Com tudo o que viu e viveu, Benjamin Ferencz teria razões de sobra para ficar deprimido e traumatizado. «Vim ao mundo como indigente, vivi a maior parte da juventude na pobreza», descreve na sua autobiografia, Palavras que
Tocam a Alma, recentemente editada em Portugal pela Lua de Papel. Nasceu na Transilvânia, numa casa de campo que não tinha água, eletricidade, nem casa de banho. Com apenas nove meses, em pleno inverno de 1920, cruzou o Atlântico a bordo de um pequeno navio. A família viajou no convés aberto, «em terceira classe porque não havia uma quarta classe». O pai, desesperado com o choro do bebé faminto, pensou deitá-lo borda fora.
Benjamin participou em todas as grandes batalhas da IIGuerra Mundial na Europa, incluindo o desembarque na Normandia. Diz que sobreviveu porque «era baixo [tem cerca de um metro e meio] e por isso as balas passavam-me por cima da cabeça». No Velho Continente viu o horror absoluto. Primeiro, teve como função «tratar da remoção dos cadáveres» de pilotos de aviões aliados abatidos. «Era inverno e o chão tinha endurecido, mas não me atrevia a usar a picareta, pois arriscava-me a acertar na cabeça de alguém e ser impossível ser distinguir o ferimento assim causado de um provocado por uma faca ou uma bala. Prendia o calcanhar em volta de um ou de ambos os calcanhares da vítima, atava-a à parte de trás do meu jipe e tentava lentamente arrancar o cadáver do solo». Depois, foi encarregado de criar um novo departamento de crimes de guerra. Coube-lhe em sorte recolher provas de acusação em campos de concentração nazis como Buchenwald, Mauthausen, Flossenbürg e Ebensee. «Ainda hoje tenho dificuldade em descrever o que vi. Aquilo fica connosco o resto da vida. O caos absoluto. Os combates ainda a decorrer. Corpos espalhados por todos os lados, alguns mortos, outros feridos, a suplicarem, fracos, a implorarem com o olhar. Vi montes de peles e ossos empilhados como lenha, esqueletos indefesos com diarreia, disenteria, tifo, tuberculose e pneumonia. Vi pessoas a vasculhar no lixo como ratos, a escavar com as mãos um pedaço de pão ou outro resto qualquer para comer».
Uma cena em particular ficou-lhe gravada para sempre na memória pela especial desumanidade. «Muitas vezes, quando chegávamos aos campos, ainda encontrávamos alguns SS em fuga. Em geral os prisioneiros estavam demasiado fracos para se mexerem, mas ainda havia alguns em condições razoáveis que andavam por ali a fazer coisas. Num dos campos, vi-os apanharem um dos guardas e começarem a espancá-lo. Quando estava quase inconsciente, puseram-no numa maca, levaram-no até ao crematório, meteram-no lá dentro e começaram a assá-lo.
Deixaram-no lá dentro algum tempo, mas não o suficiente para o matar. Arrastaram-no de novo para fora, bateram-lhe de novo e meteram-no lá dentro outra vez. Fizeram aquilo três ou quatro vezes até estar suficientemente bem queimado e, seguramente, morto».
‘Não podia estar melhor’
Apesar dessas experiências terríveis, hoje, com cem anos, Benjamin Ferencz é uma pessoa feliz e realizada – apenas magoada pela recente partida da mulher, Gertrude, «ao fim de 74 anos de um casamento feliz». Quando lhe perguntam como está, responde sempre: «Não podia estar melhor». Como consegue manter este optimismo depois de tudo aquilo a que assistiu? «Porque tenho consciência das alternativas».E, para quem nasceu na Transilvânia e cresceu num bairro como Hell’s Kitchen, rodeado de pobreza e criminalidade, as perspetivas não eram especialmente promissoras.
Filho de «um sapateiro com um só olho» que em Nova Iorque se tornou zelador de um prédio, teve de aprender a sobreviver e a desenvencilhar-se num meio particularmente duro. «Se alguém me desafiava, dava-lhe um pontapé nos tomates e depois golpeava-o com o joelho na cabeça quando caía. Desde muito cedo habituei-me a lidar com rufias. Nunca me desafiavam duas vezes», recorda.
Contra todas as expectativas, estudaria numa das melhores universidades do mundo – Harvard, onde cursou Direito.
Tornou-se assistente de um professor de Criminologia, Sheldon Glueck. «E uma vez que Glueck ponderava escrever um livro sobre a agressão e as atrocidades da Alemanha, a minha primeira missão foi resumir todos os livros da biblioteca de Harvard relacionados com crimes de guerra, tarefa que provavelmente mudou a minha vida. Depois da guerra, quando o Exército se voltou para Glueck, porque ele estava a trabalhar como consultor para o Pentágono, ele disse-lhes para me procurarem e eu fiquei com a incumbência».
Foi assim que, terminada a guerra, Ferencz se tornou um dos investigadores encarregados de montar a acusação contra os nazis, quando o Exército americano o nomeou procurador-chefe no Processo Einsatzgruppen, que julgou os responsáveis pelas atrocidades nos campos de concentração. Com o que tinha visto e os documentos que tinha reunido, as provas eram esmagadoras.
Num dia de mau tempo em 1948, quando regressava a Nuremberga num «velho avião C-47» para ouvir a sentença num dos processos, um dos motores do avião começou a falhar. Com o paraquedas às costas, agarrou na mulher e dirigiram-se para a traseira do avião. ««Só a muito custo consegui abrir a porta por causa do vento e, quando tentava escapulir pelo espaço livre, a porta escancarou-se de repente e eu caí para as nuvens».
Aterrou no meio de um campo de futebol na zona controlada pelos russos.
A vida de Benjamin Ferencz, a par dos horrores que testemunhou, também está recheada de episódios de recorte cómico. Um deles passou-se há cerca de um ano, quando recebeu o diploma do liceu. A resposta que deu revela o seu humor tipicamente judaico, mas também a sua boa forma aos 99 anos.
«Esperei pacientemente por este documento nos últimos oitenta e dois anos. Será com enorme alegria que o colocarei na parede logo abaixo do meu diploma de doutoramento em Direito, da Faculdade de Direito de Harvard, em 1943. Posso sempre explicar que sou lento a aprender».