Quando o Papa Francisco aterrou no aeroporto de Bagdade, esta sexta-feira, já estava esta em curso uma gigantesca operação, tanto para reabilitar esta cidade martirizada pela guerra, como para garantir a segurança. Enquanto o Sumo Pontífice era recebido pelo Presidente iraquiano, Barham Salih, e pelo primeiro-ministro, Mustafa al-Kadhimi, a rota por onde seguiria era monitorizada por drones e esquadrões antibomba e de contraterrorismo estavam prontos a entrar em ação, num aparato que envolveu mais de 10 mil militares.
Não se trata de excesso de zelo. Há umas semanas, dois bombistas suicidas, membros de grupos extremistas sunitas, deixaram um rasto de 32 mortos num mercado da capital, e ainda há uns dias milícias xiitas lançaram dezenas de rockets sobre bases americanas. Além disso, o Iraque enfrenta um surto de covid-19, com mais de cinco mil infeções registadas na véspera da chegada do Sumo Pontífice, obrigando as autoridades a decretar confinamento completo durante a sua estadia.
Não espanta que esta seja considerada a mais perigosa viagem de Francisco, ansioso por conhecer «uma terra que foi martirizada durante tantos anos», que se apresentou como «peregrino da paz» – à semelhança do seu antecessor João Paulo II, lembrado como o ‘Papa peregrino’ – e que já visitou a sua quota parte de regiões instáveis. Das brutais prisões de Ciudad Juarez, cheias de gangues e narcotraficantes, até às flageladas ruas de Bangui, em plena guerra civil, passando por Myanmar, Egito, e pela cidade de Tacloban, nas Filipinas, que acabara de ser devastada por um ciclone – o Papa até teve de encurtar a visita, quando a situação climatérica voltou a agravar-se.
Os iraquianos, que, por uma vez, veem o seu país na imprensa internacional por bons motivos, podem ter de assistir à visita do Papa Francisco pela televisão, mas os efeitos já se fazem sentir. As autoridades do Iraque – cuja corrupção é contestada há meses, por centenas de milhares de manifestantes, tendo a Polícia chegado a abrir fogo contra uma multidão, ferido dezenas, na semana antes da chegada do Papa – afadigaram-se a limpar e repavimentar Bagdade, com um afinco inaudito. Multiplicaram-se os murais comemorativos por toda a cidade, os postes de iluminação foram reparados, e muitos semáforos voltaram a funcionar.
«As ruas de Bagdade ficaram muito melhor numa semana», garantiu Ahmad al-Assadi, um lojista da capital, com 41 anos, que não deixou de reparar em toda a preparação para receber o Papa. «Quem me dera que ele ficasse cá um mês e fizesse uma tour por todo o Iraque», acrescentou, à CNN. «Talvez então eles consigam reparar o país inteiro».
Fraternidade e conciliação
A escolha do Iraque como primeiro destino de Francisco, após o início da pandemia, não foi por acaso. O Sumo Pontífice sempre deu prioridade a expandir os horizontes da Igreja Católica, promovendo maior abertura ao mundo e outras religiões, em particular o islão. Numa altura em que se vive o rescaldo da Guerra ao Terror, bem como das vagas de migrantes vindos de países muçulmanos, recebidos na Europa com um aumento da islamofobia, o Papa já assinara um protocolo pela «fraternidade humana» com o xeque Ahmed al-Tayebo, imã da mesquita de al-Azhar, no Cairo, um dos mais influentes líderes religiosos sunitas – agora, Francisco terá a oportunidade de reunir com o grande aiatola Ali al-Sistani, líder dos xiitas iraquianos, este sábado, na cidade santa de Najaf, no sul do país.
Em seguida, o Papa segue para o norte do país, para visitar as planícies de Nivive, onde costumava viver a maior parte dos cristãos iraquianos. Em tempos, foi uma comunidade florescente, mas tudo mudou com a invasão americana do Iraque, em 2003, culminando com a tomada da região pelo Daesh – nas últimas décadas, os censos mostram uma quebra de 80% na população cristã, boa parte da qual fugiu do país, passando de mais de 1,4 milhões para menos de 250 mil.
Longa história
As visitas Papais tornaram-se, de alguma forma, uma expressão da agenda da Santa Sé. Hoje, são uma constante na lista de tarefas do Sumo Pontífice, sendo esperada uma mão cheia delas por ano, mas nem sempre foi assim. Aliás, seria apenas em 1964 que um Papa voltaria a sair da península itálica, mais de dois séculos após o Papa Pio VII ser raptado e levado para Paris, para coroar o imperador Napoleão Bonaparte.
