Raquel Varela: “É possível enfrentar uma pandemia sem suspender a democracia”

Raquel Varela critica a atitude do Governo em relação à forma como está a gerir a pandemia e garante que o Executivo não tem condições para se manter no poder. Lamenta a falta de investimento no SNS nos últimos anos e considera que os resultados estão à vista. A historiadora mostra-se contra o estado de…

 

Como vê esta fase de pandemia?

É indiscutível que o Governo não tomou as medidas necessárias e a honestidade intelectual, neste momento, é tão urgente quanto as medidas para combater a pandemia. Se não avaliarmos os erros que foram feitos, estamos condenados a repeti-los. O Governo desde o início que optou por medidas que transferiam para os cidadãos a culpa de estarem doentes, quando quem está doente é a vítima, não o culpado, sem fortalecer o Serviço Nacional de Saúde. O SNS há 20 anos que está a ser descapitalizado para favorecer o setor privado. Como se favorece o privado? Primeiro estabeleceram-se os hospitais SA, depois os EPE, em que o SNS concorre consigo próprio como se estivesse no mercado. O fim da exclusividade das carreiras médicas, as parcerias público-privadas e a sistemática diminuição de camas no setor público levaram a um incremento sistemático de camas no privado. A única forma de dar conta de uma pandemia altamente contagiosa, em que se pensa que por cada infetado conhecido há outros dez que não são conhecidos, é ter um SNS forte. Atualmente estamos a falar de um SNS que assume que entra em rutura se tiver 0,06% de pessoas internadas para uma população de dez milhões. E se tivermos um terramoto? Isso sim, é uma catástrofe.

A pandemia veio pôr a nu aquilo que já se sabia?

Já se sabia. Mas o que esta pandemia veio mostrar-nos foi que nem este Governo nem os anteriores querem admitir que são os responsáveis por isto. Depois, o Governo propõe uma medida medieval que é confinar as populações, que ainda por cima é falsa, porque metade da população trabalhadora nunca esteve confinada porque ou é trabalho essencial ou é trabalho industrial, que nunca parou. O que se confinou foi o lazer e os serviços. Nunca tivemos um verdadeiro confinamento e nenhum país, excetuando talvez a China, o fez, e a Suécia provou o que se poderia ter feito. Tem neste momento muito menos mortes por covid, muito menos mortes não por covid, o seu sistema de saúde não colapsou e a sua economia resistiu melhor, apesar de ter sofrido algum impacto porque está inserida numa economia mundial. Mas, sobretudo, a grande lição sueca é a da democracia. É possível enfrentar uma pandemia sem suspender os direitos democráticos. Já vamos no décimo ou décimo primeiro estado de emergência e sou absolutamente contra. Isto tinha de ser feito com base na educação, na pedagogia e no reforço do SNS. Atualmente temos polícias a fazerem perguntas indecorosas e ilegítimas aos cidadãos. Temos câmaras, como as de Oeiras e de Cascais, a violar a lei do domínio público do mar, em que as pessoas não têm acesso à orla costeira, temos atropelos sistemáticos à ordem constitucional e tudo isto passou a ser o novo normal. O novo normal é que a democracia está suspensa em Portugal.

A maioria das pessoas não questionam, apesar de algumas medidas terem sido incoerentes…

Nenhuma medida tem sido coerente, mas tem servido sobretudo para salvar o Governo das suas responsabilidades históricas, que estão relacionadas, obviamente, com o SNS, mas não só. A ideia de que Portugal manteria uma dívida pública baseada nas exportações, dependente de mercados externos, de baixos salários e assente no turismo, ruiu que nem um castelo de cartas, deixando milhares em dificuldades. Os números reais do desemprego são 813 mil. Não vale a pena continuarmos a mascarar este número ao contar só com os que se declaram desempregados e vão à procura de emprego. Temos 813 mil pessoas que podiam estar a trabalhar e não estão. Isto mostra que o Governo não só foi incapaz de ter medidas corretas face à pandemia como foi incapaz de preparar o país para uma crise económica. E nesta crise económica, quem são as pessoas que estão a sofrer mais? São os trabalhadores com o ensino básico, mas não só. O desemprego existe em todas as áreas e há muitos licenciados que estão desempregados. Mas os grandes custos de vida desta pandemia são os lares. A maioria não tem condições, pensa-se que há mais de três mil lares clandestinos, e quem tem morrido mais em Portugal? É a população confinada, e essa é uma das razões por que sou contra o confinamento, porque não impede os que já estão confinados de morrer, que são as pessoas dos lares.

