Os relatos começaram por chegar de funerárias, com contactos sem precedentes e cremações atrasadas, e também de hospitais, como o de Viseu, houve notícia de morgues sem espaço. “O último doente que me morreu ficou à espera no corredor da morgue, nem foi na morgue”, lamentou esta quarta-feira, ao i, um enfermeiro de um hospital da Grande Lisboa, pedindo anonimato perante a “polarização de opiniões” em torno da situação atual e um cansaço que pesa. “Este mês vou ter duas folgas. Metade da equipa está em casa. As pessoas só percebem quando dizemos que estão positivas. Aconteceu-me há bocado, um homenzarrão que desatou num pranto”.
Há vários dias que a pandemia avança, com milhares de inquéritos epidemiológicos por fazer e a perceção de que os casos detetados têm estado mais desfasados da realidade, mesmo com o recorde de 14 mil diagnósticos conhecido ontem. A mortalidade global no país está muito acima do que é normal, e os dados disponíveis na plataforma nacional de vigilância de mortalidade, o site eVM do Ministério da Saúde, permitem traçar o cenário mais global. Só até esta terça-feira já houve mais de 4 mil mortes este mês do que seria expectável nesta altura do ano, face ao que foi o histórico dos últimos cinco anos, um excesso de mortalidade que não se verificou em nenhum momento de 2020 nem nos anos anteriores. Numa semana de janeiro podem morrer 4 mil pessoas, mas geralmente não se atingem esses valores. É como se o mês já tivesse tido mais uma semana. O número de mortes já estava “muito acima do esperado” – a inscrição que aparece no site eVM há duas semanas – antes de o número de mortes oficialmente atribuídas à covid-19 superar as duas centenas, como aconteceu nos últimos dois dias. Os dados disponíveis mostram que são agora 11 dias consecutivos com mais de 600 mortes no país. Registos históricos disponibilizados ao i pelo INE revelam que nos últimos 40 anos só tinha havido dois dias com mais de 600 óbitos, em junho de 1981. O eVM disponibiliza mais informação e discrimina o local de óbito, região, idades e causas, maioritariamente por doença (causa natural). As mortes em instituições são uma das curvas que se destacam na plataforma do Ministério da Saúde, por não haver registos de algo assim: os hospitais registam ontem já sete dias com mais de 400 mortes quando, nos últimos sete anos com dados disponíveis, só tinha havido dois dias com mais de 300 mortes em instituições de saúde, em janeiro de 2017. Lisboa é a região com maior excesso de mortalidade, que sobe nos mais idosos mas também agora abaixo dos 70, o que foi residual em 2020.
Se as causas de morte concretas não são conhecidas, entre 1 e 17 de janeiro somam-se 2056 mortes atribuídas à covid-19, pelo que só podem ajudar a explicar metade dos 4188 óbitos acima do esperado desde o início do mês – o período com esta análise feita na plataforma do Ministério da Saúde. Se se contabilizarem já os óbitos de ontem, já morreram mais de 11 mil pessoas em janeiro este ano país, praticamente tantas como em todo o janeiro do ano passado.
Dezenas de mortes entram no sistema com atraso No eVM são registados os certificados de óbito emitidos em tempo real mas há registos que não são feitos no próprio dia e, ao longo da última semana, tem havido acertos de dezenas de mortes que não foram declaradas no dia em causa e entraram posteriormente no sistema. Na segunda e terça-feira da semana passada, dias 11 e 12, quando começaram a ser registadas mais de 150 mortes diárias por covid-19, o eVM mostra que houve um excesso superior a 340 mortes face ao que seria esperado – a diferença mais elevada face ao histórico dos últimos cinco anos. Questionada pelo i na semana passada sobre se tinham sido reportadas mais mortes por covid-19 do que as que constam nos boletins, a DGS esclareceu ontem que os óbitos indicados nos boletins de evolução da covid-19 são os certificados no dia anterior. “Pontualmente, existem exceções, como os óbitos cuja causa teve de ser melhor investigada através de autópsia no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, ou quando a DGS pede mais esclarecimentos sobre os dados no Certificado de Óbito quando vem com informação insuficiente”, informou a DGS, não explicando as diferenças de dia para dia no EVM.
O país viveu dias de frio acentuado, que historicamente contribui para descompensação de doenças e aumento da letalidade, mas até ao momento não foi facultada também uma análise mais detalhada sobre este excesso de mortalidade e as suas causas, que ao longo de 2020 – com muito menor dimensão – foi também ligado por académicos e médicos à quebra de cuidados e possível maior fragilidade de doentes. “A codificação de óbitos por causa diferente de covid-19 ocorre no ano seguinte à certificação do óbito, pelo que ainda não é possível fornecer informação sobre óbitos não covid neste momento. No entanto, o excesso de mortalidade encontra-se a ser monitorizado por grandes faixas etárias e local de residência”, garante a DGS.
