Há uns dias, uma amiga ligou-me para partilhar uma boa notícia: acaba de obter a nacionalidade australiana. A meio da conversa disse-me que já não se sente apenas francesa, é uma mistura. Talvez só quem tenha passado vários anos num país que não é o seu a possa entender. De qualquer forma, até os que nunca saíram do seu cantinho são 100% de coisa nenhuma. Todos somos fruto de séculos de cruzamento de civilizações que habitaram a Terra antes de cá chegarmos. Como diz a canção de Jarabe de Palo, «en el puro no hay futuro, el futuro está en la mezcla». Felizmente.
Saí de Portugal há mais de 20 anos. Já vivi em cinco países europeus, nove cidades e, da última vez que contei o número de mudanças já ia em 18. Falo, leio, escrevo e sonho em quatro idiomas. Talvez a minha língua materna já não seja tão imaculada. Se fizer um ditado respeitando o acordo ortográfico, não terei 0 erros, como nos tempos de escola. Mas por muitas voltas que dê, Portugal é e será sempre a minha pátria.
Mas o que é ser português? Nascemos portugueses ou tornamo-nos portugueses? A nacionalidade é muito mais do que um passaporte E não se adquire só pelos genes. O meio onde vivemos contribui (e muito) para a nossa identidade. Daí a eterna questão em relação ao que deve ser predominante, a lei do sangue ou a lei do solo. Há uma constante dualidade entre dar e receber. Incluir não é somente integrar. Assimilar não é apenas adquirir.
O meu filho considera-se 50% gaulês, 40% luso e 10% espanhol. A minha filha diz que é metade portuguesa, metade francesa e un poquito espanhola. Ambos nasceram em Paris, têm nacionalidade francesa e são bilíngues. Viveram um ano em Portugal e três anos em Espanha, sendo fluentes em castelhano. Eu vejo esta trilogia como uma mais-valia para cultivarem o respeito, a tolerância e a solidariedade. A força reside na diversidade. Todos somos iguais na essência, mas diferentes em tantos outros aspetos. Não há lugar para o racismo, até porque só há uma raça: a humana.
Durante a presidência de Sarkozy a identidade nacional era um assunto recorrente. Certos políticos consideravam que havia um desapego em relação à nação. Xavier Bertrand, secretário geral do partido que estava no poder (UMP), enalteceu o orgulho de viver em França. Algo ambíguo e vago. Várias medidas foram implementadas para promover a identidade francesa. O canto do hino nacional na escola, cursos de língua e cultura francesas, proibição do uso da burka. A oposição denunciou, com razão, o perigo de confundir-se identidade nacional e nacionalismo exacerbado. Nem todos os Martin ou Richard têm uma cega adoração pela França. Em contrapartida, há estrangeiros que se consideram franceses.
Há um país, para além do meu, onde me sinto em casa: Espanha. E não apenas por ter antepassados que nasceram no país vizinho. Certas afinidades não se explicam. Como dizia Saramago, em castelhano, «Lanzarote no es mi tierra, pero es tierra mía”» Ainda assim, recusou várias vezes a cidadania espanhola. Quando visitei a sua casa na ilha canária deparei-me com Portugal em cada recanto. Na mobília, no serviço de café, nos livros da biblioteca e até mesmo na oliveira alentejana que plantou no jardim, em frente ao oceano. Tão longe e tão perto.
Somos todos cidadãos do mundo e não importa para onde vamos, desde que saibamos de onde vimos. Somos árvores e pássaros. Temos raízes e asas. Nem sempre podemos estar onde gostaríamos, mas nunca nos esquecemos quem somos. Talvez por isso os mais bonitos poemas de Pablo Neruda tenham sido escritos durante o exílio, longe da sua terra natal, o Chile. Todos temos direito a várias identidades para que o futuro se escreva no plural.