São duas moradias, uma com 716 metros quadrados e outra com 886 metros quadrados, na cidade de Aveiro, e com uma vista privilegiada sobre a ria que delimita a capital do distrito homónimo. O desenho é assinado pelo arquiteto Tomás Taveira, que conta no seu portefólio com obras como as Torres das Amoreiras, o Estádio de Alvalade e até o Estádio Municipal de Aveiro, o que faz deste empreendimento mais uma das suas marcas na Veneza portuguesa.
O anúncio do empreendimento nas redes sociais pela construtora Moreira & Patrício não teve, no entanto, a melhor receção. A obra, que a construtora considera «audaz», «irreverente» e «arrojada», não teve o mesmo tipo de caracterização por parte dos internautas. A publicação recebeu cerca de 200 comentários e a vasta maioria parecia reprovar o empreendimento, apelidando-o de «horroroso» e «crime urbanístico».
Mais, o empreendimento é comparado a «um parque infantil», uma «creche» ou «um McDonald’s», e critica-se a «destruição do local».
Para o arquiteto Tomás Taveira, no entanto, esta é uma realidade que já se prevê no seu trabalho, e admite ao Nascer do SOL esperar sempre este tipo de reações. «Isto é como se costuma dizer, primeiro estranha-se e depois entranha-se», começou por contar o arquiteto. Sobre o conteúdo e o teor dos comentários ao seu mais recente trabalho em Aveiro, não se pronuncia, revelando no entanto considerar Aveiro «uma cidade muito culta e com uma universidade muito forte, o que de alguma forma faz espantar um bocadinho que uma cidade assim, com o peso cultural que já tem, possa ter pessoas com afirmações completamente deslocadas daquilo que é o contexto histórico». Por trás destes comentários, defende Tomás Taveira, está a habituação das pessoas «à estética do modernismo e a uma arquitetura muito simples, branca, uma arquitetura que nem sequer mostra a pureza dos materiais». A crítica foi lançada e o arquiteto deixa clara a sua intenção: devolver à arquitetura o uso da «cor, com libertação da forma, e uma irreverência em relação à maneira como os volumes se articulam».
Tomás Taveira não tem, no entanto, dúvidas sobre a eventual aceitação das moradias. «A cidade virá a entranhar as moradias mais tarde. As pessoas não são estúpidas, têm capacidade de ver o mundo de maneiras diferentes e vão absorver aquilo que ali está. Pode demorar um segundo, dez anos, isso depende, mas se surgirem mais dois ou três objetos daqueles na cidade, as pessoas começam a pensar afinal que isto é para meditar, e não para reagir logo», conclui o arquiteto.
Para ilustrar a situação, Tomás Taveira recua no tempo e relembra a inauguração das Torres das Amoreiras, em 1985. «Quando as Amoreiras apareceram, ainda foi pior», confessa. «Havia excursões que vinham de vários pontos do país para ver algo que só viam em filmes», relembra o arquiteto, que faz questão de lembrar as acusações que recebeu naquele momento sobre a qualidade arquitetónica da obra, contrabalançando-as com o presente. «Penso que não há ninguém que não goste ou, se calhar, não dizem já, por vergonha».
Sobre as moradias em Aveiro, o arquiteto brinca: «As Amoreiras já se entranharam, as moradias ainda não».
O empreendimento localiza-se a escassos metros da Ria de Aveiro, num plano elevado que lhe permite uma privilegiada vista sobre esta zona da cidade. Entre os vários comentários deixados, os utilizadores criticavam o enquadramento paisagístico da obra, apontando alguns mesmo o dedo à Câmara Municipal de Aveiro pelo licenciamento deste projeto. Tomás Taveira é taxativo sobre o conceito de enquadramento paisagístico, defendendo que «uma obra de arte não se adapta ao mundo», mas sim «reage contra o mundo, no bom sentido, e impõe-se ao mundo».
«Mamarracho», «aberração», «barracas», «atentado à estética», «tenda de circo» e «canil»: estas foram só algumas das comparações feitas pelos internautas ao empreendimento com a assinatura de Tomás Taveira. O arquiteto é conhecido na cidade por ter desenhado o estádio municipal da cidade, na época do Europeu de Futebol de 2004, e não são poucos os comentadores que rapidamente tecem comparações entre as duas obras, e não da melhor forma.