E é um problema que tem sido difícil de resolver…

O problema até é mais de fundo, porque nunca tivemos uma política de envelhecimento. Nem nós nem ninguém no mundo ocidental. A Suécia também falhou redondamente nos lares. Felizmente, prolongamos a vida das pessoas, mas não existe, por agora, uma boa solução para a questão do envelhecimento com qualidade. E depois acusam-se as pessoas. O CDS, a certa altura, quis criminalizar quem abandona idosos. Por exemplo, um casal que trabalhe por turnos e que tenha alguém a seu cargo com 90 anos, com Alzheimer, não pode fazer rigorosamente nada. Mesmo que uma pessoa não trabalhe tem de ter qualificação para estar com alguém com Alzheimer. O mundo ocidental não pensou a questão do envelhecimento, que é muito pior para os mais pobres, mas é mau em todas as situações. A pandemia devia fazer-nos pensar mais nisto: o que fazer com os idosos. Não é só protegê-los, porque isso é uma infantilização. Também devia fazer-nos pensar porque é que as vacinas são privadas quando temos uma pandemia pública e generalizada. Devia fazer-nos pensar na questão brutal da desigualdade social: a Oxfam acabou de publicar o seu relatório sobre a desigualdade no mundo e revela que as maiores fortunas já recuperaram e até aumentaram, quando a ONU diz que 40% da população está em risco de pobreza e fome. A pandemia devia fazer-nos pensar no que é o desenvolvimento do capitalismo na sua fase de declínio. Sei que isto pode parecer estranho às pessoas, mas já é normal que, numa pandemia, se lembrem de fechar as pessoas dentro de casa e suspender os seus direitos, e não se lembrem de requisitar toda a estrutura privada de saúde e de romper as patentes das vacinas.

Ainda se falou na requisição dos hospitais privados…

O Governo faz ajustes pontuais. O que se devia ter feito era ter colocado toda a saúde sob um comando único, toda a capacidade instalada disponível. Temos hospitais no interior que não têm as camas todas ocupadas nem perto disso. Temos uma desigualdade imensa e estamos a enviar três doentes para a Madeira. Isso é uma coisa simbólica, tínhamos essa capacidade de internamento no Continente. Tudo prima pela desorganização, como, aliás, se viu nas filas das ambulâncias, em que só 15% dos casos eram urgentes, como no caso dos internamentos, em que 25% dos internamentos do Amadora-Sintra são sociais. Tivemos um problema em janeiro que foi uma sobremortalidade no domicílio inexplicável. É um aumento exponencial face à média dos últimos cinco anos, e estou a falar de pessoas que morreram em casa, sem procurar os serviços de saúde, e que, segundo a opinião de muitos epidemiologistas, a razão principal foi o medo de ir ao hospital. O medo de ir ao hospital é causado quando se mostra uma fila de ambulâncias, porque a pessoa pensa, ‘porque é que vou para lá se tenho de ficar 24 horas à espera?’.

Escreveu sobre o sofrimento ético nos hospitais. Que sofrimento é esse?

O sofrimento ético implica sempre algum tipo de conivência do trabalhador com um procedimento que acha que está errado. Isto não significa necessariamente consequências jurídicas. Por exemplo, posso aplicar um protocolo médico que está juridicamente certo, mas acho que clinicamente é errado, e é isso que leva ao sofrimento ético. É um conceito muito interessante, que trabalhamos no Observatório para as Condições de Trabalho e Vida, que ajuda muito a perceber a questão do burnout, que está generalizado nos estudos de trabalho que fazemos. Por isso defendo que é preciso mudar algumas coisas-chave que estão muito bem identificadas no SNS: acabar com a concorrência dentro do próprio sistema, estabelecer bons salários com exclusividade – mas que seja opcional, não sou nada a favor de obrigar os médicos a ficarem no Serviço Nacional de Saúde, mas devemos dar boas condições para que eles queiram –, e é fundamental a gestão democrática. Além disso, devia haver eleição dos diretores clínicos. Só assim é possível o SNS voltar a ser melhor, e já foi o 12.º melhor do mundo.

