São 12h39 e a equipa que esteve de serviço toda a manhã junta-se para uma fotografia de grupo. Ainda faltam 20 minutos para acabar o turno e está quase cumprida a missão: dos 174 utentes chamados para fazer a vacina nesta quarta-feira de manhã, só falta chegar uma senhora. “Ainda estamos a contar que venha”, dizem as administrativas da Unidade de Saúde Familiar das Conchas, no Lumiar.
Da parte da tarde vêm outros tantos utentes e a maioria tem cumprido os horários. Inês e Sónia, ao lado de Marta, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, estiveram desde as 9h encarregues das admissões. Sentadas lado a lado de frente para a sala, é um pouco como estar numa mesa de voto em dia de eleições, a riscar da lista quem chega e quem fica despachado. Vacinar tanta gente num dia – e nos próximos meses serão mais – e rentabilizar todas as vacinas é um desafio que já se interiorizou. Passar a fazê-lo no salão de um templo hindu já foi mais inesperado e para a maioria, profissionais e utentes, é mesmo a primeira vez que ali vão.
Lá em cima o templo onde se entra descalço, hábito milenar que muitos passaram a ter com a pandemia, tem estado fechado e as cerimónias são transmitidas pelas redes sociais. No piso -1, onde o salão onde se fazem festas e casamentos foi transformado com cadeiras de espera, zona de recobro e postos de vacinação, o único mantra audível é a chamada pelo número da senha. Mas está-se numa casa hindu e, como é tradição, à entrada há uma estátua de Ganexa, deus da sorte e sabedoria, o que não deixa de ser apropriado. Cheira a especiarias da cantina vegetariana, que tem distribuído refeições durante a pandemia, mais 10 mil almoços nos hospitais e também pelas ruas da cidade.
O templo que antes da pandemia já atraía também muitos pela sua cozinha abriu esta semana como centro de vacinação e todos os dias será assim: equipas das diferentes unidades do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Lisboa Norte virão à vez administrar vacinas aos seus utentes, neste fase idosos com mais de 80 anos e doentes prioritários com mais de 50. A operação a cargo da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo conta com a parceria da Câmara Municipal de Lisboa, que assegura táxis gratuitos para as deslocações, elementos das juntas de freguesia e da Proteção Civil.
Tal como tem estado a acontecer por todo o país, são já seis os centros de vacinação abertos na capital fora dos centros de saúde e até ao final da semana deverá abrir o sétimo, nas Olaias. Já se estavam a dar vacinas no pavilhão Altice Arena e até no antigo Picadeiro do Colégio dos Nobres. Agora o centro de vacinação no templo hindu, que serve as freguesias do Lumiar, Santa Clara e Carnide, foi o primeiro do país a abrir num edifício religioso. “Começou com a proatividade da comunidade hindu que nos fez chegar um email a disponibilizar este espaço. Acaba por ser um espaço ideal, porque tem casas de banho, tem estacionamento, é acessível de transportes”, explica Eunice Carrapiço, diretora executiva do ACES Lisboa Norte, que também nunca tinha entrado num templo hindu antes desta parceria.
“Tivemos a oportunidade de visitar e fiquei a saber mais. Tinham-me oferecido um Ganexa. Nem sabia o nome e agora já fiquei a saber a história e que o tenho de pôr à porta de casa”, conta. Dos utentes a resposta também tem sido boa, partilha também Guilherme Romana, coordenador da vacinação no ACES. Depois de um ano de pandemia, a sensação é de que “há luz ao fundo do túnel”, descrevem. “É muito trabalho, mas quanto mais pessoas vacinadas, mais perto de atingirmos a imunidade de grupo e melhor será o cenário mesmo com o coronavírus a continuar entre nós”, diz Eunice Carrapiço.
