Quem eram os intelectuais portugueses da Idade Média? De onde vinham e o que faziam? Armando Norte, doutorado em História Medieval e autor de um livro sobre o Papa português, João XXI, procurou responder a estas questões seguindo o modelo do medievalista francês Jacques Le Goff, que em 1957 publicou o seu livro seminal Les Intellectuels au Moyen Age.
Em Os Intelectuais em Portugal na Idade Média (ed. A Esfera dos Livros) encontramos um santo (Santo António), um Papa (João XXI), um cronista (Fernão Lopes), um monarca (D. Duarte) e um dramaturgo (Gil Vicente). Uma mão cheia de personalidades muito diversas, que mostram a paleta de saberes disponível na época e como o acesso à cultura era quase transversal, mesmo numa sociedade muito estratificada.
No seu livro dá-nos conta de que nos séculos XII-XIII se vive um período de relativa prosperidade – houve quem lhe chamasse ‘o grande degelo’. É esta espécie de primavera que cria as condições propícias para o surgimento do intelectual?
Sim, há um contexto claramente favorável porque termina uma altura mais glaciar e há um aquecimento global. Esse aquecimento acaba por ter repercussões que vão muito além das mais óbvias, que seriam em termos da agricultura. A par disso vem depois um aumentar das trocas, um intensificar da vida urbana, e é na cidade que a vida intelectual prospera. Toda esta conjuntura, que tem depois ramificações económicas, sociais, etc., acaba por se manifestar em fenómenos culturais. Vai ser um caldo que beneficia a sociedade de uma forma geral, porque tem manifestações ao nível do bem-estar das populações, e esse bem-estar é condição sine qua non para a cultura. Só com o seu bem-estar assegurado é que as sociedades têm mais espaço para questões culturais.
O professor Artur Anselmo, nas aulas de Cultura Clássica, costumava dizer qualquer coisa como ‘Primum manducare, deinde philosophari’. Filosofar sim, mas de barriguinha cheia…
Exato!
Tocou no aspeto do desenvolvimento urbano. Na transição da Antiguidade para a Idade Média, os mosteiros tinham funcionado como reservatórios que permitiram preservar o saber clássico…
Há um autor que fala dos mosteiros desta alta Idade Média como os ‘clarões nas trevas’. O Império Romano tem uma vida urbana muito intensa que, na transição para aquilo a que agora se costuma chamar a Antiguidade tardia, desacelera. Isso é aprofundado com as sociedades feudais, que são sobretudo rurais, agrárias, em que as unidades económicas acabam por ser de pequena dimensão, geralmente anexas às propriedades dos grandes senhores. No renascimento carolíngio [período de Carlo Magno] e no renascimento otoniano [reinado do imperador Otão da Alemanha, séculos X-XI], as cidades voltam a ter alguma dimensão, mas são sobretudo as pequenas unidade que vão sobrevivendo. Há uma desestruturação da malha urbana que havia na Antiguidade tardia, e a reestruturação só acontece nesse período do século XII-XIII, por onde começou a nossa conversa. Os mosteiros, pela sua própria natureza, enquanto instituições que são recolhidas do turbihão do mundo e acabam por ser os sítios ideais para a preservação da cultura. Essa reclusão permite-lhes manter sob a sua tutela um conjunto de obras e copiá-las porque faz parte das obrigações dos monges o ato de cópia de manuscritos.
A ideia do mundo antigo a desagregar-se, com essas fortalezas a preservarem a cultura clássica contra as agressões do tempo é exagerada?
Os mosteiros são isso: salvaguardas culturais, no sentido em que garantem a transmissão dessa cultura. Temos duas visões historiográficas diferentes sobre este período. Há uma visão sobretudo do século XVIII que o encara como um período de decadência. No início do século XX alguns autores vão valorizar mais as continuidades do que propriamente as ruturas. Vão dizer que há um contínuo que só artificialmente pode ser cortado. Há um conjunto de estruturas de longa duração que permitem olhar de uma forma mais suave para essa transição. A ideia de decadência está agora novamente a ter uma voga.
Ainda há não muito tempo saiu um livro [Catherine Nixey, A_Chegada das Trevas] sobre como o cristianismo destruiu muita cultura clássica, arte, etc., e representou um retrocesso civilizacional.
