Estados Unidos. A ânsia por reabrir pode sair cara

Biden pede que não se baixe a guarda, mas muitos governadores fizeram ouvidos moucos. O Texas prepara para reabrir a 100%, esquecendo que da última vez, em junho, os seus serviços de saúde colapsaram. 

Com boa parte da população do planeta confinada, à espera de avanços na vacinação contra a covid-19, cresce a tensão entre a esperança e os receios de uma reabertura precipitada. Talvez em lado nenhum isso seja tão evidente como nos Estados Unidos, onde o Presidente Joe Biden prometeu ter uma vacina para cada adulto norte-americano já em maio. “Há luz ao fundo do túnel, mas não podemos baixar a guarda”, apelou Biden, esta terça-feira. Paralelamente, governadores de vários estados davam ordem para reabrir, ignorando a Casa Branca, para desespero dos cientistas, que avisam para o risco de uma nova vaga – sobretudo quando se aproximam as férias de primavera, marcadas por festejos de estudantes, viagens e visitas à família. 

No Texas, um dos estados mais atrasados no seu programa de vacinação, onde apenas 6.8% dos habitantes receberam duas doses, segundo dados dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), foi anunciado o fim de todas as restrições, com efeito a partir de 10 de março, incluindo a obrigatoriedade do uso de máscara em espaços públicos. 

“Demasiados texanos perderam oportunidades de emprego. Demasiados donos de pequenos negócios debateram-se para pagar as contas. Isto tem de acabar”, declarou o governador do Texas, o republicano Greg Abbott, numa conferência de imprensa num restaurante, onde muitos dos seus apoiantes estavam sem máscara. O que é que o fim da obrigatoriedade do uso de máscara tem a ver com a economia não é claro, mas o governador insistiu que “agora é altura de abrir o Texas a 100%”. 

Abbott não está sozinho. Outros governadores republicanos, no Mississípi, Dakota do Norte, Montana e Iowa, seguiram um rumo semelhante, entusiasmados com a queda no número de novas infeções registadas. Os Estados Unidos passaram de uma média semanal de mais de 250 mil casos diários, no início de janeiro, para pouco mais de 66 mil casos – ainda assim, valores próximos do segundo pico norte-americano, em julho, com uma média semanal de quase 70 mil casos diários.

Importa salientar que não seria a primeira vez que governadores cometiam o erro de reabrir demasiado cedo. Em junho, Abbott, incentivado pelo então Presidente Donald Trump, também decidiu ser dos primeiros a reabrir o seu estado. Milhões de texanos acorreram a centros comerciais, restaurantes, cabeleireiros, bares, e Abbott acabou por ter de suspender a reabertura, poucas semanas depois.

No entanto, era tarde demais. O Texas enfrentou um enorme onda de casos, com mais de 100 mil em dois dias, colapsando os seus serviços médicos e tornando-se, por momentos, o epicentro do surto norte-americano. 
Na altura, o governador mostrou-se profundamente arrependido. “Se pudesse voltar atrás e fazer algo outra vez, provavelmente seria mais lento na reabertura dos bares, agora vendo, em retrospetiva, quão rapidamente o coronavírus se alastra nesse ambiente”, admitiu Abbott à KVIA.

Entretanto, ou Abbott esqueceu essa dolorosa lição, ou tem prioridades mais prementes. O governador do Texas tem motivos para se preocupar com a sua campanha de reeleição de 2022 – nas presidenciais de novembro o seu estado, um histórico bastião republicano, quase virou democrata – e fala-se numa possível corrida à nomeação como candidato presidencial em 2024.

Em ambos os casos, será crucial ter apoio da base republicana, boa parte da qual associa a obrigação do uso de máscara com violação das liberdades individuais. Ainda há uns dias, na Conservative Political Action Conference (CPAC), na Florida, que teve como missão definir o futuro republicano, os holofotes estiveram sobre personagens como Kristi Noem, governadora do Dakota do Sul – o segundo estado com mais infeções per capita do país, atrás apenas do Dakota do Norte.

“O Dakota do Sul é o único estado na América que nunca ordenou o fecho de um único negócio ou igreja. O Dakota do Sul nunca instituiu um confinamento, nunca ordenou às pessoas que usassem máscaras”, gabou-se Noem na CPAC. Talvez seja por isso que o seu estado foi tão devastado pela covid-19, mas a reação dos ativistas conservadores foi de júbilo, com palmas e ovações. 

Já o governador do Texas claramente não quis ficar para trás. “As pessoas e os negócios não precisem que o Estado lhes diga como operar”, declarou Abbott, enquanto anunciava a reabertura do estado, considerando que, no último ano, os texanos “dominaram os hábitos diários para evitar apanhar covid-19”. 

Contudo, importa salientar que não são só governadores republicanos a cair na tentação de reabrir. Também há democratas a fazê-lo, apesar de a um ritmo bastante mais lento. Em Nova Iorque já se pode ir ao cinema, estando as salas obrigadas a ficar a 25% de capacidade, e na Califórnia – que está a registar uma média de mais de 5 mil novos casos por dia – começam a reabrir restaurantes e ginásios, gradualmente.

O risco é enorme, avisam os especialistas. “Tem de ser claro como água que sim, estamos a reabrir – mas isso não significa tornarmo-nos complacentes”, considerou Rita Burke, epidemiologista da Universidade do Sul da Califórnia, ao Los Angeles Times. É que, muitas vezes, “as pessoas ouvem a primeira parte da mensagem e já estão a sair porta fora, perdem a segunda parte, que é muito importante”.

O problema é que a ânsia de alguns, de reabrir antes de vacinar boa parte da população, pode afetar a humanidade inteira. Uma nova vaga nos EUA, que registaram quase 30 milhões de infeções por covid-19, pode servir como placa de Petri para novas variantes do vírus – talvez até capazes de contornar a nossa imunidade, adiando ainda mais o fim do pesadelo.