Disse que é possível enfrentar uma pandemia sem suspender os direitos democráticos. Então não ficou surpreendida quando o The Economist tirou Portugal da lista de países ‘totalmente democráticos’?

Não, não. Fui a favor do confinamento em março porque não sabíamos o que tínhamos pela frente. Agora, o que sabemos é que o número de mortos se encontra acima da esperança média de vida e temos uma taxa muito grave de mortes precoces que vai agravar-se nos próximos anos porque as pessoas não tiveram acesso a tratamento atempado, nomeadamente na oncologia e nas doenças agudas cardiovasculares, etc. Sou contra o estado de emergência em qualquer situação, inclusive numa situação de guerra. Quando a União Soviética de Estaline argumentava que as pessoas não podiam dizer mal do partido porque o país estava ameaçado de um ataque nuclear, é verdade que estava ameaçado mas, apesar disso, acho que se deve dizer mal do partido. Acho indecente que os governantes venham a utilizar palavras como negacionista e criminoso para quem se opõe. Felizmente, não há quase negacionistas em Portugal – o negacionismo é uma coisa de sociedades pobres e ignorantes. O que existe na sociedade portuguesa – e o Presidente da República e o Governo vão ter de viver com isso – é que existe um grupo de pessoas com voz pública, intelectuais e académicos, que estão completamente contra estas medidas e apresentam argumentos.

Quais?

Os argumentos são que a Suécia não confinou e, neste momento, está próxima da imunidade de grupo. Tem menos mortes do que Portugal e manteve a democracia, a saúde mental e a economia em níveis muito melhores face ao nosso país. Os argumentos são que o Governo é responsável porque não reforçou o Serviço Nacional de Saúde – o que aconteceu à Suécia em março aconteceu em Portugal um ano depois. Portugal teve dez meses para evitar repetir a tragédia dos lares e não conseguiu, e não só não conseguiu isso como atingiu a mortalidade precoce.

A esperança média de vida terá caído para os 65 anos…

A notícia que surgiu não está clara. A esperança média de vida não vai ser alterada com a pandemia porque a maioria das mortes de covid têm 81 anos e o maior excesso de mortalidade situou-se em idades iguais ou superiores a 90 anos. Isso não tem impacto na esperança média de vida. O que tem impacto são os tais setores não tratados e são os cancros precoces que não estão a ser diagnosticados, etc.

É uma fatura que se vai pagar cara nos próximos anos…

Claro. E temos, pela primeira vez, a extrema-direita com quase meio milhão de votos, e quando todas as medidas de estado de exceção que estamos a tomar são aquelas que a extrema-direita classicamente abraça – ou seja, a suspensão da democracia em nome da segurança. Não podemos esquecer-nos que não existe risco zero na vida. Quem pensa assim vive numa ilusão. É a mesma razão por que não deixam os filhos brincar na rua, porque podem cair – e podem. Neste momento temos uma ideia higienizada da sociedade e é uma ideia perigosa, porque achamos que o outro é um contaminador, com uma doença de baixíssima letalidade. É disso que estamos a falar. Agora imagine uma pandemia com um vírus que fosse muito mais grave do que este é. O que iam fazer as pessoas? Neste momento, as pessoas aceitam estar em prisão domiciliária – que é isso que representa o confinamento –, aceitam a delação. No outro dia vi um responsável da PSP a elogiar as denúncias que tem recebido.

Até fazem o apelo a essas denúncias…

Exatamente. Isto é impensável, um país que fez a Revolução dos Cravos aceitar que sejam os órgãos do Estado a apelar à denúncia. É a delação premiada com a cruz da ordem sanitária. As pessoas têm de perceber que isso desagrega os nossos laços sociais e o nosso sentido de comunidade, que é aquilo que nos permite enfrentar pandemias. Não se deve denunciar, atingir ou maltratar o outro, deve-se é cuidar do outro.

António Costa ‘libertou’ os portugueses no Natal e agora veio dar um puxão de orelhas e justificar com isso o aumento de casos…

Ainda por cima, é um discurso obscurantista. É outra grande lição da Suécia. Vale a pena ver as poucas conferências que faz o responsável máximo da Suécia e isso só acontece porque é politicamente independente do Governo. Ele toma decisões e essas têm de ser aplicadas, independentemente do Governo. Aqui não, há uma dependência muito maior entre a Direção-Geral da Saúde e o Governo. E outra coisa que têm é a seriedade: quando não sabe, diz que não sabe; quando tem dúvidas, diz que tem dúvidas.

