A sua carta a Marta Temido foi um ato de desobediência civil?
Assumo que é um ato de desobediência em relação a um comportamento reiterado que pretendeu esconder a realidade desta pandemia. Não faço um balanço positivo da atuação da ministra da Saúde nem de António Costa durante esta pandemia. Para mim, tirar-lhe uns minutos de sono para os fazer pensar duas vezes já é importante.
Por que acha que o Governo optou por fazer um stand by no Estado de Emergência durante o Natal? Foi um gesto de consolo para com os portugueses saturados do confinamento ou um ato político?
Não há dúvida de que a abertura durante o Natal foi um ato político baseado nos interesses do primeiro-ministro para se manter em alta na projeção das sondagens. Há erros cometidos na primeira fase que são compreensíveis, pois estávamos a lidar com o desconhecido. Mas desde o verão que a maioria dos epidemiologistas previu o que está a acontecer agora e o Governo foi imprevidente. Preferiu adocicar as coisas e meter a economia à frente do interesse sanitário. Eu percebo que não há saúde sem economia, nem economia sem saúde. Mas o que estava em primeiro lugar era o que estava a escavacar tudo: a pandemia.
No início da sua carta, cita o poeta e ensaísta novecentista Henry David Thoreau: «Diz o que tens a dizer, não o que deverias». Este autor defende que o homem não pode deixar que os governos controlem a sua consciência, muito menos que se transformem em agentes de injustiça. Foi isso que o levou a romper o silêncio. Achou que, se não o fizesse, se tornava cúmplice?
Eu escrevi essa carta num sábado de madrugada, após ter saído do Serviço de Urgência do hospital. Havia pessoas sentadas há dias em cadeiras, à espera de uma vaga na enfermaria ou de uma maca. Havia três vezes mais doentes do que o espaço comportava – uma situação que nunca imaginei ser possível e eu já estive em muitas urgências caóticas. Foi uma experiência tão má, tão horrível, que, para que os doentes percebessem que os médicos estavam solidários com eles e com o seu sofrimento, decidi dar-lhes voz. Escrever foi a minha forma de dar conforto àqueles que não têm voz. Escrevi para tentar tirar o sono àqueles que estavam calados, àqueles que não disseram que se queriam ir embora, mas se calhar queriam, àqueles que não me perguntaram porque é que o vizinho do lado ia ser internado e eles não, mas tiveram vontade de o fazer. Eu gostava de lhes poder ter dito: é indigna a forma como estão a ser tratados.
Tem uma longa carreira e pressupõe-se que já viu de tudo. O que é que o marcou mais nesse sábado?
Nunca na vida imaginei que um doente, em estado grave, que estava a oxigénio, mas completamente lúcido, se dirigisse a mim a pedir alta. Preferia ir para casa e morrer no consolo do seu lar, a passar ali mais um minuto. Imagine o sofrimento, o abandono, que aquele homem sentia para tomar aquela decisão…
Estamos a falar de que tipo de doente?
Era um professor reformado, teria uns 70 e muitos. Ele e a esposa tinham ficado infetados ao mesmo tempo e começaram por procurar um hospital privado, mas estava cheio – só tinha lugar para um e foi a senhora quem lá ficou. A ele, mandaram-no para o hospital da sua área de residência. Estava ali no corredor, sentado numa cadeira, havia cinco dias. Dormia e comia ali. Entrou em desespero.
Disse-me que esse doente não tinha conseguido vaga num hospital privado. Quer dizer que até os privados já estão lotados?
Os hospitais privados, desde o início da pandemia, que estiveram disponíveis para ajudar. Só que agora também estão cheios. Um terço dos portugueses tem um seguro de saúde e a opção, perante esta calamidade, é óbvia. Faltou, como tem faltado sempre, ter um plano para a gestão integrada das camas dos dois sistemas de saúde. Juntarmo-nos todos e fazer o melhor possível. Eles acabaram por nos ajudar. Não porque houvesse um plano, mas porque houve uma fuga do público, dos cidadãos. Mas agora também estão lotados com doentes covid e não covid. O caso do doente de que lhe estava a falar é exemplo disso. Aliás, naquele sábado, tive dois casos iguais.
É difícil de imaginar o que leva um doente, lúcido, tratar a vida como se fosse um trapo e pedir para morrer o mais longe possível do hospital. Os jornalistas têm estado a fazer reportagens nos hospitais, mas não há imagens como as que descreve. Parece haver por detrás disso a intenção de um ‘apagão’ histórico, à boa maneira estalinista. O que é que os seus olhos viram que está vedado à comunicação social e que explica a atitude desse doente?