Em parte. Porque é precisamente em meio eclesiástico, naquela lógica das cópias, que se preserva o saber antigo. Na história do Cristianismo há sempre uma tensão, nem sempre bem resolvida, entre a razão e a espiritualidade. Os grandes padres vão recorrer a autores da Antiguidade para defender as suas posições. Um dos maiores, Santo Agostinho, é um homem que nasce no ambiente da Antiguidade.
Um herdeiro da cultura clássica.
Exatamente, é alguém que domina como poucos a arte da retórica, a lógica, a gramática. Esses são recursos da Antiguidade a que os autores cristãos lançam mão. Esse retrato a preto e branco da Igreja tem de ser matizado, porque há setores da Igreja que tendem a ser conservadores e há setores que tendem a ser progressistas.
No seu livro também diz-nos que nem sempre as autoridades religiosas olhavam com bons olhos a filosofia, uma vez que podia pôr em causa os dogmas da Igreja.
É exatamente essa ambivalência de que eu falava. Quem faz melhor essa síntese talvez seja S. Tomás de Aquino, que utiliza sempre argumentos da razão, e quando esses argumentos colidem com os espirituais então dá preponderância ao argumento espiritual. Mas, quando eles não se excluem, utiliza sempre os argumentos da razão para alavancar a fé. No século XII há um grande conhecedor da Antiguidade clássica que se manifesta contra ela, que é S. Bernardo de Claraval. S. Bernardo aparece nesta história do lado dos conservadores. Inclusivamente há uma questão muito conhecida, entre Pedro Abelardo, que é um dos primeiros intelectuais tal como Jacques Le Goff os caracterizou, e São Bernardo. Eles são uma espécie de inimigos de estimação que vão trocando argumentos, um valorizando o lado da razão, o outro valorizando as questões espirituais, sobretudo do lado do misticismo.
Fala dos intelectuais como homens novos. Em que é que eles distinguiam, o que têm de novo em relação aos monges por exemplo?
Os intelectuais aparecem exatamente como profissionais do saber, profissionais da cultura, pessoas que são pela primeira vez remuneradas pelos seus conhecimentos e pela utilização que fazem dele. Pedro Abelardo, de que falava há pouco, é geralmente o epítome destas personagens que aparecem no final do século XII e que se fazem pagar pelo que sabem. Justamente pela popularidade que o seu conhecimento atinge junto de outros indivíduos sedentos de cultura, passam a ter um séquito que os acompanha. Começam por dar aulas em lugares que podem ser o simples adro de uma igreja, mas pouco a pouco o fenómeno ganha dimensão e passam a ocupar edifícios. De uma maneira muito orgânica isto vai dar origem às universidades.
E como eram as escolas-catedrais de que fala?_Funcionavam no espaço da catedral?
Desde os primórdios da Igreja, há alguém que se especializa no ensino, um ensino muito vocacionado para a atividade religiosa. É uma forma de o clero melhorar as suas competências, porque só assim se pode evangelizar melhor, converter melhor e criar uma máquina capaz para gerir os vários aspetos da Igreja. É conhecido aquele aforismo ‘Saber é poder. A Igreja quase toma o monopólio da cultura nesta época, e portanto há no interior das igrejas, sobretudo das catedrais, uma instituição que é coordenada pelo mestre-escola e que tem vários indivíduos que entram muito jovens, os oblatos. Aí vão-se formar os novos…
Quadros?
Exatamente. São sempre precisos funcionários qualificados.
No livro diz-nos que na alta Idade Média o material de escrita é escasso, o acesso ao livro restrito e o contacto com a escolaridade reduzido. Imagino que a escrita pudesse ser especialmente complicada. Estamos a falar de uma época em que não havia papel…
Sim.
E a própria caneta?
São o que geralmente se define como cálamos, penas muito afiadas que depois são embebidas no pigmento. Nos séculos III-IV ainda existe rolo, que depois vai perder para o pergaminho. O pergaminho é o grande suporte de escrita da Idade Média, a forma como é produzido permite uma maior durabilidade, assim como uma coisa muito vantajosa para a consulta que é a organização em códice – o que conhecemos hoje como o livro. O livro, do ponto de vista do design, é de facto um objeto extraordinário porque existe há séculos exatamente da mesma maneira.