Vários especialistas alertaram para esse risco…

Mas depois há vários que vieram explicar o que aconteceu. Vi o prof. Henrique de Barros dizer que veio uma onda de frio brutal a seguir ao Natal e os contágios começaram a disparar no dia 26, quando não havia tempo para sentir o efeito das reuniões de Natal. Pelo menos, tenham a humildade de dizer que não sabem. Tudo isto é para salvar a face do Governo: ou é o Natal, ou é a variante inglesa, ou é o milagre português. Agora são as escolas. Para mim, é absolutamente impensável fechar as escolas. O que é que aconteceu? Os casos baixaram de 16 mil para cinco mil no início desta semana, mas teria sido preciso 15 dias para perceber o efeito do encerramento das escolas.

Falta de testagem?

Não sei se é a falta de testes ou se é porque a temperatura subiu a partir de meio de janeiro. Mas não me venham dizer que é resultado do encerramento das escolas porque, nessa altura, nem 15 dias tinham passado. Esta semana, grandes epidemiologistas foram ouvidos na Assembleia da República: Carla Nunes, do Instituto Ricardo Jorge, que veio dizer que há um número gravíssimo em Portugal: 80% dos portugueses não confiam no sistema de saúde para doenças normais, e 55% para covid. Foi ouvido Jorge Torgal, presidente do Conselho Nacional de Saúde Pública, que é contra o encerramento das escolas e contra o confinamento. E Henrique de Barros, presidente do Conselho Nacional de Saúde, que foi contra o encerramento das escolas.

Havia uma grande pressão para encerrar as escolas.

O grave é que estamos a viver duas realidades paralelas. Temos grandes especialistas com responsabilidades únicas na epidemiologia a fazer alertas e dar opiniões que são ouvidos na comissão do Parlamento, mas isso é como se não existisse. Depois temos o Governo, que escolhe os médicos, não os grandes epidemiologistas, que fazem um discurso mais emocional e favorável ao Governo. Neste momento temos um Governo presidencialista, com a figura de Marcelo e de Costa a centralizar o poder do Estado em si, enquanto a Assembleia da República está completamente desprezada e os tribunais também, e isso é consequência do estado de emergência. Já tínhamos uma justiça lenta, e agora suspendemos, uma vez mais, os prazos em tribunal, em nome de um confinamento em que não há uma evidência científica que vá resultar no combate à pandemia, mas temos uma evidência indiscutível: neste momento, as pessoas continuam a morrer nos lares.

Agora vai avançar o ensino online, apesar de o Governo não ter entregue todos os computadores.

Agora prometeu entregar os computadores até março, ou seja, quando as pessoas desconfinarem é que vão ter. Mas o computador não resolve o problema porque o ensino online não ensina nada.

Estamos a hipotecar esta geração?

Sem dúvida, e os portugueses de classe média e média-alta puseram os filhos em colégios privados de elite e em explicações privadas. Não permitiram sujeitar os seus filhos a uma farsa de ensino que é o ensino online. Essa é uma das grandes desigualdades consequência do confinamento, que é vetar os filhos das classes médias e dos trabalhadores a uma brutal injustiça, em que eles já iam ficar para trás no acesso à universidade e agora ainda vão ficar mais para trás.

E os mais novos?

Há alunos que nem aprenderam a ler. A educação é um ato presencial. Não existe ensino online, existe é uma informação remota.

E do ponto de vista económico já está a ser desastroso.

A epidemiologia nunca pode viver sem a sociologia e sem a história. Temos uma grande parte da população que vivia com o salário mínimo porque tinha biscates por baixo da mesa. É o tipo que trabalha numa pastelaria que recebe o salário mínimo e depois o patrão dá-lhe mais 200 euros em dinheiro. É a cabeleireira que trabalha dez horas por dia num centro comercial e depois vai fazer mais duas horas num cabeleireiro, etc. Isto é generalizado e é a única razão para que as pessoas aguentem viver com salários tão baixos, mas a pandemia suspendeu isso. E como as pessoas só descontam sobre o ordenado mínimo, só recebem cento e tal ou 200 euros da Segurança Social. E nem o escape histórico dos trabalhadores portugueses que é a emigração vai existir. Desta vez, não há esse escape porque a crise económica é generalizada. Para onde é que vão emigrar? Estamos a levar a sociedade portuguesa ao máximo de tensão por incapacidade de resolver por reformas os problemas estruturais.