Primeira fase de vacinação ainda longe do fim
Por agora, a vacinação ainda está nas primeiras etapas. A nível nacional, 6% da população (603 mil pessoas) tem já a primeira dose e 3% a vacinação completa. Passando dos grandes números para o exemplo deste agrupamento de centros de saúde no centro de Lisboa, a primeira fase de vacinação ainda tem muito para correr. “Nesta primeira fase temos mais de 30 mil pessoas para vacinar, entre idosos com mais de 80 anos e doentes de risco com mais de 50, e devemos ter vacinado umas 8 mil pessoas”, diz Eunice Carrapiço. Se será possível no espaço de um mês vacinar todos os que faltam e concluir a primeira fase de vacinação no início de abril, o calendário em cima da mesa, ninguém tem a certeza, mas a expectativa é de que o ritmo aumente daqui para a frente. “Vai tudo depender das vacinas disponíveis, mas esperamos conseguir vacinar os próximos 8 mil mais rápido que estes primeiros”, continua a responsável.
Sair dos centros de saúde para centros de vacinação foi já um passo nesse sentido. O ACES Lisboa Norte foi o primeiro do país a começar a vacinar a população, na USF de Alvalade, fez ontem precisamente um mês. Depois, as vacinas foram chegando às restantes 14 unidades que percentem ao ACES e antes de abrir o centro de vacinação no templo hindu já estavam também a vacinar no Hospital Pulido Valente e na junta de freguesia de São Domingos de Benfica. A expectativa é de que só no templo hindu, nas próximas etapas de vacinação, possam ser feitas 1000 a 1500 vacinas por dia.
Nestes primeiros dias serão 300 a 500. Só este ACES tem 270 mil utentes inscritos, a maioria para vacinar ao longo do ano – só as crianças não serão vacinadas. “Nos centros de saúde seria impossível termos mil pessoas a fazer a vacina num dia, até porque prevemos que terminando esta fase as pessoas voltem a ir aos centros de saúde às suas consultas”, diz Eunice Carrapiço. No pico da pandemia, chegaram a ter 7 mil casos de covid-19 ativos nas 14 unidades do ACES, semanas intensas para os médicos de família e equipas de saúde pública, que agora vão dando lugar a algum alívio.
Para a responsável, o mais difícil na parte que lhes cabe no pleaneamento da vacinação está feito: preparar os centros de vacinação e ver que é possível as pessoas deslocarem-se e fazerem a vacina com segurança. Falta agora que as entregas sigam o calendário e que o desconfinamento não traga mais sobressaltos. “Se conseguirmos fazer aqui 1500 vacinas por dia, mais 500 em São Domingos de Benfica, são 2000 por dia, já será um bom ritmo.” E se agora se começa a entrar em velocidade de cruzeiro, Eunice Carrapiço não esconde que os primeiros momentos da vacinação foram marcantes.
“Chamar os primeiros doentes para a vacina foi uma emoção grande, vêm-nos as lágrimas aos olhos. Há idosos que não saíam de casa há um ano, que só saíram agora para ser vacinados”, diz. Na USF das Conchas, a utente mais velha vacinada tem 108 anos. “No registo tem 102, mas só lhe fizeram o registo de nascimento aos seis anos”, contam as administrativas.
“A filosofia hindu diz-nos que temos de servir a humanidade”
Kirit Bachu, presidente da Comunidade Hindu de Portugal, encontra-se connosco no salão, onde as cores das festas e festivais hindus dão por estes dias lugar a uma imagem também diferente para quem é da casa. A ideia de disponibilizar o salão para a vacinação foi natural, diz, recordando os projetos de distribuição de refeições ao longo da pandemia. “A filosofia hindu diz-nos que temos de servir a humanidade, ajudar os outros”, resume. Faz parte do caminho espiritual, dharma. “Ajudar os outros é um privilégio que temos na vida e agora é o mínimo que podemos fazer pela saúde nacional”.
Para o responsável, esta colaboração é também uma forma de homenagem a Naru, como era conhecido Narendra Kumar Parshotam, membro da comunidade e voluntário que morreu com covid-19 há um mês, aos 55 anos. Uma perda que abalou toda a comunidade. Deixa a mulher e um filho, de 20 anos, que colaboram também nos projetos em parceria com o movimento Food For Heroes. “Participaram na distribuição de alimentos. Era um homem muito trabalhador, empenhado. No fim do ano passado foi a Angola, apanhou covid-19 lá, tinha problemas cardíacos e não resistiu”, recorda Kirit Bachu.
