A entrevista é feita por telefone e as fotografias são de uma conversa em maio no quartel-general da Direção-Geral da Saúde, quando falámos da incerteza da pandemia e de uma doença nova que nunca se sabe quem leva. No último domingo de outubro percebeu que podia estar infetada e dias depois surgiu a confirmação. No final da recuperação da covid-19 e prestes a regressar ao trabalho, na próxima segunda-feira, Graça Freitas diz-se sentir-se grata por ter passado bem pela infeção e sublinha que mesmo tendo todos os cuidados, como tinha, o risco nunca é zero. Com o Natal à porta, assume preocupação, mas considera que as medidas são equilibradas e que os portugueses têm informação para se proteger.
Fica-se com uma ideia diferente da covid-19 depois de se passar pela doença?
Fui extremamente cuidadosa desde o início. Limitei com uma fita o meu gabinete, passei a comer sozinha também no gabinete, quando muito partilhava com outra pessoa, mas a grande distância. Estava convicta de que ter esses cuidados me iria proteger, apesar de dizer frequentemente que não há risco zero. E isso é uma das coisas que ficam: não há. Podemos fazer imensa coisa para reduzir, uma medida só nunca chega, mas podemos ser confrontados com sermos infetados mesmo tomando todas as precauções. Houve um dia em que uma colega me ligou e me disse: estivemos na mesma sala e eu estou positiva. Já não a via há muitos dias e, naquele, calhou estarmos na mesma sala.
Tinha sintomas já?
Tinha começado a ter uns sintomas ligeiros, inespecíficos. Pensei que o teste tanto podia dar positivo como negativo. Podia ser qualquer outra coisa.
Costumavam até brincar com os seus cuidados como entrar no elevador sempre virada para a parede. Contou-me em maio que tinha já conseguido deixar de mexer tanto na cara e nos óculos, hábitos que se tem de fazer um esforço para interiorizar. Tem alguma suspeita de como terá sido infetada?
Nunca temos a certeza mas, por isso, o que gostava de transmitir às pessoas é que devemos ter todo o cuidado possível, sabendo que mesmo assim pode acontecer. E se não tivéssemos cuidados? É um vírus que circula muito facilmente. É como diz, nunca mais toquei nos óculos, nos elevadores ficava sempre virada para um canto, independentemente de estar alguém. Criei uma série de rotinas na minha vida para reduzir a probabilidade de infeção. Naquele dia tínhamos um trabalho para acabar. Eu estava no meu piso e três especialistas estavam no piso 3, numa videoconferência. Fui assistir ao final. Estávamos todos com máscara. Uma das pessoas estava doente e não sabia.
Estavam perto?
Não estávamos muito perto, estávamos a metro e meio, talvez. No conjunto, estávamos a cumprir as regras.
Isso depois surpreendeu-a?
Surpreendeu um pouco. Não sei exatamente como foi, ninguém sabe. Penso que como estavam a trabalhar há bastante tempo numa sala que não é grande pode não ter havido o arejamento suficiente. É uma teoria. Mas não estive lá mais de meia hora e quando saí para o gabinete não tinha a sensação de que tivesse estado numa situação de risco. Nestes meses todos, senti isso uma ou duas vezes. Uma vez, há uns cinco meses, num restaurante, senti isso, por exemplo, a ver as pessoas muito perto a falar umas com as outras sem máscara, mas ali não foi o caso. Saí completamente descansada. A reunião foi na sexta e a colega telefonou-me no domingo.
Já teve outros diagnósticos difíceis ao longo da vida. Saber que estava positiva custou mais por si ou por pensar que podia ter infetado outros?
Custa muito pensar nos outros. Vivo sozinha com o meu marido e desde que isto começou não tivemos nenhum contacto, tirando a nossa empregada que, quando entra, nós saímos. Não vem ninguém cá a casa. Temos sido muito parcimoniosos a visitar a família, só quando é mesmo necessário. A minha grande aflição foi pensar que o meu marido podia estar contagiado. Tinha aqueles sintomas e pensei se ele, que tem estado em teletrabalho, a ter os cuidados todos, tinha sido infetado por mim.
Teve os sintomas que vem descrevendo ao longo destes meses ou houve alguma coisa diferente?
Como hoje se sabe, os sintomas nesta doença variam muito, das pessoas que não sentem nada a sintomas ligeiros e aos casos graves. Tive sempre sintomas ligeiros. Nunca tive febre, que era algo que estaria à espera de ter. E, depois, os sintomas flutuam: há um dia em que se está bem, noutro não tanto, e a doença tem esta incerteza de se estar sempre com algum temor de piorar. É uma sensação que, do ponto de vista psicológico, causa alguma ansiedade.
Há aquela barreira da segunda semana, em algumas pessoas pioram.