A somar à queda do PIB há ainda que contar com o desemprego. O layoff está a mascarar esses números?

O layoff e as moratórias. Com as moratórias estamos a criar um problema gravíssimo: aparentemente, podem ajudar quem não está a pagar no imediato, mas estão a manter artificialmente os preços das casas altos, fazendo com que os bancos não tenham perdas. Não estamos a intervir ao nível de uma habitação pública, estamos a intervir ao nível da proteção da banca.

E a evitar o aumento do malparado dos bancos…

As moratórias respondem às necessidades da banca, e isso mantém o preço artificialmente alto porque, se fosse pela lei da oferta e da procura, os preços já teriam caído. Já o layoff foi um balão de oxigénio para as grandes empresas e está a erodir o fundo da Segurança Social. Ninguém pensou numa solução diferente? O Estado deve salvar empresas privadas? E se salva essas empresas, então elas não devem passar a ser públicas? E está a salvar com o dinheiro da Segurança Social? Estas questões deviam ser colocadas à sociedade.

Mas também injetou em bancos e, agora, na TAP.

Mas há empresas e empresas. Compreendo que um país insular e com uma emigração como a nossa não possa deixar de ter uma empresa de transporte aéreo. Agora que a Padaria Portuguesa, que é um franchising, possa recorrer ao layoff logo no início de um confinamento é uma coisa que me deixa espantada. Com que legitimidade é possível mexer no dinheiro das contribuições dos trabalhadores? A partir do momento em que temos layoffs estamos a hipotecar as reformas, inclusive daqueles a quem batemos palmas, como os profissionais de saúde, porque as reformas mais altas são deles, dos professores, etc. São as reformas altas que os Governos vão querer penalizar para sustentar os layoffs, que funcionam como a salvação de património, do lucro, e não dos trabalhadores.

É natural que quem defenda um sistema privado ganhe maior relevo?

Isso é um paliativo. Se as pessoas veem a Segurança Social pública em risco, quanto mais as privadas. Depois do que aconteceu aos fundos de pensões em 2008, ninguém com bom senso quer ter a sua reforma nesse sistema.

Mas há quem defenda a atribuição de dinheiro na mão das pessoas…

Não acho que isso vá resolver os problemas estruturais da sociedade portuguesa e esses problemas estão relacionados com a baixa qualificação, baixo investimento científico, dependência externa, nomeadamente a dependência dos investimentos, com a pouca diversificação de alto valor agregado da nossa economia – muito centrada no turismo e nos baixos salários. Essa foi a opção dos Estados Unidos. O problema estrutural mantém-se com uma ou com outra opção, e não se resolve pondo dinheiro na mão das empresas ou dos portugueses, só se revolve se pensarmos em toda a estrutura económica do país. O problema é que desde o mapa cor-de-rosa que não há nenhum projeto para o país. No mapa cor-de-rosa, os outros países coloniais iam para disputar territórios, Portugal reivindicava antiguidade, autoridade. Portugal tinha o quê? Nem nas colónias Portugal conseguiu deixar qualquer aparência de investimento.

Quando se fala em investimentos, geralmente é de grandes obras públicas.

E algumas nem são assim tão grandes. É tão patético que se anunciem duas pontes para Espanha, é uma coisa inacreditável, como se faltassem pontes. Não há nenhuma visão estratégica independente.

E como viu o plano de vacinação?

