País pode estar a chegar ao limite da capacidade para detetar casos

Especialistas estão preocupados com planalto de diagnósticos nos 10 mil casos diários quando a positividade está a aumentar. Aumento de subdiagnóstico pode levar a mais cadeias de transmissão numa altura em que as equipas de rastreio estão sobrecarregadas.

O país conheceu ontem um novo recorde de casos de covid-19 diagnosticados em 24 horas, mas o planalto de diagnósticos nos 10 mil casos está a preocupar os especialistas, numa altura em que a incidência é elevada e a taxa de positividade – a percentagem de testes que dão positivo – continua a subir. O receio é de que o país esteja a chegar ao limite de capacidade de testagem e diagnóstico, o que pode aumentar o diferencial entre as infeções que realmente estão a ocorrer e as que são diagnosticadas e permitem o isolamento dos doentes e rastreio dos contactos. O vírus continua assim a “andar” mais depressa do que a deteção e os números deixam de acompanhar a real situação epidemiológica do país, com os internamentos e os óbitos a servirem de barómetro mas sempre com um maior desfasamento temporal, o que permite um menor controlo da pandemia e também das suas projeções.

Carlos Antunes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que faz a modelação da epidemia com Manuel Carmo Gomes, um dos especialistas que na reunião do Infarmed alertaram para a elevada incidência de casos e desaconselharam que as escolas se mantivessem integralmente abertas, explica ao i que os dados dos últimos dias aumentam a preocupação. Por um lado, depois da quebra do Natal houve um aumento da testagem, mas esta estabilizou em torno dos 48 mil testes PCR diários, a que acrescem testes de antigénio. Já a positividade subiu para 18% a 20%, o valor mais elevado. “Com 60 mil testes como limite de testagem, este plateau de 10 mil casos pode ser artificial e tem a ver com um limite de testagem, que é a informação que também chega do terreno, e não com a real incidência. O vírus não pode, de uma semana para a outra, subir de 4 mil para 8 mil casos e ficar num planalto. Alguma coisa está a acontecer”, diz.

Cruzam-se outros indicadores. Carlos Antunes aponta o número elevado de mortes e o aumento da percentagem de pessoas diagnosticadas com sintomas como sinais de alerta. E defende que perante a atual taxa de positividade, é necessário duplicar a capacidade de testagem para voltar a um patamar de 10% de casos positivos, como se conseguiu antes do Natal, com maior controlo da epidemia. “Antes do Natal, em 40 mil testes tínhamos 4 mil casos positivos. Depois do Natal, em 40 mil testes tínhamos 6 mil casos positivos e, neste momento, em 40 mil testes temos 8 mil positivos. Se quisermos baixar a positividade e apanhar mais casos, temos de aumentar a testagem. Durante a semana de pico teríamos de testar 120 mil pessoas, em média, por dia, e 40 mil no fim de semana, em vez de 20 mil”.

Lisboa quase três vezes pior do que em novembro

Em outubro chegou a registar-se uma taxa de positividade no Hospital do São João, no Porto, de 30%. Na altura foram reforçados rastreios epidemiológicos e a testagem na região. O Norte chegou a passar uma incidência de mil casos por 100 mil habitantes, mas o crescimento acabou por ser travado com o aumento de rastreio e o apertar das medidas. Agora, a pandemia está mais disseminada e com transmissão comunitária, casos em que se desconhece a ligação epidemiológica.

Esta quinta-feira, depois de 104 mil casos diagnosticados nos últimos 14 dias, o país atingiu uma incidência cumulativa de 1011 casos por 100 mil habitantes – no Norte 1000,4, na região Centro 1187, em Lisboa e Vale do Tejo 1030, no Alentejo 1200 e no Algarve 1200. Com a incidência em valores máximos, é na região de Lisboa e Vale do Tejo que têm sido diagnosticados mais casos – uma pressão sobre os serviços que em dez meses de pandemia nunca se verificou. Nos últimos sete dias houve uma média diária de 3325 novos casos na região de Lisboa e Vale do Tejo. Na última semana de junho, quando 19 freguesias ficaram com medida mais apertadas, houve uma média de 281 casos por dia nesta mesma região e, na primeira semana de novembro, quando foi decretado o estado de emergência, uma média de 1225 casos por dia. São agora quase o triplo. Nessa altura, a região Norte chegou a uma média diária de 3 mil casos, o que Lisboa nunca tinha vivido, e a ARS de Lisboa e Vale do Tejo começou esta semana a recrutar mais pessoas para o rastreio de contactos. 

O i tentou perceber junto do Ministério da Saúde e da Direção-Geral da Saúde qual é atualmente a taxa de positividade nos testes à covid-19 por região e qual a capacidade máxima de testagem no país, bem como se foi projetado quantos casos seria possível atualmente detetar com os meios e recursos mobilizados. Desde o início da pandemia que os testes são feitos nos hospitais e também em laboratórios convencionados, tendo vindo a abrir novos pontos de testagem. As projeções apresentadas pela FCUL na reunião no Infarmed apontaram para um pico de 14 mil casos em média por dia dentro de duas semanas que, caso não houvesse um abrandamento do aumento de contágios que se verificou na primeira semana do ano, poderiam chegar aos 27 mil casos por dia na próxima semana. Não se sabe, no entanto, qual a capacidade para acompanhar quer uma evolução mais favorável quer uma mais desfavorável, e até à hora de fecho não foi possível ter resposta às questões. Não foi também indicado se está previsto o aumento da capacidade de testagem nos próximos dias.

Mais mil doentes internados em sete dias

Com a pandemia ainda em trajetória crescente, mas agora com mais incerteza quanto a onde estamos e para onde se irá – e mesmo quanto ao impacto do confinamento, em moldes diferentes do de março, que servia como ponto de comparação nas modelações –, nos internamentos, a tendência mantém-se: são cada vez mais doentes a precisar de hospitalização.

Nos últimos sete dias houve um aumento de 1035 doentes com covid-19 internados nos hospitais. Nos sete dias anteriores tinha havido um acréscimo de 493 doentes internados e, entre o Natal e o Ano Novo, uma diminuição. Isto significa que houve uma subida de 31% nos internados e de 18% nos doentes em UCI (onde o aumento de casos se reflete mais tarde), o dobro da semana anterior, mesmo com altas e com a elevada mortalidade que se tem registado desde o início do ano, com mais de 300 óbitos diários em instituições de saúde desde 5 de janeiro – que inclui mortes por covid-19 e por outras causas.

No ano passado, nunca houve dias com tantas mortes nos hospitais e o país vive um pico de mortalidade sem precedentes na história recente – pelo décimo dia consecutivo, registaram-se esta quinta-feira mais de 500 mortes no país, com três dias da semana a superar os 600 óbitos.

Em 40 anos, só tinha havido dois dias com mais de 600 mortes em Portugal, no verão de 1981, durante uma vaga de calor. Frio e atividade pandémica são as variáveis este inverno, com gripe com atividade considerada pelo INSA “esporádica”. Mas já há médicos a alertar que, perante o elevado número de doentes, a resposta não é mesma. “Temos muitos doentes, mais graves, e dificilmente conseguimos acomodá-los nas melhores condições”, disse em entrevista ao Público João Gouveia, presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, admitindo que o aumento da mortalidade terá também a ver com dificuldades de tratamento.