É mesmo, e ser médico, aqui, não abona nada a nosso favor, porque começamos a contar os dias.
Qual é o dia crítico?
Para mim era entra o sétimo e o décimo dia. Pela literatura, sabemos que pode haver aí uma viragem. E depois cumpri à risca o que estava na norma, ter o oxímetro, vigiar sintomas.
Nem toda a gente tem o oxímetro em casa.
Aconselhamos a ter porque ajuda, dá um dado objetivo. Bebi muita água, o próprio corpo pedia, apesar de não ter febre. Não senti um cansaço extremo, mas senti uma necessidade de repouso. É uma sensação de vulnerabilidade. Durante uns dias, não sabemos o que vai acontecer, e essa incerteza é pesada.
Quando conversámos há uns meses falava-me de como já na pandemia de 2009, que acabou por resolver-se mais depressa, o seu pensamento era que, infelizmente, não acaba bem para muitas pessoas. O que se sente quando, com alguns fatores de risco, se consegue passar por isto bem?
É complicado. No dia em que eu soube do resultado, à noite, muitas pessoas mandaram-me mensagem e uma delas foi uma amiga da nossa idade, um bocadinho mais velha do que eu e o meu marido. O meu marido foi dizer-me que a nossa amiga me enviava um abraço, desejava as melhoras, e soubemos então que o marido tinha morrido há cinco dias com covid-19. Foi algo muito duro, que me tocou muito, uma amiga solidária comigo que tinha acabado de ficar viúva. Tenho 63 anos, antecedentes de doença complicados. Pensei que se algum dia tivesse a doença podia ser candidata a ter doença grave. O que eu sinto neste momento é um grande alívio. É uma sensação de gratidão pela vida, por a natureza me ter dado este presente. E sinto esse grande alívio duplamente, não ter tido uma complicação e não ter transmitido a ninguém. Creio que todas as pessoas mais velhas que têm um diagnóstico ficam um pouco abaladas, mesmo quando sabemos que a maioria evolui bem.
Perdeu o paladar e o olfato?
Não, mas tive uma coisa diferente: fiquei com um paladar hipersensível. Tudo me sabia a muito doce ou muito salgado. Mas, mais uma vez, nada do outro mundo. Estou muito grata por ter passado por isto assim. Mesmo tosse, tive a partir do nono dia, mas nada de especial.
Seguiu os procedimentos, ligar para o SNS24, etc.?
Fiz tudo o que me mandaram – nesse aspeto, não há nenhum doente melhor do que eu. Estou muito agradecida ao meu centro de saúde, todos os dias a médica assistente me ligava para monitorizar. Todos os dias me telefonavam, perguntavam como estava. Sou muito disciplinada nestas coisas e fui apontando os sintomas num caderninho. Nunca precisei de sair de casa para fazer nenhum exame. Não saí ainda, será agora no fim de semana, à partida.
Tendo feito esse circuito, apercebeu-se de alguma lacuna nesse seguimento?
Podia ter sido só eu mas, por coincidência, ao mesmo tempo que eu houve várias pessoas que conheço doentes e fomos mantendo o contacto. Mandávamos mensagens a dizer «hoje já me ligaram», uma delas disse que já lá tinham ido a casa ver se precisava de alguma coisa. O que sinto depois disto é que tanto os centros de saúde como a saúde pública têm dado um apoio fantástico, nem de mais nem de menos. Mesmo ao meu marido, que foi sempre contacto de risco, ligaram sempre. Fiquei com orgulho pela forma como o sistema está a funcionar. E pelos relatos que fui tendo senti que não estava a funcionar só para mim. As pessoas sentiam-se acompanhadas e gostei muito de constatar isso.
Depois de se saber que estava infetada, a ministra da Saúde e os secretários de Estado foram testados, não sendo contactos de alto risco. Esta semana, o primeiro-ministro fez o teste depois de o Presidente francês testar positivo, tendo passado apenas um dia. Esta dualidade de critérios, mesmo sendo titulares de cargos públicos, não fragiliza as normas da DGS?
O primeiro-ministro, tanto quanto sei, partilhou uma refeição, o que pode ser considerada uma situação de risco. E eu tive uma reunião com a senhora ministra e com os secretários de Estado, com distância e de máscara, mas são pessoas que contactam com muitas outras. A regra existe, mas o que tem de haver sempre é também uma avaliação caso a caso.
No caso do primeiro-ministro, não é cedo para fazer o teste?
Pode ser considerado cedo, mas terá sido por precaução. Eu tive um período de incubação curtíssimo. Estive sexta-feira ao fim da tarde com a minha colega e no domingo, apesar de não poder garantir que fosse já covid, tinha sintomas. Sabemos que o período de incubação pode ir de 2 a 14 dias, a média serão sete a oito, mas creio que no meu caso foi de 48 horas. A minha empregada, com quem só tive um contacto ligeiro, ficou os 14 dias isolada, mas não fez o teste.