Mas tenho a ideia de que seria quase penoso escrever. Sobretudo para quem está a aprender…
Precisamente para fazer face a isso há uma codificação da grafia, um sistema de abreviaturas que se vai aperfeiçoando. Quando se está a fazer cópia de um livro o sistema de abreviaturas é eliminado e escreve-se por extenso. Mas quando são registos notariais, por exemplo, usa-se a abreviatura. E desenvolvem-se também sistemas de escrita diferentes. Quando se compara a grafia romana com a medieval, vê-se que passa a haver uma cursiva, nomeadamente a cursiva corolina, que vai acelerar muitíssimo os processos de escrita. Já não tem de se fazer inscrições em que se levanta [a pena ou estilete do suporte] para cada sinal gráfico, permite escrever muito rapidamente, com menos esforço.
Como era o percurso do intelectual, se é que podemos generalizar?
Na maneira como dividi o livro procurei alertar para uma distinção: o que seria o perfil do intelectual nos séculos XII e XIII e o que seria esse perfil nos séculos XIV e XV. O perfil do intelectual dos séculos XII-XIII é tipicamente um homem que ingressa numa universidade. Esse percurso começa pelas artes liberais e pode ficar-se por aí ou pode prosseguir para aquilo que na Idade Média é considerado a grelha do saber – estudos de Teologia, de Direito ou de Medicina, que eram os saberes canónicos. Pode entrar na universidade com subvenções, seja do rei, seja dos meios eclesiásticos, cursa durante alguns anos os estudos superiores e no final vai ter, como hoje diríamos, saídas profissionais. São a Coroa e a Igreja quem vai aproveitar sobretudo este grupo de indivíduos. O facto de saberem ler e escrever faz com que estes homens sejam muito requisitados, há casos de homens da Igreja que também servem a Coroa. E depois haverá uma minoria que vai manter-se no registo universitário a dar aulas e a perpetuar o sistema. Mas é uma minoria. O grosso irá transitar para os quadros da Igreja ou da Coroa.
Para a administração pública?
Sim, falamos dos chanceleres, dos conselheiros régios, os próprios quadros intermédios como vedores da fazenda, porque são eles que sabem contar, gerir, administrar. Nos séculos XIV e XV temos uma espécie de derrapar, de um meio tradicionalmente eclesiástico para um meio que vai ser tendencialmente secular. A universidade continua a ter um peso importante mas começa a haver outros locais onde a cultura é apreciada e encorajada. Sobretudo nas cortes régias, que passam a ter muito mais disponibilidade para as atividades de lazer, até porque a sociedade nobiliárquica deixa de estar tão envolvida com a guerra, o cavaleiro típico quase se torna obsoleto face à tecnologia que aparece. A cultura de corte começa a ter uma grande preponderância. E depois há um imitar deste modelo por parte dos grandes senhores. Passa a haver, numa escala de menor dimensão, pequenas cortes senhoriais onde se vai dar atenção à canção, à dança, à poesia, à caça, e é isso que, em última instância, há-de derramar no humanismo, que é uma cultura que tem na corte o seu embrião.
Qual é o meio de onde os intelectuaiss provêm?
É uma pergunta interessante e que tem uma resposta julgo que igualmente interessante. Numa época como a Idade Média, muito estanque e muito estratificada, em que as sociedades estão muito hierarquizadas e as pessoas nascem e morrem dentro dos seus meios sociais, existem poucos motores para a ascensão social. E a cultura acaba por ser um dos poucos elevadores sociais do período. Alguém que nasça pobre pode vingar – aliás é uma das poucas formas em que pode fazer esse progresso na escada social é justamente através da cultura. Haverá outras – um bom empenho numa guerra pode levar a uma promoção ou a um título. Mas dificilmente encontramos outros exemplos. E, nas universidades, podemos encontrar aristocratas – sobretudo filhos secundogénitos, que não herdam património do pai e precisam de ter forma de garantir o seu sustento –, há os tais homens do clero que são enviados porque dão provas de uma capacidade acima da média, e temos pobres, não no sentido que lhe damos hoje de indigentes, mas no sentido de uma pobreza efetiva, que podem estudar graças a sistemas de mantimentos ou de bolsas, exatamente como temos hoje. Os próprios burgueses que aparecem nos séculos XIII e XIV começam a partir de certa altura a ir para a universidade, e isso explica em grande medida a laicização do ensino. Portanto temos todo um espectro social a poder ser intelectual. É muito democrático – ‘democrático’ com pinças, mas há de facto uma democratização do ensino que permite que se ascenda na hierarquia social.
Estes intelectuais contactavam uns com os outros?
