No início do século XVI, no breve espaço de menos de uma década, viam a luz do dia três clássicos que ajudariam a moldar o mundo ocidental – uma espécie de triângulo mágico do pensamento moderno: o Elogio da Loucura (1508), de Erasmo; O Príncipe, do italiano Maquiavel (só publicado em 1532, mas escrito em 1513); e a Utopia (1516), assinada por um amigo de Erasmo, Thomas More.
Erasmo abriu o caminho. No seu libelo, escrito em apenas sete dias, pôs a Loucura a denunciar os ‘pecados’ dos seus contemporâneos – e eram muitos. Em tom de brincadeira (mas num latim perfeito), criticava reis e príncipes, cardeais e monges, os sábios, as mulheres e os seus «enfeites», os artistas e «a sua sede de glórias», os «que se envaidecem com um inane título nobiliárquico», os «sórdidos» negociantes, os gramáticos, os «filósofos venerandos pela barba e pelo manto». A pena afiada do humanista cortava a direito e nada nem ninguém lhe escapava. Mas as críticas aos homens da Igreja eram particularmente duras.
Diz-nos Stefan Zweig no luminoso Triunfo e Tragédia de Erasmo de Roterdão, recentemente editado entre nós pela Assírio & Alvim (a tradução impecável é de Maria Elsa Neves e Maria José Diniz), que Erasmo «segredava ao ouvido […] certas verdades qualificadas de heresia, para fazer passar nas barbas da censura, com uma audácia genial e uma destreza inimitáveis, as opiniões mais ousadas». Atente-se neste trecho do Elogio da Loucura: «Os nossos pastores não fazem mais do que buscar pasto. Deixam a cura das almas ao próprio Cristo, ou aos frades, ou aos seus vigários. Nem se recordam de que o sinónimo da palavra bispo é labor, cura, solicitude. Mas quando querem recolher dinheiro é que actuam como verdadeiros bispos». Mais contendente era difícil.
Continua Zweig: «Por terem emitido opiniões bem menos arrojados do que as de Erasmo, mas porque as expressaram brutalmente, outros subiram ao cadafalso; pelo contrário, os papas e os príncipes da igreja, os reis e os duques, disputavam o privilégio de ler os seus livros e cumulavam-no de honrarias e de presentes. É graças a esta aptidão para mascarar o seu pensamento, que devia ao seu talento de escritor e de humanista, que Erasmo pôde introduzir, às escondidas, nos mosteiros e nos salões, o fermento da reforma».
A revolução mental que culminaria, em outubro de 1517, com a afixação na porta do castelo de Wittenberg das 95 teses de Martinho Lutero, estava em movimento.
Do mosteiro ao colégio vinagre
O magnífico retrato de Erasmo que Zweig traçou em 1934 – entre as atribulações da Grande Guerra de 1914-18, que fixou magistralmente em O Mundo de Ontem, e os horrores da II Guerra Mundial, que o levariam a trocar a Europa pelo Brasil, onde o desespero o levaria ao suicídio em 1942 – revela uma profunda afinidade entre estes dois aristocratas do espírito separados por quatro séculos de distância.
Sobre Erasmo, sabe-se que terá nascido em 1466 em Roterdão, filho ilegítimo de um padre. Órfão de pai e de mãe desde muito novo, em 1487 entra para um convento de Agostinhos. No ano seguinte faz os seus votos e em 1492 é ordenado sacerdote.
«Foi só aos 26 anos abandonou o mosteiro, cujo horizonte, limitado e de espírito tacanho, se lhe tornava intolerável. No entanto – primeira manifestação do seu talento de diplomata – ele não se subtraía à autoridade dos seus superiores, à maneira de um monge perjuro mas, com a continuação de negociações secretas, faz-se chamar pelo bispo de Cambrai, que queria alguém que conhecesse o latim para o acompanhar, na qualidade de secretário, a uma viagem à Itália. No mesmo ano em que Colombo descobre a América, este, recluso no seu mosteiro, descobre a Europa, o seu mundo futuro».