Portugal é agora o segundo país com mais mortes por milhão de habitantes Se para perceber a evolução da mortalidade por outras doenças é necessário esperar pela codificação das causas (ainda não foram publicados os dados de 2019), na covid-19, que se monitoriza dia a dia desde março, para perceber a evolução da pandemia, antevê-se um agravamento.
Portugal ocupa o 25.o lugar em termos de mortes por milhão de habitantes ao longo dos dez meses da pandemia mas, nos últimos sete dias, passou a ser o segundo país com mais mortes atendendo à população, só atrás do Reino Unido. Aqui, importa perceber que os países podem usar diferentes critérios para a investigação de mortes. Mesmo quando um doente morre com suspeita de covid-19 ou pneumonia de origem desconhecida num hospital, as orientações são para serem colhidas amostras biológicas post-mortem para deteção do vírus. Nos lares, existe também uma orientação para que quando um utente faleça com sintomas compatíveis de covid-19 ser feito o teste post-mortem.
Mais velhos representam a maioria das mortes e contágios não baixam Desde o início da pandemia, 87% das ontem 9445 pessoas que morreram infetadas com covid-19 no país tinham 70 ou mais anos, mais de dois terços mais de 80 anos.
O aumento de casos contágios e não poupa os mais vulneráveis. Na semana passada foram diagnosticados mais 10 mil casos em idosos com 70 ou mais anos, dos quais 5564 com mais de 80 anos. Só nos primeiros dois dias desta semana, esta segunda e terça-feira – os dados da DGS que estavam disponíveis ontem –, somam-se mais 4072 idosos com 70 ou mais anos com teste positivo, 2381 com mais de 80 anos. Os mais velhos continuam a representar 16% dos novos casos no país, proporção que ainda não está a baixar. Não há informação sobre se são residentes de lares ou não, mas os números dos lares são hoje maiores que em qualquer outro momento da pandemia. Dados fornecidos ao i pela DGS indicam que esta semana havia 8.910 casos ativos de covid-19 em lares com surtos identificados, quando em novembro passaram pela primeira vez os 4 mil.
Acima dos 80 anos, tem sido apontada pelos especialistas uma taxa de mortalidade de 20%, com cada 3 mil casos a representar potencialmente 600 mortes. Estatísticas que mostram o peso que está a cair sobre os mais velhos, numa altura em que a capacidade de resposta nos serviços de saúde está também em níveis limite. Desde o início da epidemia, a mediana entre o diagnóstico e o óbito nos casos com desfecho fatal tem sido de 10 dias.
16 mil óbitos por covid-19 até 1 de março As projeções evoluem à medida que a realidade ultrapassa os cenários e apontam para mais mortes nos primeiros meses do ano do que em toda a pandemia – as nacionais e as internacionais; por exemplo, a da Universidade de Washington projeta que Portugal, dado o nível de mobilidade, chegue a fevereiro com 11 mil mortes associadas à covid-19 e a 1 de março com 16 mil óbitos.
No final de 2020, a covid-19 tinha sido ligada a 6792 mortes, sendo esperadas agora 10 mil mortes nos primeiros três meses do ano.
Chegados à terceira semana de 2021, há um dado objetivo: janeiro tornou-se ontem o mês com mais óbitos atribuídas à covid-19 em Portugal desde o início da pandemia, superando novembro e dezembro, que já tinham sido os meses com maior mortalidade, incomparável com o que se tinha vivido até aí. Nos últimos dois meses de 2020, quando o país viveu uma segunda vaga de covid-19 cinco vezes maior que a primeira – de novo a afetar sobretudo o Norte –, morreram no país 4428 pessoas, quando até ao final de outubro se tinham registado 2544 óbitos desde que a covid-19 fora detetada pela primeira vez no país, no princípio de março.
Na segunda vaga, com menor diminuição de contactos e da mobilidade no país do que aconteceu no início do ano, contaram-se, assim, dois terços das mortes atribuídas à covid-19 no primeiro ano pandémico. Em janeiro registaram-se, até esta terça-feira, 2493 óbitos, superando-se ao 19.o dia do mês o registo mais negro do mês de dezembro, quando a covid-19 foi ligada a 2395 mortes.
Na primeira vaga da epidemia, em março, quando o país confinou, o pico de mortalidade foi atingido em abril, quando morreram 820 pessoas diagnosticadas com covid-19. O excesso de mortalidade ao longo de 2020 foi muito inferior ao que se regista este mês e nunca houve mais de 500 mortes num dia no país, o que agora se verifica desde 5 de janeiro. Uma tendência que já fora do normal quando em 40 anos, segundo dados disponibilizados pelo INE ao i, só tinha havido 12 dias com mais de 500 mortes no país e raramente seguidos. Desde dia 10 passaram a ser mais de 600 mortes por dia, quase do dobro em alguns dias dos janeiros dos últimos anos, o mês em que se morre sempre mais no país. Ontem voltaram a superar-se as 600 mortes.
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