Ao Nascer do SOL, Pedro Patrício, gerente da Moreira & Patrício, promotora imobiliária responsável pelos empreendimentos, confessa ter esperado alguns comentários negativos, mas «não esperava uma reação tão vincada de algumas pessoas». As reações das pessoas, defende, nascem da «ousadia» do projeto e do facto de haver «uma aceitação generalizada da arquitetura moderna», um tipo de imóveis que o mesmo defende são muito procurados pelos clientes, mas que não eram o objetivo com este empreendimento. «Este projeto é audacioso pela cor, pelas formas, pela exuberância, e as pessoas não estão acostumadas a ver isso em Aveiro. Noutras cidades do país e do mundo, a arquitetura é muito mais diversa e as pessoas já estão mais acostumadas», argumenta o responsável. Apesar de afirmar já estar à espera de alguns comentários negativos, Patrício desabafa que algumas das reações «excederam até o gosto pessoal e foram de alguma forma deselegantes para o arquiteto que, quer se goste quer não, tem uma marca que nunca será apagada na arquitetura nacional».
Ao Nascer do SOL não foi revelado o valor de mercado destas moradias, embora garanta a imobiliária que «já têm pessoas interessadas», mas sobre a escolha de Tomás Taveira para desenhar este projeto, Pedro Patrício não hesita: «O prof. Tomás Taveira é um autor menos consensual (…) e dispensa apresentações, tem obra feita e que envelheceu muito bem».
Contactado pelo Nascer do SOL, o presidente da Câmara Municipal de Aveiro (CMA), Ribau Esteves, esclarece a situação: «Este projeto tem vários elementos. É uma zona por construir, não tem preceitos de bairros antigos ou urbanização, e está numa zona onde a abordagem estética não é tão forte como, por exemplo, no bairro da Beira-Mar ou do Alboi (bairros históricos da cidade), onde há uma matriz a preservar. Nestes casos há sempre uma análise estética e há sempre um estudo de enquadramento urbano».
O autarca defende assim a legalidade do projeto, argumentando que não se encontra no centro histórico da cidade, mas sim numa zona de pouca construção, e que respeita todas as normas necessárias para a construção, mas lamenta: «A empresa foi um pouco infeliz na implementação das casas na fotografia aérea, que está desproporcionada». No entanto, não é taxativo sobre os comentários feitos: «Na abordagem do licenciador, cumprem todas as regras, não há questões de enquadramento urbano porque não é uma questão de reabilitação, e tiveram aprovação. Há quem goste, muito bem; há quem não goste, muito bem».
Ribau Esteves aproveita ainda para fazer várias analogias com outros edifícios espalhados pela cidade e que foram também alvo de comentários «dissonantes» aquando da sua inauguração. «As obras do arq.º Tomás Taveira são sempre muito pouco consensuais», começa por afirmar, utilizando o exemplo do Estádio Municipal de Aveiro, bem como do Hotel Meliá da cidade, instalado em pleno canal da Ria de Aveiro, um edifício cúbico e coberto maioritariamente com vidro. O hotel não é da autoria de Tomás Taveira, mas não foi pouca a polémica na altura da sua inauguração, como recorda Ribau Esteves: «Aqui o Hotel Meliá, mesmo à minha frente: desde que foi licenciado pelo prof. Alberto Souto, há gente que acha horroroso e inadmissível ao lado de um património do melhor que o país tem, a antiga Fábrica Jerónimo Pereira Campos, e há gente que acha o máximo. Quem está certo?».
O presidente da CMA foi mais longe, de forma a explicar a possibilidade de licenciamento destas moradias. «No licenciamento, a abordagem é fria. Se a casa fosse construída no meio do bairro da Beira-Mar ou no bairro do Alboi, dificilmente a aprovaríamos, porque a dissonância urbana é capaz de ter um problema de diferimento», defende, argumentando ainda que, no local onde o empreendimento é feito, «não se sente dificuldade nenhuma de fazer a aprovação, sabendo que há gente que vai gostar e gente que não vai gostar».