Josefa de Óbidos e Paula Rego – o que podem ter em comum estas duas personalidades separadas por um fosso de três séculos? Para começar, o óbvio: trata-se de duas notáveis mulheres artistas. Mas há mais do que isso.
«É impossível fazer uma análise comparatista», começa Catarina Alfaro, curadora da exposição Paula Rego/Josefa de Óbidos: arte religiosa no feminino, patente até 23 maio na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais. Mas há um facto indesmentível: em ambos os casos «a afirmação da respetiva identidade artística faz-se pelas diferenças que as suas pinturas têm em relação a modelos estereotipados». Resumindo: «São duas artistas com uma obra que desafia os cânones».
Nesta exposição não há paralelos forçados. As obras de Josefa e Paula Rego são apresentadas separadamente, com a obra da pintora barroca a ter direito a uma sala só para si.
Nascida em 1630, Josefa de Ayala era filha de um pintor, Baltasar Gomes Figueira, que se destacou no género tipicamente espanhol que ficaria conhecido como bodegón – naturezas-mortas com produtos alimentares, algumas das quais foram até tempos recentes atribuídas à sua ilustre filha. Já a mãe, D. Catarina, «era sevilhana, uma mulher de bastantes posses. Quando Baltazar Gomes Figueira casa com ela ainda vivem uns tempos em Sevilha, têm uma série de filhos e filhas, e quando Josefa tem quatro anos estabelecem-se em Óbidos», nome que a pintora viria a adoptar como seu.
A primeira pintura que se conhece de Josefa foi realizada quando a jovem tinha 16 anos. Por essa altura, o pai tinha várias encomendas em Coimbra e a filha instala-se no Convento de Sant’Ana – não para ser freira, mas como parte da sua educação, esclarece Catarina Alfaro.
Entre as obras reunidas na exposição encontra-se o ciclo da Vida de Santa Teresa de Ávila, que pertence ao convento da Nossa Senhora da Piedade, em Cascais. «O plano escolhido pela artista é de proximidade com o espectador. A Santa Teresa está quase representada a meio corpo, isso permite que o espectador se coloque de modo a quase fazer parte da pintura», nota a curadora. «Josefa acaba por nos envolver de uma maneira especial, criando uma empatia com as personagens que é muito característica da sua pintura».
Uma das cenas mais conhecidas é a da Transverberação, em que o coração da santa é trespassado por uma flecha de ouro em chamas. Uma experiência mística que a própria deixou descrita da seguinte maneira: «A dor era tão grande que gritei alto, mas ao mesmo tempo era tão infinitamente doce que desejei que durasse eternamente. Foi o mais doce acariciar da alma por Deus».
Na parede oposta da sala encontram-se outras pinturas religiosas. Apesar dos temas bíblicos, o quotidiano feminino do século XVII entra pelos quadros adentro. «Isso é muito visível nas joias, nos tecidos, até no tratamento dos querubins, que se aproximam deste lado muito doce da relação que as mulheres têm com as crianças», nota Catarina Alfaro.
No caso do Agnus Dei, a textura do animal é tão bem-conseguida que «quase apetece passar-lhe a mão pelo pêlo, como dizia o Amadeu de Souza-Cardoso sobre as montanhas de Manhufe», refere a curadora.
A fechar esta secção, duas opulentas naturezas-mortas oferecem um festim para os sentidos. Catarina Alfaro explica a escolha deste género pela pintura. «A representação das naturezas-mortas estava menos dependente das encomendas, aqui ela podia dar azo à sua imaginação e fazer aquilo que bem lhe apetecia», comenta. É o prazer da pintura associado ao prazer dos sentidos. «São obras altamente aprazíveis ao olhar, mas também ao paladar e ao cheiro. Apelam a todos os nossos sentidos, quase as conseguimos cheirar».
Josefa não teve filhos. «Escolheu uma vida de donzela, de mulher emancipada dos seus pais, e é assim que se declara no seu testamento. Essa emancipação deu-se em 1660, quando foi viver sozinha para uma moradia. Sabe-se que era autónoma financeiramente e ao longo da vida acumulou riquezas. Essa emancipação permitiu-lhe tomar as rédeas da oficina do seu pai. Esse lado de recolhimento no ateliê», continua a curadora, «é um dos aspetos que eu considero muito próximos na vida das duas. Apesar de Paula Rego ter decidido constituir família desde muito cedo, essas duas realidades – o mundo familiar e o mundo do trabalho, que acontece no ateliê – são inconciliáveis, são realidades que não se tocam».