A viagem a Itália não chegaria a realizar-se. Mas Erasmo já tinha conseguido saltar os muros do mosteiro. Com uma magra bolsa concedida pelo bispo, instala-se em Paris para se estudar Teologia. Mas a escassez de recursos faz com que a estadia na capital francesa também não lhe deixe saudades. «Erasmo, que tem uma concepção surpreendentemente moderna de higiene, não cessa de se queixar na sua correspondência: os dormitórios são insalubres, as paredes nuas e geladas, sente-se o odor das latrinas. Ninguém poderia habitar durante muito tempo este ‘colégio vinagre’ sem ficar gravemente doente e até morrer».
Fora de combate
Muito diferentes foram os anos passados em Inglaterra, para onde viajou em 1499, a convite do barão William Blout. Em contacto com a aristocracia inglesa, os seus hábitos refinam-se. Passa a vestir-se com requinte e torna-se exigente com a comida. Ali, «descobre o seu autêntico ambiente», descreve Zweig. «Pela primeira vez, o jovem eclesiástico descobre que há uma esfera onde o espírito e o conhecimento são poder e fazem autoridade. Ninguém aqui o questiona sobre o seu nascimento ilegítimo, ninguém conta as suas orações nem as suas missas; é unicamente por seu título de intelectual, pela elegância do seu latim, pelo seu verbo espiritual que ele deve ser procurado pela melhor sociedade; e, encantado, conhece a admirável hospitalidade, a nobre imparcialidade dos ingleses».
Imparcialidade – eis uma característica decisiva da personalidade de Erasmo. Com o mundo cristão partido ao meio, ele, que fora parcialmente responsável por semear, com o Elogio da Loucura, as tempestades futuras, procurou manter-se equidistante face às duas fações em combate – Martinho Lutero de um lado, a Igreja dos Papas do outro.
Mas o seu meio natural era o gabinete de trabalho. Apreciava o cheiro da tinta e o silêncio dos livros. E a sua saúde frágil não o predispunha a grandes combates. «Este rosto fino de monge, um pouco emagrecido, faz pensar imediatamente em janelas fechadas ao calor das lareiras, ao pó dos livros, em jornadas de trabalho e em noites de vigília». Zweig contrapõe esta figura débil, «sempre tiritando na penumbra do seu quarto», ao vigor rude de Lutero. «Filho de um mineiro descendente de uma família de camponeses, Lutero está cheio de saúde, até demais […]. Quando eleva a voz, crer-se-á ouvir um órgão; as suas palavras têm o sabor rude e salgado de um pão de centeio ainda quente, aí se encontram todos os elementos da natureza: o odor da terra, da água e do estrume; a sua eloquência inflamada desencadeia-se sobre a Alemanha com a violência destrutiva de um furacão».
Que resposta dará Erasmo às solicitações de Lutero para que se junte à sua causa? Isento e incorruptível, bastaria talvez uma palavra sua para dar a vitória a um dos lados. «Usam todos os meios e tentam de seduzi-lo pelo dinheiro ou pela lisonja; criticam a sua falta de coragem para o fazer sair do seu prudente mutismo, assustam-no com falsos rumores: Roma teria posto os seus livros no Índex e tê-los-ia queimado».
Mas Erasmo recusa comprometer-se – não abre mão da sua liberdade. E, na última oportunidade de reconciliação das fações desavindas, em Augsburgo (1530), não está presente. As negociações falham. Mesmo sem ter participado na luta, o holandês acaba vencido.
Erasmo morre desiludido, pois «só quer a paz, nada mais que a paz» e, quando fecha os olhos, deixa uma Europa em guerra. Entretanto, era a visão cínica e pragmática d’O Príncipe que triunfava.
Mas terá Erasmo sido mesmo derrotado? «São precisamente os sonhos não realizados que se mostram os mais invencíveis», diz Zweig. Curiosamente, o escritor austríaco despediu-se do mundo em circunstâncias muito idênticas – com a Europa mergulhada em guerra e, por causa do seu pacifismo, olhado com desconfiança por todos. «Com uma morte voluntária, o seu espírito triunfa com grandeza», comentou Jean-Jacques Lafaye em O Porvir da Nostalgia – Uma Vida de Stefan_Zweig. Como disse Voltaire, «les beaux esprits se rencontrent». E a sintonia entre estes dois grandes espíritos – Zweig e Erasmo, biógrafo e biografado – dificilmente podia ser mais perfeita.