Também ele teve covid-19, com sintomas ligeiros, e aos 68 anos não conta por isso ser vacinado tão cedo. Procura manter-se saudável: caminhadas de mais de dez quilómetros por dia, banho sempre de água fria, ensinamentos antigos. Para a curiosidade de quem visita o templo pela primeira vez, a introdução implica descobrir deuses, escritos. Ganexa, que vemos na sala, o que representa? “Qualquer boa ação que façamos primeiro rezamos ao deus Ganexa. É um líder. E vemo-lo com esta figura de elefante: tem cabeça grande, um pensar grande. Orelhas grandes, ouvir tudo. Boca pequena, falar pouco. É assim um líder forte.”
Kirit Bachu sublinha que na religião hindu não há uma ideia de conversão nem procuram fazê-lo a quem chega. “As pessoas vêm aqui, fazem meditação e aquilo que acharem bom é porem em prática. Acreditamos não é por acaso que uma pessoa nasce hindu, católico ou de qualquer outra religião. Falamos de karma, que são as ações que praticamos. Se praticamos boas ações, temos bons frutos. Se temos más ações, vamos ter maus frutos.” E esta, é uma boa ação? “É e não é nossa, é dos profissionais de saúde, somos só instrumentos”, sublinha.
"Agora na pandemia fala-se de quarentena, que são 14 dias. No hinduísmo quando há uma morte em casa, durante 14 dias aquela família não pode ir ao templo. São tradições milenares", Kirit Bachu, presidente da Comunidade Hindu de Portugal
A pandemia não tem trazido dias fáceis: o templo é grande – inaugurado em 1998 por Jorge Sampaio, será mesmo dos maiores da Europa, diz Kirit Bachu – e a manutenção dispendiosa. A cantina, entretanto fechada, é uma das formas de sustento. Leva-nos ao templo onde há dois meses que também não há cerimónias com participantes, de que todos sentem falta. No adro, uma caixa de vidro guarda pés de tulsi, também chamado manjericão sagrado, com um aroma doce e cultivado há milénios pelas propriedades medicinais,. “É uma religião muito rica, muito filosófica, com muita ciência. Agora na pandemia fala-se de quarentena, que são 14 dias. No hinduísmo quando há uma morte em casa, durante 14 dias aquela família não pode ir ao templo. Quando há um nascimento em casa, o mesmo. É uma tradição milenar, como tirar os sapatos antes de entrar em casa.”
Lá em baixo, a vacinação segue o seu curso. As cadeiras vão ficando vazias à medida que se aproxima o fim do turno. Gonçalo, de 51 anos, é a certa altura dos últimos na sala de espera. Já conhecia o templo, mas admite que quando recebeu a marcação começou por estranhar o local e foi pesquisar para confirmar que era mesmo ali. “Mesmo em miúdo nunca gostei muito de levar vacinas, mas esta teve mesmo de ser”, confessa. À saída, partilha que doeu menos do que estava à espera. Aliás, quase não sentiu nada e à cabeça vieram-lhe as notícias de que no Brasil não estão a injetar a vacina nas pessoas. Não muito tempo depois sai Amin, de 64 anos. Ismaelita, também já conhecia o templo hindu e achou que fazia sentido aproveitar o espaço amplo.
Os cuidados são para manter mesmo com a vacina e diz que aquilo de que sente mais falta é de abraçar os filhos, o que não faz há um ano. E também ele ao receber a vacina pensou nessas imagens de seringas sem nada lá dentro. Dos vacinados com quem falamos, a organização merece nota positiva, embora nem todos se sintam totalmente seguros com a vacina que chegou “depressa”. Mas a ideia de poderem ficar mais protegidos pesou mais que a renitência.
A equipa já está habituada a desfazer dúvidas e receios e questionados sobre estes desabafos garantem que as seringas estão cheias. “Outra coisa que nos têm dito é que na televisão parecem maiores”, acrescenta um enfermeiro. É verdade que a agulha da vacina da gripe é mais pequena, porque a vacina é subcutânea e esta intra-muscular, mas não custa assim tanto.