Outro ponto em comum entre as duas é o estímulo que encontraram sempre na figura paterna. Mesmo se isso determinou percursos distintos. «O pai de Paula Rego – engenheiro na Marconi, um severo crítico do regime ditatorial, um homem que se preocupava muito com o futuro do país – dizia-lhe que Portugal não era bom para mulheres nem para artistas e as duas coisas juntas então… pior ainda», revela-nos Catarina Alfaro.
‘Um assunto muito sério’
Se as protagonistas da pintura de Josefa de Óbidos são altamente idealizadas, o mesmo não se pode dizer das de Paula Rego. Pelo contrário. Isso é evidente, por exemplo, no mural que foi convidada para fazer para a cafetaria da National Gallery de Londres em 1991, O Jardim de Crivelli.
Nesta e noutras obras, as histórias e lendas dos santos (bebidas em especial da Lenda Áurea, de Tiago de Voragine, um clássico da literatura medieval) confundem-se com os próprios factos da vida da própria artista. Um caso típico é quando representa a Virgem Maria grávida. «Paula Rego é muito fiel à descrição da Lenda Áurea, que diz que a Virgem Maria concebeu aos 13 e deu à luz aos 14 anos», diz-nos a curadora. Mais: a pintora usou como modelo para a Virgem a sua neta e poderá também ter recordado a sua própria experiência do parto, até porque também teve filhos muito cedo. Já numa pintura que representa Madalena e Lázaro, «a história bíblica é trazida para a sua vivência pessoal, como ela cuidou do marido», o pintor Victor Willing, em circunstâncias de grande dramatismo.
Embora não tenha tido uma educação católica, e a associemos de imediato à crítica acerba à Igreja que ganha forma na série do Crime do Padre Amaro, inspirada na obra de Eça de Queiroz (uma paixão que lhe foi transmitida pelo pai e que também aqui presente), Paula Rego diz que não há nada mais poderoso do que os quadros religiosos e «sempre apreciou o lado misterioso da religião», desvenda Catarina Alfaro. Talvez ainda mais surpreendente é o facto de hoje ser «uma mulher muito católica, e que reza».
Essa faceta manifesta-se com particular intensidade na encomenda que lhe foi feita pelo então Presidente Jorge Sampaio, para a pequena capela do Palácio de Belém, de um ciclo da Vida da Virgem. «É um assunto muito sério e a maneira como a artista o trata é com todo o respeito, com todo o rigor. Diz que foi o trabalho de maior responsabilidade».
Na exposição da Casa das Histórias as pinturas originais são substituídas por projeções. Mas a sala anterior inclui vários estudos que dão conta das dúvidas, das hesitações e de como o assunto mexeu com os sentimentos da pintora. «Mesmo depois de ter feito aquelas obras não conseguia deixar de pensar».
São ao todo oito episódios que ali estão representados com a audácia e a heterodoxia características de Paula Rego. Mas há um quadro tão inusitado que se torna quase perturbador. «Esta Pietà é completamente desestabilizadora porque mostra duas crianças», considera Catarina Alfaro. Para a Virgem, a artista usou a neta como modelo, e para o Cristo morto um menino que era colega da neta. «Duas crianças, o que faz com que a imagem seja ainda muito mais forte».
Paula Rego/Josefa de Óbidos: arte religiosa no feminino mostra-nos também alguma da produção mais recente da criadora. Curiosamente não se trata de pintura. «A Paula já tinha há muito tempo, desde os anos 90, a ideia de fazer uma série de obras que retratassem os sete pecados capitais». Em 2019 retomou o tema mas, «não ficando satisfeita com o resultado, começou usar o que tinha no ateliê».
O_resultado é uma espécie de escultura grotesca que representa a gula. «Isto é muito curioso porque demonstra a sua atenção à atualidade e como tem um olhar muito crítico». Para esta figura, Paula Rego inspirou-se na denúncia da jovem ativista sueca Greta Thunberg. Trata-se de «uma mulher obesa» que, como Saturno, «devora os seus próprios filhos», comenta Catarina Alfaro. «É uma metáfora como a nossa geração está num ato de canibalismo, porque este capitalismo predatório está a comprometer as gerações vindouras».