Portugal tem coisas históricas: chico-espertismo e nepotismo. Estamos cheios de funcionários do Estado e da política que se vão protegendo uns aos outros por razões mais baseadas nas fidelidades partidárias e familiares do que no mérito. Porque é que é assim? É assim porque somos um país sem estratégia. Se somos um país de baixos salários, temos medíocres a gerir o Estado – estas duas coisas são indissociáveis. Temos uma classe média cada vez mais proletarizada, apesar de estar convencida que não, e acredita que pode ter boas condições de trabalho quando a população ganha 600 euros. Quanto à vacinação, o maior problema são as multinacionais, como a Merck, que desistiu de fazer, ou as outras que demonstraram um recuo brutal na produção. Depois temos estes momentos hilariantes da cozinheira, da pasteleira, da mulher, da sogra, da filha, só falta a amante. E Portugal tem outro problema, que é nos momentos mais atrasados da sociedade e de maior medo, como este que estamos a viver, quem vem para a frente são as pessoas menos corajosas, e dentro dos menos corajosos estão os delatores. Vemos muitos delatores, muita autovitimização, não vemos propostas transformadoras, vemos cobardia, obscurantismo, um apelo à censura, vemos ‘o outro é meu inimigo, ‘o outro é negacionista’. Tudo isto faz parte dos momentos históricos regressivos da sociedade. Se tivermos um momento progressivo, vemos o contrário: são os tipos que têm coragem, que apresentam propostas transformadoras, que não têm medo, que se recusam a ser bufos.

E em relação às vacinas dos deputados?

O problema é mais a questão democrática. A Assembleia da República não é insubstituível. Numa democracia saudável, o deputado não é insubstituível e não há urgência em vaciná-lo por ser deputado. Numa democracia saudável, o poder não está concentrado nos deputados, e agora nem está, porque está assente no Presidente da República e no primeiro-ministro. Esse é um grande drama que ninguém quer enfrentar. Os sindicatos, a partir do Governo da geringonça, ficaram em silêncio ou em quase silêncio. As associações profissionais também têm cada vez menos capacidade transformadora. Temos uma democracia centralizada e cada vez menos participativa.

Depois dos resultados das eleições presidenciais, os partidos de esquerda poderão mudar de atitude?

O PC e o BE enfraqueceram muito com o apoio à geringonça porque ela significou uma direitização do PS junto de Marcelo Rebelo de Sousa. A geringonça já tinha laivos de Governo de unidade nacional e a tendência vai ser para reforçar essa ponte entre PS e o PSD, deixando o BE e o PCP cada vez com menos importância. O Bloco perde importância porque os setores que votam no partido não se importam de votar no PS, e o PCP perde importância, não só por razões demográficas, porque envelhece, mas porque perdeu sindicatos. O que aconteceu aos dois partidos é que abdicaram da renegociação da dívida e da reposição dos direitos laborais de antes da troika, e isso levou a que Portugal tenha esta situação estranhíssima: temos uma extrema-direita, mas não temos uma extrema-esquerda.

Já era previsível esta subida da extrema-direita?

Era. E isso viu-se em Cascais e no Estoril e na Foz. André Ventura teve votações significativas nas zonas ricas. É cada vez mais claro que há uma deslocação do voto da direita para a extrema-direita.

É um crescimento perigoso?

É gravíssimo, o fascismo. O comunismo é uma ideia de igualdade e de liberdade, mas que foi pervertida pela ditadura de Estaline, por exemplo. Os comunistas foram fundamentais para derrubar o nazismo. É incomparável o comunismo ao nazismo. O nazismo é um projeto segregador terrorista, de decadência, e é um projeto dos ricos. Mas isto não é fascismo, é um neofascismo, não é igual ao que se passava na Alemanha. Tem outros contornos, mas é uma ameaça à nossa vida civilizada porque implica autorização permanente da violência física e verbal contra os adversários. Como se viu nos debates, não houve debate, a ideia é ‘o meu adversário tem de ser aniquilado’.

