No dia em que terminei de ler a maciça biografia de Adolf Hitler assinada por Ian Kershaw pensei para mim próprio que o assunto estava arrumado, que durante muito tempo não ia ler sobre Hitler, o nazismo ou a Segunda Guerra Mundial. Pura ilusão! Isto passou-se há um pouco mais de dez anos, e de então para cá li muitos e bons livros sobre o assunto. Ainda há poucos dias a providência me colocou no caminho No Bunker de Hitler – Os Últimos Dias do Terceiro Reich (ed. Guerra &_Paz). Ao contrário do que se possa pensar, o que me cativou não foi tanto o título (que até me pareceu um pouco ‘publicitário’), mas sim o autor.
Nascido em 1926, filho de um professor antinazi convicto, Joachim Fest alistou-se no exército quando tinha 18 anos e combateu pela Alemanha durante a Segunda Guerra, acabando por ser feito prisioneiro em França. Depois, teve uma brilhante carreira como jornalista quer na TV quer na imprensa, e ajudou Albert Speer, o famoso arquiteto do Reich, a redigir as suas memórias. Mas foi sobretudo como biógrafo de Hitler que se destacou e ganhou renome internacional. Em 2006 criticou Günter Grass por ter escondido durante tanto tempo ter pertencido às Waffen SS, uma espécie de tropa de assalto do partido nazi. Seria a sua última grande intervenção pública – Fest morreria ainda nesse ano.
Publicado em 2002, No Bunker de Hitler também foi escrito no final da vida, e constitui um relato minucioso dessas semanas terríveis em que o Führer, que sempre teve a obsessão das fortificações, dos abrigos e dos bunkers, estava encurralado no complexo de salas e túneis cerca de dez metros abaixo do solo dos jardins da Chancelaria, protegido por um teto de betão com 4,5 metros de espessura.
Lá fora, com o exército russo à beira de tomar a cidade, o cenário era dantesco. «Em cada dia que passava, havia uma fábrica, uma oficina ou um serviço de abastecimento que deixava de trabalhar. Muitas vezes faltava a água durante várias horas e, desde o dia 22 de Abril, era condenado quem utilizasse eletricidade para cozinhar. No asfalto amolecido acumulavam-se destroços e lixo, que, juntamente com o cheiro omnipresente da carne queimada, provocavam um fedor insuportável», descreve Fest. «Os últimos jornais, assim como os cartazes afixados nas colunas de anúncios, continham […] bizarros conselhos acerca da maneira de superar os perigos da vida diária. Para melhorar ‘a base de proteínas’, dizia um desses conselhos, a população devia ir aos inúmeros lagos da cidade e caçar rãs, o que facilmente conseguiam ‘ao arrastar trapos de cores na superfície da água perto da margem’». Depois de ser atingida por cerca de cem mil toneladas de explosivos, 40 mil das quais em apenas duas semanas, Berlim estava reduzida a uma montanha de destroços e cinzas fumegantes. «Os estatísticos calcularam depois que havia uma massa de escombros de trinta metros cúbicos por cada habitante».
Dentro do bunker, entretanto, desenrolava-se uma espécie de tragicomédia, com contornos que trazem à mente o teatro do absurdo. No último aniversário de Hitler, a 20 de abril de 1945, ainda se dançou ao som do gramofone, mas a festa, promovida por Eva Braun, foi estragada pelos soviéticos. «Os impactos da artilharia obrigaram-nos a regressar ao bunker».
Ali, debaixo do solo, a atmosfera ia-se tornando mais pesada a cada dia que passava. Fest descreve esse ambiente, e o estado de desânimo dos habitantes do subterrâneo, o que disseram e o que fizeram nessas horas fatais. Mas complementa esse relato com uma espécie de destilação das suas pesquisas de décadas sobre a personalidade e os planos de Hitler.
Fest aponta como característica essencial do líder nazi uma espécie de pulsão destruidora, um desejo de aniquilação agudo e absoluto, uma atração pelo abismo. Enquanto outros grandes conquistadores alegavam, pelo menos, ser os porta-vozes do progresso ou da civilização, o Führer trazia consigo apenas a promessa de devastação total. Por isso, considera o biógrafo, o destino de Berlim, arrasada por milhares de toneladas de explosivos, era algo que não lhe desagradaria totalmente.
Nos dias do fim, Hitler gostava de passar a sua vida em revista e de apontar os erros cometidos, em monólogos longos e confusos. Via-se a si próprio quase como um sentimental – «No fim, uma pessoa arrepende-se de ter sido tão boa», terá afirmado. Precisamente por isso, por nunca ter conseguido levar as suas intenções às últimas consequências, merecia ser derrotado sem contemplações. Dava o exemplo dos macacos, que «pontapeavam até à morte qualquer ‘estranho alheio à comunidade’. E o que vale para os macacos, devia ser válido para os homens em maior medida». Uma visão destas só poderia dar mau resultado.