mais tarde para o todo nacional, quer para revelar patologias incomuns.
No domínio das tendências, recorde-se que foi lá que António Costa, então autarca, relançou a governação na base de um frentismo de esquerda, como bom discípulo de Jorge Sampaio, que, em 1989, coligou o PS com o PCP, alargando, em 1993, essa aliança à UDP e ao PSR, antecessores do Bloco.
Quanto a patologias, foi lá, também, que um vereador, em representação do BE, se pronunciou em tempos, ardorosamente, contra a especulação imobiliária na cidade, enquanto não menos laboriosamente tratava da vida, especulando com um prédio em Alfama, na justa aspiração de alcançar lucros milionários.
Quando se descobriu a incoerência do ‘artista’, a direção bloquista ainda tentou a sua defesa, com Catarina Martins na primeira linha, até que, percebendo o caricato da situação, deixou o vereador afundar-se, até ser forçado à renúncia por causa do «enorme constrangimento» criado pelo negócio.
Com o episódio já esbatido, outro vereador da mesma agremiação, que substituiu o «empreendedor imobiliário», ameaçou com «um par de murros nas fuças» um autarca de uma freguesia lisboeta, ex-bloquista, por se ter atrevido a criticar a sua pudica abstenção na Câmara, quando se tratou de deliberar sobre o projeto de edificação para o chamado ‘quarteirão da Suíça’, que sacrificou a mítica pastelaria… à especulação imobiliária.
Desde que votou contra o Orçamento de Estado, apeando-se da ‘geringonça’, a direção do Bloco de Esquerda anda estranhamente apática e nem saiu em socorro do seu vereador Manuel Grilo, com o pelouro da Educação – palpite-se !… –, ex-sindicalista da Fenprof e da CGTP, nem achou necessário extrair as consequências e retirar-lhe a confiança.
Recorde-se que em 2016, por causa de umas «salutares bofetadas» prometidas a dois colunistas do Público foi João Soares forçado a demitir-se de ministro da Cultura, depois de ouvir um ralhete de António Costa.
Mas para as bandas do Bloco, o entendimento é diferente, enquanto o vereador tratou de apagar a ‘metáfora’ nas redes sociais, como lhe chamaria Mamadou Ba, um ex-senegalês convertido, com proveito, à nacionalidade portuguesa e à família bloquista.
O Bloco, aliás, parece ter-se especializado em ‘produzir’ autarcas com uma luminosa noção de cidadania e de responsabilidade social, desde o tempo em que José Sá Fernandes, eleito vereador com as suas cores, desencadeou uma luta tenaz contra o chamado túnel do Marquês, conseguindo a proeza de parar a obra e de onerá-la escandalosamente. E ainda lá está.
Quem convive, no entanto, harmoniosamente, com o Bloco, é Fernando Medina, o edil instalado na Praça do Município, herdeiro do gabinete de António Costa e que o segue como uma sombra.
Perdida a maioria absoluta na capital, Medina logrou concretizar a desejada aliança à esquerda com o Bloco, perante a ‘nega’ do PCP, e, feliz consigo, jurou em novembro de 2017 não ser a solução «uma ‘geringonça’», mas «um acordo político formal».
O resultado dessa ‘formalidade’, que lhe garante a maioria na vereação, está à vista dos munícipes: com as contas a derraparem, Medina já apareceu ‘encostado’ ao independente Rui Moreira, do Porto, a reclamar alterações legislativas que permitam a ambos aumentar o endividamento em 50% e a suspensão da regra do equilíbrio orçamental.
Obtida essa folga, Medina já poderá desembolsar uma verba choruda para pagar a Web Summit, em parceria com o Governo (que decorre, desta vez, em formato digital), esquecido das cláusulas de salvaguarda que poderiam ter sido invocadas perante um quadro sanitário de exceção.
Paddy Cosgrave, o irlandês inventor da feira tecnológica, tem razões para estar agradecido. Já o retorno para Lisboa será tão virtual como improvável.
Quando Medina terminar o mandato, o Município poderá estar a ‘deitar contas à vida’, com a capital asfixiada por labirintos de ciclovias e florestas de pilaretes sem sentido, lesivos da mobilidade, tomada pela balbúrdia institucionalizada, com a parolice de ruas fechadas ao trânsito, para serem pintadas de cores garridas, como chão de esplanadas. Lisboa ficou Disneylândia de alcunha e perdeu a alma.
Em vésperas de um conselho europeu vital para viabilizar a ‘bazuca’ de que Portugal precisa como ‘do pão para a boca’, o paradoxo é António Costa estar internamente tão refém do PCP, partido antieuro e antieuropeu, como Fernando Medina do Bloco, geneticamente idêntico na sua aversão à Europa.
Por muito menos, António Guterres fugiu do ‘pântano’ em dezembro de 2001, a seguir as autárquicas. Sócrates estava ainda na forja…