Regressa esta segunda-feira ao trabalho. Uma sondagem publicada esta semana indica que os portugueses confiam hoje menos na Direção-Geral da Saúde. Como olha para este sentimento?
Já tenho dito que estamos a viver todos, nós e em todo o mundo, aquilo a que se chama fadiga pandémica. Fomos passando ao longo destes meses por altos e por baixos, por fases que correram melhor e pior. As pessoas estão cansadas, muitas adoeceram, há receios de várias naturezas. Creio que é normal haver um desgaste das instituições, sobretudo numa epidemia com tantos altos e baixos.
Sem uma solução fácil?
E isso sente-se na própria doença. Mesmo noutras doenças, mesmo num cancro, uma pessoa sabe que vai fazer a cirurgia, a quimio, há uma previsibilidade na história da doença que não existe aqui nem a nível individual nem a nível coletivo. E às vezes perguntamo-nos porque é que ainda temos estes contágios todos quando temos tantas precauções. Podíamos estar com uma taxa de ataque menor, mas não estamos. É um vírus que se propaga com grande facilidade. Se calhar consegue manter-se no ar mais tempo do que pensamos, basta talvez uma menor quantidade para nos infetarmos do que noutros vírus – há muitas coisas que ainda não percebemos bem. E eu percebo, por isso, que os cidadãos se sintam mais confusos, mais desgastados do que no início. No início sabia-se tão pouco que o que uma instituição dizia era praticamente a única informação que se tinha, e hoje não é assim. E isso está a passar-se em todo o mundo: há um desgaste de todas as pessoas e todos queremos que a vida volte ao normal.
Há, ainda assim, alguma coisa de que se arrependa, que ache que pode ter contribuído para este sentimento?
Acho que nunca podemos perder de vista a velocidade com que tudo tem acontecido. Estive agora estes dias em casa e tive a oportunidade de rever muita coisa. Se uma pessoa for ver os artigos científicos que se publicaram no início e o que se diz agora, as coisas foram mudando. Perguntam-me: arrepende-se? Com o tempo que tivemos para pensar, houve muitas coisas que, se houvesse mais tempo, teriam sido ditas de outra maneira. Veja-se, esta semana, o rei da Suécia [que defendeu que o país falhou]… As pessoas estão preocupadas mas, na altura em que se tomam as decisões, estão convencidas de que são as melhores. E depois é sempre muito difícil comparar culturas diferentes. Diz-se que aprendemos uns com os outros, mas temos culturas, comportamentos, níveis socioeconómicos diferentes. Um dia, se sobreviver mais uns anos, hei de escrever sobre o que disse ou não disse. E no caso das máscaras, que é algo sempre referido, continuo a dizê-lo.
Que pode dar uma falsa segurança.
E uso máscara FFP2, pelos meus antecedentes. Digo isso porque as pessoas, por vezes, quando estão com máscara tendem a aproximar-se mais. Temos de ter noção de que não há milagres. Uma máscara com humidade não é uma máscara seca. Se calhar, não estava com a minha máscara nas melhores condições naquela sexta-feira. Isto para dizer que não podemos baixar a guarda. Se com todos os cuidados há probabilidade de acontecer, imagine se não houvesse cuidados. Mesmo agora, quando sair de casa vou continuar a ter todos os cuidados que tinha, até porque não sei quanto tempo dura a minha eventual imunidade. Não sei quando posso ter a segunda vez.
Falou da intervenção do rei da Suécia. Também cá temos uma segunda vaga, com mais mortes do que a primeira, mais internamentos. Poderemos dizer que alguma coisa falhou?
Para tudo na nossa vida precisamos da distância do tempo para refletir e avaliar. Penso que todos os países vão ter de fazer essa análise, perceber mesmo na doença o que leva a esta diversidade de quadros clínicos. Temos de ter a calma, a distância e o tempo para estudar e comparar. Só conseguimos perceber o que aconteceu quando compararmos uma fase com outra, como foram afetados os grupos etários.
Não podemos chegar à conclusão que foi um erro não terem sido tomadas medidas mais duras nesta segunda vaga?
Não podemos tirar conclusões antecipadas e não podemos concluir nada antes de estudar. Enquanto não tivermos tempo para escalpelizar o que aconteceu nas duas vagas, não podemos tirar conclusões. Há lares que conseguiram ter uma menor taxa de ataque que outras, reagiram mais cedo, mas tudo isso depende do que se pode fazer. Cá em casa, antes de fazer o teste, mal soube que a minha colega estava infetada comecei logo a usar máscara. Quando podemos fazer isto, é uma coisa; quando os primeiros casos passam despercebidos por um motivo ou por outro, o resultado é outro. Mas nem sempre se sabe. Temos de deixar tudo assentar. Agora é tempo de cuidar das pessoas. Nos próximos tempos, vacinar, vacinar, vacinar. E depois teremos de estudar. É a única hipótese de conseguirmos perceber o que se passou.