Nesse dia, cheguei às urgências às 8h, equipei-me e tentei perceber quem estava de serviço. Era um colega meu, diretor de Neurologia, e uma jovem, futura internista, que está no último ano da especialidade. Vou-lhe dizer que não consigo imaginar o que teria sido aquela urgência se eu não estivesse lá. Porque ponho-me na pele dessa jovem, que iria estar sozinha, ou então com uns tarefeiros com uma experiência muito limitada, e teria sido catastrófico. Depois, entrou outra colega minha que ia visitar a sogra, que também estava infetada, soube que aquilo estava o caos e acabou por ficar lá a trabalhar.
Quer dizer que os profissionais de saúde, das várias especialidades, estão todos mobilizados para a covid?
Neste momento, é tudo por todos. Desdobramos as equipas e colocamos pessoas com experiência com as que não têm. Os cirurgiões, por exemplo, tirando a situação oncológica e a emergência médica, deixaram de operar. Nós, para ganharmos pessoas que são precisas para o internamento (não estou a falar de enfermeiros e auxiliares), tivemos de esvaziar a consulta externa. Porque a consulta externa é feita por médicos que também fazem urgência e fazem bloco operatório, ninguém está só na consulta externa. Os médicos foram todos para o internamento para dar suporte aos covid.
Estava-me a dizer há pouco que, quando entrou na urgência, estava tudo a abarrotar…
Até a sala de espera! E a sala de observação, gizada para ter quatro doentes, e onde estão os piores, tinha o dobro e também doentes em cadeiras e outros em macas. Houve um caso de paragem cardíaca, mas que conseguimos reanimar. Dei logo de caras com dezenas e dezenas de doentes, em fila, sentados em cadeiras, outros em macas, com um olhar suplicante… Ninguém se lamentava, mas é claro que todos queriam ouvir duas coisas: ou que tinham uma vaga na enfermaria ou que alguém lhes dissesse «estão melhores, podem ir para casa!». Comecei a observá-los uns atrás dos outros, como uma linha de montagem. Mas eram seres humanos! (voz embargada)
Para um médico que, como é público, sempre defendeu uma medicina humanista, deve ser atroz trabalhar nessas condições.
Nem há margem para aquilo que é mais importante na relação médico doente e um direito inalienável: a confidencialidade. Não há tempo para fazer uma observação. Faz-se a correr a gasometria, porque todos aqueles doentes estão a precisar de oxigénio. Também havia pessoas que estavam a precisar de ir para os cuidados intensivos, mas não tinham vaga. São tratados como se estivessem na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), mas sem as mesmas condições, sem o staff especializado.
O seu hospital parece um mergulhador em águas profundas a quem falta a garrafa de oxigénio. Aliás, o hospital subscreveu o documento do grupo de centros hospitalares da periferia de Lisboa que chamou a atenção do Governo para a saturação e a rotura assistencial. Isso quer dizer que os doentes de Setúbal não estão a ser tratados com os mesmos cuidados do que os da capital?
Quer dizer que os doentes destes sete hospitais não têm acesso, em proporção, ao mesmo tipo de tratamento dos doentes da capital. Aliás é esse mesmo o grito. E nós não temos mais para onde crescer. Crescemos para cima, crescemos para a garagem, temos médicos e enfermeiros a correrem de baixo para cima para não deixarem morrer os doentes… Antes, os doentes tinham acesso aos cuidados intensivos e agora não estão a ter. Há doentes a serem ventilados noutros sítios. Temos três unidades covid e não podemos abrir mais: não há staff.
Não admira que o doente de que me falou tenha pedido alta. Até para morrer, é preciso dignidade.
Sem dúvida que foi um ato de coragem. E quantos outros que o ouviram não devem ter pensado o mesmo!
Em que circunstâncias é que ele lhe pediu isso?
Foi um colega que me veio dizer que estava ali um doente que se queria ir embora. Ele estava a oxigénio e, de vez em quando, recebia medicamentação intravenosa. Já tinham passado cinco dias desde que entrara e mantinha-se sentado na mesma cadeira, quase entregue a si próprio. Só conseguia falar com um médico quando o turno acabava – ou seja, de 12 em 12 horas. Estava em grande sofrimento, mas absolutamente decidido. E, com muita determinação, pediu-me alta. Disse-me que se responsabilizava, mas que se recusava a ficar ali mais um dia que fosse. Tentei demovê-lo, mas estávamos rodeados de outros doentes, não havia sigilo e o efeito das suas palavras refletia-se nos outros. Naquelas circunstâncias, também não podia perder mais tempo e dei-lhe a alta. Mas, quase em simultâneo, ocorreu-me uma ideia que acabou por funcionar. Perguntei-lhe se tinha filhos, ele disse que sim e aventei: «Então, porque é que não lhes liga?». Foi o que fez. Passado um instante, veio ter comigo e pediu-me para anular a alta. Ele não estava nada bem e acabei por lhe arranjar um lugar na enfermaria.