Sim. As universidades funcionam como polos aglutinadores para onde se dirigem aqueles que pretendem adquirir saber. Portanto afluem a elas pessoas das mais diversas proveniências e origens. A existência de um cânone de livros idênticos e de uma língua franca, o latim, permite essa troca, muitas vezes até conturbada, de argumentos e de ideias.
Conturbada?
A universidade de Paris, no final do século XIII, é abalada por uma polémica entre o setor mais conservador, ligado à Teologia, e um setor ligado às artes liberais, que colidem em relação à maneira como estava a ser recebida a ‘nova’ filosofia de Aristóteles, que durante algum tempo tinha estado perdida. O filme O Nome da Rosa, baseado na obra de Umberto Eco, trata precisamente disso. No período anterior a Igreja guiava-se muito pelos ideais platónicos. Isso gera a tal rivalidade e leva a uma escalada de conflitos não só teóricos…
Chegam a vias de facto?
Sim, há relatos de conflitos sangrentos, até com mortos, entre membros da universidade.
Regressando ao caso de Portugal, a nossa condição periférica era um entrave à circulação da cultura?
Portugal tem de facto uma condição ultraperiférica no espaço europeu, que curiosamente durante a Expansão se torna muito central. Curiosamente, logo desde o aparecimento das universidades, há um fluxo de estudantes portugueses que vão rumar às universidades centro-europeias, nomeadamente Paris e Bolonha, com maior predominância para Bolonha, e mais tarde para Salamanca. E nem a fundação da universidade portuguesa por D. Dinis vai interromper esse fluxo. Aqueles que têm capacidade económica vão continuar a estudar nas universidades estrangeiras.
Os cinco exemplos que escolheu – Santo António, o Papa João XXI, o cronista Fernão Lopes, o Rei D. Duarte e o dramaturgo Gil Vicente – são casos isolados no seu tempo ou são o resultado de uma certa ‘massa crítica’ intelectual?
A ideia, mais do que apontar casos avulsos, era mostrar esses homens como paradigmas de alguma coisa, de um tipo de sábios. Na sua paleta, na sua amplitude, mostram o conjunto de saberes que estava disponível. A escolha em certo sentido foi fácil, noutro sentido tive dificuldades.
Havia muito por onde escolher?
Há um conjunto de homens ligados ao Direito que têm na sua época reconhecimento além-fronteiras. Dentro dos reis, a minha escolha foi para D. Duarte, mas podia ter ido para D. Afonso III ou D. Dinis, que são também reis letrados. É óbvio que Papa só houve um, mas há vários cardeais que necessariamente passaram por estes circuitos. O que temos não é falta de intelectuais, é uma diferença ao nível da produção original. Os nossos intelectuais tendem mais a reproduzir conhecimento do que a gerar conhecimento, e isso sim é sintoma…
Da nossa condição periférica?
Uma universidade com maior dimensão talvez permitisse criar um ambiente mais fervilhante. Temos casos episódicos de pessoas que produzem originalmente e que são reconhecidas. Pedro Hispano, João XXI, é o caso mais clássico, mas depois não há assim tanta originalidade.
Falemos de Santo António. S. Francisco desconfiava da cultura, achava que isso mascarava a parte mais pura do homem. Foi Santo António que o reconciliou com o saber?
No princípio do século XIII, há duas ordens que estão quase no limiar da heresia: os mendicantes franciscanos e dominicanos. Os dominicanos nascem muito ligados à cultura. Domingos de Gusmão, dentro dos próprios preceitos da ordem, estabelece o uso do livro. Não é por acaso que são justamente os dominicanos os escolhidos pela Igreja como inquisidores, porque são eles que conhecem os livros – e, conhecendo melhor os livros, podem melhor censurá-los. Os franciscanos têm uma tradição muito diferente, de relação com a natureza. O que interessa é a contemplação do mundo divino, e portanto S. Francisco é muito refratário à ideia da cultura e manifesta-se contra ela. Cultura implica ter livros, os livros são propriedade…
E valiosos, na época.