Estamos a chegar ao Natal. A pandemia não está a abrandar tão depressa como se esperava. Está preocupada?
Estou sempre preocupada. Uma pandemia é assim mesmo e tudo o que seja mais contactos pode complicar a situação. Gostaria que os casos fossem mais baixos do que são. As pessoas querem estar juntas e gostava que isso não implicasse um risco tão grande. E é preciso ter essa noção: basta uma pessoa estar doente num grupo para esse grupo ficar todo doente. Gostava que as pessoas conseguissem organizar o seu Natal de forma a reduzir ao mínimo os seus contactos em família, por muito que gostemos uns dos outros. Tenciono ir ver a minha mãe meia hora, para lhe dizer que gosto muito dela e que espero que para o Natal que vem possamos estar normalmente. Mas não vou ficar para partilhar uma refeição e, se calhar, agora até podia pensar que já não transmito e estou imunizada pelo menos uns tempos. É uma questão de disciplina, da necessidade que continua a existir de criarmos uma rotina diferente nas nossas vidas. Vou dar um beijo à distância à minha mãe, que sei que vai ficar feliz só de me ver. Tem 90 anos. Das coisas mais difíceis foi contar-lhe.
Revê-se nas medidas decretadas pelo Governo ou era favorável a restrições mais apertadas?
Penso que, neste momento, todos temos informação suficiente. E creio que o Governo permitir que as pessoas no Natal mantenham algum grau de convívio, desde que seja cauteloso, é equilibrado. Neste momento sabemos como minimizar o risco e temos essa obrigação. Dou um exemplo: conheço uma família que vive em núcleos pequenos, pais e filhos e alguns familiares mais velhos, e costumam juntar-se todos os Natais. Este ano disseram-me que vão fazer pelo Teams: vão pôr a mesa ao mesmo tempo e estar juntos assim à hora de jantar. E são pessoas normais, não são médicos nem especialistas. Sabem o suficiente para perceber que cada um daqueles núcleos familiares, cada um com uma pessoa de risco, não se deve juntar. Combinaram a hora, o menu e vão ligar uns aos outros.
Acha que se pode confiar nas pessoas?
Acho que sim, estou convicta disso. E, pelo menos das pessoas com quem vou falando, sinto que há este cuidado sobretudo quando há pessoas que ou pela idade ou patologia são consideradas de risco. Acho que ninguém quer pôr nenhum parente ou amigo, nestas circunstâncias, em maior risco do que aquele em que já está.
Como viu esta semana as sugestões do seu subdiretor, Rui Portugal, para Consoadas ao almoço ou mesmo reuniões ao pequeno-almoço?
O meu subdiretor é uma pessoa de quem gosto muito, muito genuíno. Deu um exemplo que é verdadeiro, tem um familiar direto que faz anos no dia de Natal e costumam fazer um pequeno-almoço. Acho que não se deve fazer disto um drama. Um drama é uma pessoa estar doente.
Tem havido críticas à comunicação da DGS. Ver as conferências agora em casa não lhe trouxe outra perspetiva?
Não. E neste caso do Rui, nestes tempos tão tristes, até achei interessante. Conheço-o e genuinamente é uma pessoa boa, e só queria dar um exemplo. E digo-lhe: «Às vezes, não conseguimos passar a mensagem». Estou muito sensibilizada com os meus vizinhos. Também houve reações quando uma vez disse que podíamos recorrer à horta de um amigo. Lá porque vivemos na cidade, uma pessoa pode ter amigos com hortas. No fundo, foi agora como as compotas. Tenho amigos que vivem em Lisboa mas têm hortas até nos arredores, e tenho recebido muitos víveres. E compotas também. Recebi um frasco de doce de framboesa maravilhoso. Lá porque somos urbanos, podemos ter estes gestos. Tenho recebido castanhas, marmelos. Ainda ontem me chegou aqui uma tacinha de marmelada. Achei que o Rui foi ternurento. A nossa vida também é feita destas coisas. Não podemos ser assim tão azedos uns para os outros.
Um desejo para 2021?
Que a vacina seja efetiva e que nos permita contrariar o vírus, já que, pela natureza, vemos que não conseguimos fazê-lo. O meu maior desejo era termos aquele dia em que podemos abrir a porta de casa e sair sem pensar. Ir dar um passeio, ir comer fora, ir para o aeroporto fazer uma viagem, seja o que for. Ir sem pensar se se deve, pode, se faz bem ou mal. Voltarmos a poder ir para o mundo espontaneamente. É o meu maior desejo para mim e para todos.