Graça Freitas: “As mulheres têm uma vida com pior qualidade a partir dos 65 anos”

Da infância aos bancos da Faculdade de Medicina, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, recorda os primeiros confrontos com a discriminação das mulheres num mundo onde os homens mandavam em casa e na rua. É a segunda diretora-geral na história da DGS e admite que hoje ainda sente por vezes algum paternalismo, mas muito menos…

 

Nasceu nos anos 50. Que memórias tem dos seus primeiros confrontos com a condição feminina, com os ensinamentos do que as meninas/mulheres não podiam ou não deviam fazer? Mexiam consigo?

A minha infância decorreu em Angola e, apesar da liberdade que havia, e que era maior do que na ‘Metrópole’, percebia que era tratada de maneira diferente dos meninos, mas percebi sobretudo que as mulheres tinham pouca capacidade de decisão, quer fosse na minha quer nas outras famílias. Isso agravou-se, porque com oito anos vim passar férias à ‘Metrópole’ e percebi, em relação a mim, que era uma criança, e a todas as mulheres que fui conhecendo, que havia um domínio predominantemente masculino. Era um exercício de poder discricionário e discriminatório. Portanto, apesar de eu não ter presenciado violência física, o ascendente que os homens tinham sobre as mulheres na minha infância era bastante visível e incomodativo.

Dos bancos da Faculdade de Medicina à saúde pública, alguma vez sentiu que ser mulher fosse um obstáculo?

A partir de certa altura, à medida que a minha adolescência se desenrolava, houve um fenómeno interessante na minha família. O meu pai entendeu que devia apostar na minha educação e em que eu seguisse uma carreira. A partir daí, as coisas tornaram-se bastante mais positivas para mim. Foi quase uma discriminação positiva para ter oportunidades de uma vida independente. Foi com esse espírito que eu entrei na faculdade. Estava ali por direito próprio, porque estudei, porque me tinha esforçado. E a partir dessa altura não me senti vítima de discriminação. No entanto, continuei a observar que se mantinha um padrão dominante masculino em algumas circunstâncias, nomeadamente no meio médico, por médicos de outra geração em relação às médicas dessa geração e às médicas mais novas. Havia sempre a tendência para que um homem dominasse e sobretudo havia uma assimetria grande no número de homens em relação ao número de mulheres, entre os profissionais de saúde, exceto na enfermagem. O que se notava era que os lugares de topo estavam obviamente ocupados por homens, alguns bastante autocráticos. Felizmente nem todos, porque também tive o privilégio de trabalhar com médicos, professores, diretores que não faziam esse tipo de discriminação, mas no cômputo geral ainda se notava.

Em mais de 100 anos, é a segunda diretora-geral da Saúde na história da DGS, numa das crises mais pesadas. Alguma vez sentiu que isso era visto como sinal de maior fragilidade, que estava a ser mais criticada, questionada ou mesmo tratada de forma mais condescendente por ser mulher? Imagina como seria a vida da sua antecessora nos anos 60?

A vida da minha antecessora deve ter sido de facto muito difícil, porque mesmo agora, tanto tempo depois, noto, sim, que por vezes há essa condescendência. Há de facto algum paternalismo por vezes, mas há predominantemente uma relação igualitária, ou seja, sinto que na maior parte das vezes o facto de eu ser mulher não impede que haja uma interação paritária com os homens. Não há comparação possível com a primeiros 20 anos da minha vida. O 25 de Abril fez aqui uma grande diferença, com o predomínio das mulheres em muitas áreas, em termos profissionais, e com acesso das mulheres a cargos de topo. Neste momento algumas situações são ainda de condescendência e de paternalismo, mas não são o padrão dominante, que é de facto igualitário. Sinto que sou tratada como seria se fosse homem e acho que conquistei isso ao longo da minha vida toda. Não algo que me foi dado, mas conquistado. As coisas mudaram muito nos últimos anos.

As mulheres vivem mais do que os homens, mas menos anos de vida saudável. Quais são os maiores desafios da saúde feminina em Portugal?

As mulheres continuam a ocupar demasiadas tarefas na vida, mantêm uma carreira profissional, ainda se exige demasiado em relação à maternidade, exige-se um papel em casa de grande protagonismo doméstico. Aliás, é notório agora no confinamento, porque as mulheres queixam-se do teletrabalho, do apoio permanente aos filhos e ainda estão a desempenhar tarefas domésticas. Acho que isso ainda define muito do que passa neste momento na sociedade. Creio que, apesar de viverem mais tempo, e de terem grande resiliência, têm uma vida com pior qualidade em termos de saúde, sobretudo a partir dos 65 anos. Acho que isso se deve a um acumular de funções, a um desgaste muito grande, a um esforço que lhes é exigido ao longo da vida e espero que isso não se passe nas gerações futuras, que haja uma maior partilha dos diferentes papéis na sociedade e que não haja uma sobrecarga sobre as mulheres que ainda se verifica em diferentes setores. Não admira que isso resulte em menos tempo para elas, para a atividade física, para se alimentarem bem, terão provavelmente menos horas de sono de qualidade, mais stress. Aí ainda estamos a refletir décadas de atraso em relação ao que devia ser em termos de igualdade.

Que mulheres a marcaram e que mulher gostava de ter conhecido?

A mim marcaram-me as grandes cientistas, sobretudo as que foram pioneiras. A Madame Curie foi uma das que mais admirei, mas também a rainha Elisabete de Inglaterra, que esteve à frente de uma época dourada, há uns séculos, porque foram mulheres à frente do seu tempo e da prática dominante. Comecei por admirar muito na minha infância e adolescência as mulheres do meio artístico, porque me parecia que eram mulheres que de alguma forma se tinham libertado, mas constatei, mais tarde, que elas foram muitas vezes vítimas que não se viam. Hoje tenho muitas que admiro em muitos setores de atividade, mas não gostava de mencionar nenhuma em especial. Ficar-me-ia por uma rainha e uma mulher que era cientista e que ganhou um Nobel da física, numa altura em que isso não acontecia tão facilmente, e pela admiração que eu tinha pelas escritoras, pelas pintoras e artistas de cinema, por aquilo que me parecia que era a sua independência em relação aos homens e pela forma como circulavam no mundo aparentemente sem limitações.

Tem duas netas pequenas. O que gostava de ver conquistar pelas raparigas de hoje? Que nunca ouvissem ou sentissem?

As minhas netas estão no bom caminho. Sou contra qualquer forma de discriminação, nunca gostaria de ver uma neta minha achar que só pelo facto de uma opinião, uma atitude, um comportamento vir de um homem vinha valorizado. Isso nunca, seria para mim um retrocesso e seria inadmissível. Espero que as minhas netas continuem a ser independentes, que pensem pela sua cabeça e que nunca olhem para um homem com a sensação de que, só por ele ser homem, pode e tem direito a uma opinião melhor que a delas ou pode exercer sobre elas qualquer tipo de poder, seja em que área for, a não ser o poder do mérito ou da razão, que nada tem a ver com o sexo. Desejo-lhes a liberdade.

Para onde e quem vão os seus pensamentos neste dia da mulher?

Vão para este desejo de que não se ande para trás. O mundo ainda é muito desigual, ainda há milhões de mulheres discriminadas e é para elas que vai o meu pensamento, para o desejo de que um dia todas consigam exercer controlo sobre as suas vidas, que é o que se pretende. O que eu mais prezo é sentir que tenho algum controlo sobre a minha vida e que isso não depende do poder masculino. As mulheres em todo o mundo ainda têm um longo caminho pela sua frente, para um dia conseguirmos não ter esta conversa.