Portanto há esse lado da recusa material e a ideia do desvio do foco, que explicam a resistência de S. Francisco. Santo António entra na esfera franciscana muito cedo, adere à ordem depois de um contacto com os franciscanos quando estava em Coimbra e vai aparecer num concílio, em que estabelece contacto com S. Francisco e alerta-o. Ele sempre teve laços muito fortes com a cultura. Tanto em S. Vicente de Fora, onde estudou, como em Santa Cruz de Coimbra contactou com bibliotecas imensas, bem recheadas. E pensa-se que terá alertado S. Francisco para o benefício que a cultura poderia trazer, como poderia dar um armamento ideológico à causa franciscana. Essa ideia terá vingado e muito rapidamente os franciscanos vão converter-se à relação com o livro e com a cultura escrita. Depois é ele que é mandado – há testemunhos disso, como cartas de S. Francisco – para fazer a evangelização, e as suas ações de conversão são sempre feitas em cidades onde existem universidades. Curiosamente depois até sobrevive muito mais pelo lado da cultura popular, as pessoas associam-no mais a santo popular do que ao homem culto que efetivamente foi. Ele, a quem um Papa chamou «Arca do Testamento», alguém que era certamente um homem muito culto.
Disse que não havia poucos intelectuais, mas sim pouca criação original. Isso aplica-se a Fernão Lopes?
Fernão Lopes também não é assim tão original. Antes dele havia cronistas importantes nos reinos vizinhos da Espanha, nos quais ele se inspirou. Mas tem uma nota de originalidade mais pela maneira como introduz o papel do povo.
Isso era algo de novo?
Tem algumas ressonâncias novas. O que Fernão Lopes faz, não deixando de legitimar a dinastia de Avis, é dar ao povo, sobretudo ao povo de Lisboa, que eleva D. João I a Rei, um papel novo. É como se a legitimidade lhe viesse do povo e não de Deus. Dar um papel tão importante a estas figuras mudas da história é algo que só voltamos a ver muito mais tarde, provavelmente na Escola dos Annales, em pleno século XX.
E Gil Vicente?
Gil Vicente também não é propriamente original no teatro que produz. Num momento em que se está a mudar o paradigma, as suas peças continuam a expressar uma visão que coloca Deus no centro do universo. As suas personagens-tipo, os momos que utiliza são do teatro medieval, a maneira como as personagens entram em cena é típica das procissões da Idade Média, o uso de alegorias também é tipicamente medieval. Não digo que seja hostil aos novos tempos mas é alguém que tende a ligar-se muito mais ao passado do que a projetar o futuro.
Uma das coisas que retive de quando estudei o Gil Vicente é o uso do vernáculo e de uma linguagem brejeira. Isso é uma marca medieval? É que nesse caso aponta para uma Idade Média muito mais livre do que estamos habituados a imaginar.
O teatro vicentino é feito no contexto da corte, e portanto predispõe-se para ser representado perante públicos cortesãos. O uso dessa carga coloquial, dessa brejeirice de que falou, tem a ver com criar um contraste vincado entre o espectador e o que é representado. E tem essa vertente que o teatro sempre teve, do divertimento, do escape, do prazer. Aliás este teatro vai buscar as suas origens ao bobo da corte, de quem aceitavam quase tudo porque era quase inimputável. É essa ideia de inimputabilidade que os dramaturgos do final da Idade Média continuam a transportar e que lhes permite ousar um pouco mais.
Diz-se que uma das vantagens de Leonardo da Vinci sobre outras figuras da época era não ter tido uma educação formal e não estar sobrecarregado pelo peso do saber medieval, que era posto ao nível da superstição. A ciência também desmontou uma série de ‘verdades’ que eram consideradas universais durante a Idade Média. O que lhe pergunto é: apesar disso, o que herdámos dos intelectuais da Idade Média que continue a ser válido para o nosso tempo?
A Idade Média é o berço das universidades, que são de longe uma das instituições mais duradouras e que mais impacto tiveram ao nível da transmissão e da geração de conhecimento. Esse é o grande legado destes homens. Veja-se que a vida universitária de hoje mantém muitas características dos primeiros tempos. O uso em momentos solenes de vestes que remetem para uma anterioridade clerical das primeiras universidades é um testemunho disso. O exercício da tese de doutoramento é um legado da escolástica e dos exercícios da lectio e da disputatio, em que se argumentava. A ideia de uma corporação de mestres e de estudantes é aquilo que ainda hoje temos sem grandes variações. É verdade que há depois um aparato científico que vai evoluindo, mas do ponto de vista da organização interna mantém-se. Indelevelmente a universidade parece-me o maior legado. E veja-se estas cinco figuras. Gil Vicente ainda hoje é reconhecido como o pai do teatro português. O único papa que temos foi um Papa medieval. Santo António é muito cultuado em várias zonas do globo. Todos eles são homens que deixaram rasto e que mantêm uma perenidade que importa assinalar.