Nesse cenário, sem tempo e sem meios, há doentes que morrem?
A opção de se trocar uma vida por outra sempre se fez, só que agora acontece de uma forma mais concentrada. Quem disser o contrário é porque não trabalhou em certos sítios. Eu trabalhei três anos em cuidados intensivos, já reanimei 103 pessoas, já fui chefe de equipa e diretor da urgência durante 30 anos. Sei por experiência própria o que estou a dizer. O que aconteceu com aquele doente, a quem eu acabei por arranjar uma vaga na enfermaria, foi motivado pela conjunção da pressão e da oportunidade, o que é quase uma roleta russa. Podia haver ali gente em pior estado, mas não há tempo para ponderar. Portanto, os doentes que escapam à morte, neste sentido, já estão a ser escolhidos. Mas mais vale fazer, do que não fazer nada. Aliás, quando terminei o turno deixei lá várias pessoas que considero que o crime foi terem-nas levado para o hospital.
O que quer dizer com isso?
O que mais me choca é receber doentes que chegam ao hospital apenas para que se reconheça o seu óbito. Porque há idosos nos lares, pessoas com 90 e tal anos, acamadas, com escaras, que entram em paragem cardíaca, mas como ainda estão vivas e não se sabe se são covid ou não, em vez de as deixarem sossegadinhas nas suas camas, ligam para a linha SNS 24. As decisões de quem lá está, são cegas. Como ninguém se quer responsabilizar e acham que se deve dar o benefício da dúvida, em vez de deixarem estes idosos sossegadinhos nas suas camas, mandam-nos para o hospital, com indicação para reanimação. Isto aconteceu-me há dois dias, por duas vezes. Vieram com os bombeiros, que têm alguns conhecimentos em reanimação e tentaram tudo para os manter vivos, e chegaram agonizantes. É evidente que eu mandei logo suspender as manobras cardiorrespiratórias. Começar já é um crime.
E quem é que devia de assumir essa responsabilidade?
A morte é um tema que deve ser discutido entre o médico e o doente. Nestes casos, se os familiares fossem informados, pelo médico de família ou do lar, sobre o verdadeiro estado daqueles utentes e do sofrimento suplementar que se lhes está a infligir, seriam eles a decidir. A minha mãe está num lar, ainda se mexe e come pela própria mão. Mas já deixou a sua vontade escrita de que não quer ser reanimada. Por isso, no lar, toda a gente sabe que, se lhe acontecer alguma coisa, chamam-me, que eu passo o certificado de óbito.
E se isso acontecer no hospital qual é o procedimento?
É feito pelo médico assistente. E, se ele tiver dúvidas, fala com o diretor de serviço ou com a Comissão de Ética. E é obrigatório que se coloque no processo clínico do doente se ele tinha ou não indicações para a reanimação cardiorrespiratória. Alguém me consegue explicar qual é a dignidade de uma pessoa vir em dificuldade respiratória, a morrer, ao frio, numa maca, para o hospital?
São casos que acontecem mais nesta situação de pandemia?
Agora, até os cadáveres são enviados para o hospital. No meu último turno, tive de fazer a admissão administrativa de dois cadáveres. Isto é muito pesado para um médico. É o procedimento normal de um doente que ali morre. Pede-se a zaragatoa, para ver se está covid ou não. Depois, dá-se alta e a seguir o certificado de óbito. Isto porque uma pessoa não pode ser enterrada sem se saber se é positivo ou negativo. Está-se a complexificar o processo. Antes, era o médico de família ou o delegado de saúde que tratavam disso. É tempo que um médico perde enquanto há quem precise da sua ajuda para viver.
Como é que um médico se aguenta num cenário tão desumano como o que está a descrever?
Já vi profissionais de saúde a saírem banhados em lágrimas. Esta semana foi para lá uma colega de psiquiatria e achou aquilo de tal forma insuportável que se foi embora. Não aguentou. Tenho um colega do meu serviço que está de baixa há seis meses. Sei que todos os serviços de psiquiatria adotaram uma consulta de apoio aos profissionais, mas, que eu saiba, nenhum médico recorreu a ela. Não é nada fácil um médico assumir-se como doente, muito menos com um psiquiatra. Por isso é que a taxa de divórcios e suicídios na nossa classe é muito superior se se comparar com a população em geral.