No ano em que fez greve de fome em frente à Assembleia da República em protesto pela escassez dos apoios do Estado à restauração, e num ano devastador para o setor, o chefe bósnio Ljubomir Stanisic é distinguido com a sua primeira estrela Michelin. Ao seu 100 Maneiras, no guia ibérico da Michelin para 2021, junta-se uma outra nova estrela: o basco Eneko Atxa, que com a distinção do restaurante de Lisboa soma mais uma estrela ao seu currículo.
«Um raio de luz neste ano sombrio», reagiu esta semana Eneko Atxa à distinção, ao fim de um ano em que os restaurantes enfrentaram uma crise sem precedentes no setor – que ditou mesmo o encerramento de alguns. Em Portugal pode não ter sido a crise causada pela pandemia que levou ao encerramento, ainda no final de 2019, do São Gabriel, restaurante de Almancil que tinha à frente da sua cozinha o chefe Leonel Pereira e que, com a sua estrela, desapareceu do Guia Michelin Espanha e Portugal para o ano de 2021. Apesar disso, e em ano de crise que durante meses deixou os restaurantes limitados à possibilidade do funcionamento em take-away (de novo imposto nos municípios de maior risco ao longo dos últimos fins de semana;e que voltará a acontecer nos primeiros dias de 2021, com o entretanto anunciado recolher obrigatório às 13h), Portugal entra, afinal, no novo ano com duas novas estrelas, atribuídas a dois projetos nascidos às portas de uma crise que chegou sem se ter feito anunciar.
Inaugurado em setembro de 2019, o Eneko Lisboa traz ao chefe basco Eneko Atxa a sua sexta estrela Michelin (primeira em Portugal); o restaurante 100 Maneiras, surgido depois do icónico bistrô Largo da Trindade, que tem à frente Ljubomir Stanisic, em fevereiro de 2019, no Bairro Alto, dá ao chefe bósnio a sua primeira.
A consagração da estrela
Se, para Eneko Atxa, não vem já com grande surpresa a distinção do mais conceituado guia de restaurantes a nível internacional, para Ljubomir Stanisic, a história é outra. O chefe bósnio feito já figura da cultura popular e não só, sobretudo desde que, em 2017, se inaugurou como apresentador televisivo, no programa Pesadelo na Cozinha, da TVI, baseado no formato original britânico com Gordon Ramsay, tinha ainda há poucos meses dado que falar com a notícia de que Bistromania – No Bistro Como em Casa (2018, Casa das Letras), o seu quinto livro, estava entre os finalistas para livro do ano dos Gourmand World Cookbook Awards 2020, da Harvest List, cujos vencedores serão anunciados em junho do próximo ano, em Paris.
No prefácio desse mesmo livro, o conceituado crítico gastronómico José Quitério descreve-o como «um persistente lutador, de convicções firmes e estruturadas. Um duro que transmite força mental e física, de sorriso rasgado e gargalhada franca. Homem inteiro, frontal, de olhar direito, capaz do gesto mais terno e da atuação mais generosa e solitária. É a sua maneira de ser e de viver».
Frontal e tantas vezes polémico, Stanisic voltou a dar que falar quando, nas últimas semanas, surgiu como o rosto mais mediático associado ao movimento Sobreviver a Pão e Água, que se fez notar entre acalorados protestos e uma greve de fome exigindo apoios mais efetivos por parte do Estado para o setor da restauração. A distinção chega, paradoxalmente, no ano em que o chefe nascido em Sarajevo, em 1978, mas radicado em Portugal desde a década de 1990, foi notícia por fazer, com outros representantes do movimento, greve de fome frente à Assembleia da República.
Num comunicado enviado depois do anúncio às redações, o 100 Maneiras sublinha o facto de a distinção chegar num ano tão difícil para o setor e «ainda antes do segundo aniversário do restaurante», inaugurado em fevereiro do ano passado, a um ano da explosão da crise pandémica, no Bairro Alto, vizinho do Trindade, onde há anos o chefe se instalou com o bistrô com o mesmo nome. «Trabalhámos muito, juntos, para ser a melhor versão possível do que somos, seja neste ano que não é exemplo para ninguém, seja nos outros. Vejo este prémio como um reconhecimento disso mesmo: do trabalho, do afinco, do rigor, mas também da personalidade e de um percurso», sublinha Ljubomir Stanisic, resumindo a história do seu projeto: «O 100 Maneiras nasceu em 2004, renasceu das cinzas em 2009 e, em 2019, reinventou-se depois de quatro anos de obras e muitos revezes. Acredito que esta é a planta que semeámos, regámos e alimentámos com amor estes anos todos. Sem preconceitos, sem manias, sem medo de fazer diferente. De ser diferente».
A consagração da estrela
Ao todo, Portugal conta agora com 28 restaurantes na edição de 2021 do Guia Michelin Espanha e Portugal, mais uma do que no ano anterior: sete deles com duas estrelas («cozinha excecional, merece o desvio») e 21 com uma, que no código do guia distingue restaurantes com «cozinha de grande nível», pelos quais «compensa parar».
Se, à chegada da pandemia, o novo 100 Maneiras tinha acabado de completar um ano, uma vida mais curta tinha ainda o Eneko Lisboa, inaugurado já no outono de 2019 na Rua Maria Luísa Holstein – há apenas um ano e dois meses. «Estou muito satisfeito com esta conquista, que é um raio de luz neste ano sombrio», reagiu o chefe, citado pela agência Lusa. «Estou muito feliz, acima de tudo, por todas as pessoas que tornam o Eneko Lisboa possível». Mas esta não é a primeira (nem a segunda) distinção atribuída pelo guia Michelin ao chefe basco, que a acumula já com outras cinco estrelas em Espanha: três no Azurmendi, situado nos arredores de Bilbau, uma no Eneko, nas proximidades do Azurmendi, e ainda outra no Eneko Bilbau, situado no coração da capital basca.
Se ao guia ibérico da Michelin são acrescentados dois novos restaurantes portugueses, em Espanha são 19 as novidades com uma estrela e três os restaurantes que conquistaram a segunda (são agora 38 os que integram a categoria das duas estrelas no país): o Bo.TiC, em Girona, o Cinc Sentits, em Barcelona, e o Culler de Pau, em Pontevedra. Restaurantes com três estrelas, continuam os mesmos 11 em Espanha. Em Portugal, continua a não haver nenhum.