Nessa primeira viagem do Papa Paulo VI, que se tornou o primeiro a viajar de avião, o destino, Israel, a terra prometida da Bíblia, não poderia ser mais simbólico. Mas os desafios políticos eram enormes. O Vaticano, que defendia a custódia por uma entidade neutral da cidade santa de Jerusalém, ainda não reconhecera o Estado de Israel, e Paulo VI viu-se forçado a passar 11 dias no país sem nunca mencionar o seu nome.
Paulo VI foi o primeiro Papa a receber o epítome de peregrino, estabelecendo a tradição de visitas Papais, que seriam continuadas pelos seus sucessores. Talvez nenhum deles com tanto impacto como João Paulo II, o primeiro Papa não-italiano em quase 500 anos, que, em plena Guerra Fria, se projetou como feroz opositor do bloco soviético.
A segunda visita Papal foi logo à sua Polónia natal, controlada por um regime comunista. João Paulo II faria oito visitas ao país, nenhuma delas tão dramática como a primeira, quando reuniu com nomes como Lech Walesa, futuro Presidente polaco e líder do sindicato Solidariedade.
«Quando o avião de João Paulo II aterrou no aeroporto de Okecie, a 2 de junho de 1979, tocaram sinos de igreja por todo o país, um sinal inequívoco que os esforços comunistas de erradicar a identidade católica polaca falharam», escreveu à época a National Catholic Reporter. Não eram viagens sem riscos – hoje sabemos que o regime monitorizou cada passo de João Paulo II durante décadas, anotando tudo desde as suas bebidas alcoólicas preferidas, segundo Marek Lasota, do Instituto Nacional da Memória, em Cracóvia, citada pelo Irish Times, que estima que 10% dos padres polacos cooperassem com as secretas.
Contudo, nem todas as viagens de João Paulo II foram tão bem sucedidas. A sua viagem de 1983 à Nicarágua – que enfrentava uma sangrenta guerra civil, em que terroristas financiados pela CIA, conhecidos por Contras, se digladiavam contra revolucionários sandinistas, muitas vezes massacrando padres católicos, que associavam a movimentos de esquerda – foi considerada um total desastre. João Paulo II mostrou-se distante e indiferente para os padres perseguidos, ordenando-lhes altivamente que fossem obedientes aos seus bispos.
O Papa deixou-se fotografar de dedo em riste, censurando Ernesto Cardenal, padre, poeta e intelectual da teologia da libertação. Chegou a enfurecer-se quando foi apupado por uma multidão pró-sandinista, gritando-lhes que se calassem, a meio da missa.
«Esforçámo-nos tanto para construir pontes com a juventude deste país, que estão tão alienados da religião», desabafou na altura um padre nicaraguense, ao New York Times. «O Papa quebrou essas pontes com um único golpe».
Contudo, talvez nenhuma viagem do Papa João Paulo II foi tão emblemática quanto a sua viagem a Fátima, em 1982, quando foi alvo de uma tentativa de assassinato de um padre espanhol, Juan Fernandez Krohn, que o atingiu com uma baioneta a meio de uma procissão. A relação com do Papa com Nossa Senhora de Fátima já vinha de trás, quando esteve entre a vida e a morte, após ser baleado na praça de São Pedro – o Papa acabou por considerar que tinha sido salvo por interceção de Maria, e que seria esse um dos segredos de Fátima.
Já o Papa Bento XVI também enfrentou viagens complicadas, mas nenhuma como a sua visita à Turquia, em 2006, meses após o Papa fazer um discurso na Alemanha, em que citou um texto medieval, de um imperador bizantino, acusando o islão de apenas ter trazido «coisas malévolas e inumanas». O ultraje foi palpável em todo o planeta, em particular no mundo muçulmano, onde Bento XVI foi acusado de ter um pensamento saído das Cruzadas.
Não é de espantar que o Sumo Pontífice tenha sido recebido com enormes protestos na Turquia, o surpreendente é que a viagem parece ter, de alguma forma, funcionado. O Papa apresentou-se com uma mensagem de reconciliação, apoiando até o projeto de juntar a Turquia na União Europeia, algo que o regime de Recep Tayyip Erdogan ansiava na altura. Erdogan, subitamente, até se tornou num dos grandes amigos do Vaticano – sinal de como as visitas Papais podem impactar o mundo.