Estes movimentos não são exclusivos de Portugal…

Não, e por toda a Europa têm aparecido estes movimentos de extrema-direita. A esquerda – por toda a Europa e pelo mundo – tem uma responsabilidade histórica na ascensão da extrema-direita porque abdicou de ter um programa transformador e atira cada vez mais para a abstenção os seus militantes. Há cada vez menos uma oposição, e só uma oposição de esquerda pode derrotar a extrema-direita, não é o centro que a vai derrotar. Mas é preciso uma militância quotidiana, não pode estar só centrada nos processos eleitorais. Seria necessário um programa de esquerda de rutura, no sentido de ir contra as desigualdades brutais impostas pelo capitalismo, para ter eco junto da maioria da população. Mas isso não existe. Assistimos a uma ramerrame parlamentar de discussões muito superficiais em que não se discute a fundo a vida das pessoas. Já para não falar de quando a esquerda tem as derivas identitárias, do chamado politicamente correto. Muitas delas são algo perigoso para a liberdade de expressão e, de certa forma, foram o prenúncio do que se passa agora. Quem não é a favor das medidas do Governo é rotulado de negacionista ou criminoso. São os extremos fanáticos do ‘ou estás comigo ou estás contra mim’. Esta mensagem de interdição do debate que é hoje dominante no nosso Governo é um apelo à censura, e isso começou, em parte, na esquerda que defendia a censura, por exemplo, das anedotas porque eram racistas ou porque eram antifeministas. A palavra tem de ser livre, as pessoas não podem ser impedidas de pensar. Uma anedota não faz mal a ninguém, o que faz mal a alguém é a realidade. Dizer que o confinamento não resulta não é um problema, o problema é que o confinamento não resulta. Não pode haver obstáculos à liberdade de expressão, sejam de esquerda, sejam de direita.

Como vê a acusação de Pedro Nuno Santos ao PS por este ter ajudado ‘involuntariamente’ à afirmação de Ventura?

Acho que ajudou, mas também acho que Marcelo Rebelo de Sousa tem conquistado um espaço e ganharia de qualquer forma. Há uma vitória pessoal de Marcelo Rebelo de Sousa, independentemente do PS. Sempre achei que o PS queria apoiar Marcelo Rebelo de Sousa e não me enganei.

Como vê os apelos à criação de um Governo de unidade nacional?

Não há nada tão mau como governar como unidade. A democracia exige diversidade, confronto de opiniões e oposição. É a partir do diálogo e da luta social entre Governo e oposição que alcançamos transformações que são necessárias no país. Mas essa unidade que está a ser pedida já está em funcionamento. A geringonça já era um pré-governo de unidade nacional porque Marcelo sempre esteve ao lado da geringonça.

Todas estas polémicas deixam para trás casos polémicos como o do SEF e do procurador europeu?

É o problema do quotidiano: estamos muito submersos na polémica anterior, e depois é como um disco rígido que rebenta e não tem mais memória. Uma das ideias centrais do método científico é saber distinguir o acessório do principal, e hoje em dia há pouco pensamento científico e há um quotidiano submerso em excesso de acontecimentos. E nem todos os acontecimentos têm a mesma dignidade. O caso do SEF revela a gravidade de uma estrutura do Estado ter práticas criminosas dentro da sua própria estrutura, e de uma estrutura que é criada para proteger.

Acha que estes dois ministros têm condições para continuar?

A situação do SEF é muito mais grave. Mas, acima de tudo, acho que o Governo não tem condições de governar, olhando para esta pandemia, para a sobremortalidade, para a desagregação do SNS, para a tragédia económica e social que o país vive.

Mas há alternativa?

Agora não há alternativa; pelo menos aparentemente, não. Compreendo a pergunta de Eduardo Cabrita e de Francisca Van Dunem, mas quando olho para o país penso que este Governo foi incapaz de lidar com a pior situação que Portugal viveu em 45 anos. Podem dizer que fizeram o melhor possível em situações difíceis – é mentira. Nunca foram requisitados os hospitais privados e colocados sob um comando único, nunca foi duplicado o salário dos médicos e dos enfermeiros neste período para os trazer de volta ao SNS, nunca foi feita uma política de aposta central na educação para garantir que as escolas seriam um local onde os professores se sentiam bem. As coisas estruturais não foram feitas. É mentira dizer que o Governo não podia ter feito mais nada e o que fizeram foi em situações difíceis – não é verdade. Mais uma vez, olhe-se para o Governo sueco, que sai desta pandemia como um Governo que tem respeitabilidade frente aos seus cidadãos. Este Governo não pode dizer que faz tudo o que pode perante a tragédia que vivemos, pandémica, económica e social – e a económica e social vai trazer muito mais mortes do que as mortes por covid, infelizmente. Nenhuma morte evitável deve ser aceitável, mas estamos num quadro assustador. Vamos chegar a mais de um milhão de desempregados, à hipoteca da Segurança Social, à destruição de pequenas e médias empresas, foi o colapso de uma estratégia errada que era o turismo. Não se conseguiu proteger os lares, que já se sabia que era onde estavam as pessoas mais frágeis. E o Governo tem um problema com um ministro? Não, o problema é com o Governo todo.